No dia 21 de maio, o RioOnWatch realizou a LIVE interativa, “Erros da Imprensa ao Cobrir Coronavírus nas Favelas”. Seis comunicadores populares compartilharam suas experiências sobre como a imprensa nacional e internacional deveriam melhorar suas coberturas sobre o coronavírus nas favelas, para além das conclusões da matéria colaborativa “7 Erros Cometidos Pela Imprensa ao Cobrir Coronavírus nas Favelas”, publicada no RioOnWatch, e abordaram as tendências recentes da mídia.

A mesa redonda contou com a participação de: Salvino Oliveira, colunista do PerifaConnection, assistente da Defensoria Pública e fundador do Projeto Manivela, oriundo da Cidade de DeusZona Oeste; Michel Silva, jornalista e co-fundador dos jornais Fala Roça e Favela em Pauta, da RocinhaZona Sul; Beatriz Carvalho, jornalista e fundadora do Mulheres de Frente, projeto de empreendedorismo feminino, de São João de MeritiBaixada Fluminense; Fábio Leon, jornalista e assistente de comunicação do Fórum Grita Baixada, de Duque de Caxias; Gracilene Firmino, jornalista e repórter do Voz das Comunidades e do FavelaDaRocinha.com, da Rocinha; e Daiene Mendes, jornalista e consultora de comunicação da ONG internacional Witness, co-fundadora e editora do Favela em Pauta e também colaboradora do Bombozila, do Complexo do AlemãoZona Norte. A plateia da live contou com a participação de correspondentes internacionais e membros da imprensa brasileira, além de ativistas de favelas, moradores, e cidadãos interessados de várias cidades do Brasil.   

A jornalista Daiene Alves fala das consequências da falta de profissionalismo na cobertura do corona vírus nas favelas

Empatia, Desigualdade e Criminalização

O formato da live possibilitou que os palestrantes e o público refletissem sobre as realidades estruturais e contextuais e os desafios de se fazer jornalismo nas favelas, frente à marginalização histórica e à estigmatização contemporânea. Abrindo a conversa da noite, Salvino Oliveira da Cidade de Deus enfatizou a importância de tratar as favelas e seus moradores com empatia, dizendo que “antes de qualquer matéria, antes de qualquer escrita a gente [que faz jornalismo] tem que ter empatia pelo outro e se colocar no lugar do outro”.

Salvino explicou que a maneira como as favelas são retratadas deve mudar e que os jornalistas precisam entender que eles são parte integral do Rio de Janeiro, uma cidade extremamente desigual. Daiene Mendes do Complexo do Alemão acrescentou que a imprensa é um produto dessa desigualdade, tendo um papel em reproduzir divisões. Ela pontuou que jornalistas devem “compreender essa gritante desigualdade que a gente tem inserido nesse Brasil, […] como isso se organiza estruturalmente”.

Salvino exemplificou possíveis consequências do jornalismo sem empatia ao trazer as questões de segurança física. “[O Rio de Janeiro] tem uma violência muito forte, uma violência territorial muito forte, então alguns erros podem inclusive custar a vida daqueles que estão [sendo] entrevistados”, afirmou ele. Salvino faz parte da Frente CDD, uma coalizão na Cidade de Deus que está se mobilizando para distribuir alimentos e materiais de higiene na favela durante a pandemia. No último dia 20 de maio o grupo teve que se refugiar na casa de um morador devido a uma operação policial que resultou em tiroteio do lado de fora—a Frente tinha acabado de distribuir 200 cestas básicas. Logo, eles receberam a notícia de que Jõao Vitor Gomes da Rocha, um jovem de 18 anos morador da comunidade, havia morrido na operação.  

Salvino criticou a tentativa de alguns na mídia em criminalizar tanto o adolescente como os atos de solidariedade da Frente CDD. Ele concluiu dizendo que a mídia “tem naturalizado a morte, inclusive criminalizando aqueles que lutam contra isso”.

Para Daiene, parte do problema é que a imprensa se beneficia de tragédias como essa. “A base dessa imprensa é a desigualdade. […] O que sustenta a imprensa que temos aqui [no Brasil] é exatamente questões relacionadas à desigualdade e essa imprensa lucra com essa sofrência da nossa vida, lucra quando acontece uma tragédia como a de ontem na CDD”, ela declarou.

Profissionalismo

Para Michel Silva da Rocinha, as mesmas divisões urbanas contribuem para a falta de profissionalismo por parte dos veículos de mídia tradicionais quando estão trabalhando com jornalistas das favelas. “Quem trabalha com jornalismo dentro das favelas sempre é mencionado como ‘correspondente local’, como ‘comunicador local’ […] eu acho errado porque o que a gente faz é o jornalismo.” Ele acrescentou que o “cópia e cola” que a grande imprensa faz com trabalhos de jornalistas de favelas também é um dos principais problemas. “Eu vejo várias vezes os veículos de comunicação tradicional copiando informação que eles não conseguiriam ter acesso se eu não tivesse publicado essa informação… e esquecendo de citar a fonte original”.

Para Michel, este é um exemplo de um consciente ato de exclusão. “A gente pode perceber que os jornais tradicionais, os grandes meios, entre eles mesmos, eles se citam. Agora, quando é uma fonte local, uma fonte que não tem tantos recursos financeiros, eles acabam esquecendo deles”, concluiu ele.

Beatriz Carvalho de São João de Meriti contou a história de dois jornalistas freelance que fotografaram uma jovem grávida na Cidade de Deus com a autorização dela, mas depois venderam as imagens para grandes veículos de mídia sem a permissão da jovem. As imagens tomaram proporção nacional quando foram transmitidas em todo o país pela mídia e a jovem sofreu diversos tipos de abusos na internet. Sobre esta história, Beatriz fez um questionamento vital: “Até onde vai o poder da imprensa? É realmente [um exemplo de] vender a pobreza… Mas tem uma pessoa por trás do personagem”. 

A falta de profissionalismo se estende para a forma como jornalistas de fora da favela interagem com aqueles de dentro das favelas no nível pessoal. Michel Silva e Gracilene Firmino, ambos da Rocinha, contaram sobre casos em que foram contatados pelo WhatsApp para que fornecessem informações e contatos sem que fossem remunerados pelo trabalho. Os pedidos normalmente envolviam situações em que os jornalistas de favelas teriam que se colocar em situações de risco.

Gracilene disse que, no início da pandemia, um jornalista pediu a ela para que saísse da quarentena para reportar eventos na Rocinha. “É uma coisa injusta. Como assim? Eu vou fazer produção para galera, e não só produção, vou apurar, vou mandar fotos, vou mandar texto, vou mandar entrevista e aí a galera vai falar assim: ‘pô, valeu’, e nem sequer [irá] citar o meu nome quando a matéria sair”.

Michel falou sobre um outro resultado problemático de trocas não profissionais com veículos de comunicação tradicionais: eles não pagam jornalistas de favelas pelo trabalho e acrescentou: “Eu acho que tem que separar quando há um momento de ajuda, quando a gente pode realmente ajudar em alguma coisa, e a questão de assistência de produção. Eles esquecem que a gente também é jornalista e a gente é pago [por isso]”. A questão da desigualdade financeira é central para a questão. Michel concluiu que “alguma imprensa tem que pagar por essa mania de que jornalistas de favela têm que ser tratados como uma fonte, até porque se a gente pegar o lucro anual de cada jornal, de cada meio de comunicação, são lucros absurdos”.

Daiane mostrou como a falta de profissionalismo vai além dos parâmetros de trocas entre jornalistas e afeta as vidas de profissionais que moram nas favelas. Ela contou que um produtor do SBT Brasil a contatou para uma entrevista sobre a disponibilidade de leitos e respiradores em hospitais. Quando Daiene se recusou, o produtor acessou o Facebook dela sem a permissão da jornalista, utilizando imagens dela e de um familiar em um jornal nacional criando uma narrativa falsa. Sobre essa experiência, Daiene descreveu a hipocrisia perigosa em coagir, considerando esse um dos grandes erros da grande mídia. “Eles acreditam que isso é heroísmo […] que eles reproduzem nas matérias quando eles falam sobre nós, mas na verdade são eles que querem ser os heróis.”