Segundo Federação Nacional, domésticas são obrigadas a trabalhar e ameaçadas de demissão; maioria de denúncias é sobre patrões que as obrigam a dormir no trabalho
Por: José Cícero da Silva originalmente para apublica.org
A morte do menino Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, que caiu do 9° andar de um condomínio de luxo em Recife, Pernambuco, revela um drama silencioso que tem marcado a pandemia brasileira: a situação precária das trabalhadoras domésticas.
A mãe de Miguel, Mirtes Renata Souza, e a avó, Marta Santana, trabalhavam para a mesma família, a do prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker (PSB). A esposa, Sarí Gaspar Côrte Real, deixou o filho da empregada sozinho em um elevador, e a criança caiu do nono andar, enquanto a mãe levava o cachorro da patroa para passear. Ela foi presa e pagou fiança para ser liberada. Mas, antes do homicídio, a família já tinha contraído Covid-19, assim como as empregadas – e mesmo assim, as domésticas não foram liberadas do trabalho.
Em março, o MPT soltou uma nota técnica orientando que “trabalhadoras e trabalhadores domésticos sejam dispensados do comparecimento ao local de trabalho, com remuneração assegurada, pelo período de isolamento ou quarentena de seus empregadores”. Porém, segundo a Agência Pública apurou, além dos riscos de contaminação, elas enfrentam coação para trabalhar e preconceito dentro do trabalho.
De acordo com Luiza Batista, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), a organização vem recebendo mais denúncias de mulheres que estão sendo coagidas a trabalhar, sob pena de demissão. As denúncias mais frequentes são de trabalhadoras que “sob coação, ameaça de perder o emprego ou por acharem que elas podem se contaminar no transporte público”, estão tendo que pernoitar nas casas dos patrões. “Se não houve nenhum acerto no contrato de que a trabalhadora ia pernoitar no emprego, não tem porque o empregador, neste momento, se aproveitar de uma situação de pandemia para obrigar a trabalhadora a pernoitar no emprego”, explica. Algumas delas, como a mãe de Miguel, acabam tendo que levar os filhos junto.
Esta é exatamente a situação da Vera Lúcia*, que desde o início da quarentena no estado de São Paulo está passando a semana, com a filha adolescente, na casa dos patrões e retornando para casa, na zona leste, aos finais de semana. Ela diz que não teve como recusar o “acordo”. “Não foi bem um acordo. Quando começou o isolamento na cidade, ela perguntou se eu não queria passar a dormir lá. Eu disse que não, porque tinha a minha casa e a minha filha. Ela falou pra eu levar a minha filha. Pra mim, de certa forma, se tornou viável porque eu não fico me expondo no ônibus cheio, aí eu aceitei. Mas ela não modificou nada em relação ao salário”. Quando perguntada sobre aumentar o pagamento, a patroa respondeu que estava “acolhendo” a filha da funcionária. “Ou seja, eu trabalharia e dormiria, mas em compensação casa, comida e banho era livre. Como não tinha outra alternativa e preciso trabalhar, resolvi aceitar.”
Hoje, Vera Lúcia diz que se sente “explorada” porque tem que executar tarefas fora do horário de trabalho. “Tem horário para começar, mas não tem para parar. Eles aproveitam que estou ali e pedem pra fazer ‘tal coisa’. Eu trabalho das 8h às 17h, são 9 horas. E não tenho horário de almoço. À noite, faço a janta e lavo a louça. Às vezes estou no descanso e aí inventam outra coisa pra eu fazer. Dá vontade de falar, mas me sinto constrangida”.
A situação não é fácil. Ter que conviver com a filha no ambiente de trabalho tem gerado conflitos e a adolescente já pediu para ir embora algumas vezes. Ela diz que a filha tem passado por situações que ela considera “humilhantes”. A filha dos patrões é dois anos mais nova e, praticante de artes marciais, chegou a bater na sua filha. “Por conta daquilo, na hora eu já abri a boca – tem coisas que eu não consigo deixar passar. Eu comecei a falar alto para eles ouvirem mesmo. Eles não disseram nada pra mim, mas chegaram a, do jeito deles, dar uma correção para menina, entendeu?”
Além disso, elas se sentem vigiadas o tempo todo. “Tudo é controlado e vigiado por câmeras. Às vezes, quando a menina está comendo alguma coisa e minha filha diz que quer, eu me sinto constrangida de ir lá [na dispensa] e pegar, porque nem sempre eles oferecem”.