(Rodrigo Otávio)
A jornalista Lígia Elias Coelho apresenta sua monografia “Que Maravilha de Fim de Semana!” – Ética e Estética nos Programas de Televisão, no dia 3 de março, às 15h30, no Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Rua Lara Vilela, nº 126 – São Domingos, Niterói (RJ). Na entrevista abaixo Lígia fala como a TV sai da sua função constitucional de agente educadora e socializadora para uma lógica simplista e capitalista, empobrecendo não só a diversão de fim de semana de milhões de cidadãos como suas próprias vidas, e mostra meios para se virar essa realidade digna de um roteiro de filme B.
Entrevista com Lígia Coelho. Rodrigo Otávio, do Rio de Janeiro
Núcleo Piratininga de Comunicação. Por que você focou o seu trabalho sobre a TV em 3 pontos: fim de semana, ética e estética ?
Lígia Coelho. A proposta do trabalho é fazer uma reflexão crítica sobre os programas da televisão aberta no Brasil. De modo geral, salvo exceções, a programação é de baixo nível e não atende aos preceitos constitucionais que determinam, entre outros pontos, que a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão devem dar preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; devem promover a cultura nacional e regional, estimulando a produção independente que objetive sua divulgação; devem também enfatizar a regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei e respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família.
NPC. O quê na prática pouco acontece …
Lígia. Isso, na prática, não acontece. Ao contrário. Nem é preciso uma análise muito detalhada, para se perceber como a ética é desrespeitada – os humorísticos, por exemplo, estão sempre ridicularizando o homossexual, apontando a mulher como objeto e desrespeitando os idosos. A televisão promove valores muito questionáveis, como a ganância, o individualismo, o consumismo sem freios; prejudicando, inclusive, na formação de crianças e adolescentes. Além disso, a maior parte do tempo desconsidera a nossa cultura nacional e regional. Do ponto de vista estético, dá-se o mesmo: o que vale é o padrão de beleza importado, imposto pelos comerciais. Não se valoriza a nossa diversidade étnica e cultural. Por sua vez, os programas têm uma estética duvidosa (vide os programas de auditório – sempre o mesmo modelo: mulheres em roupas sumárias rebolando, muita gritaria, pieguice às vezes). Nos humorísticos e programas sensacionalistas, tipo Ratinho, imperam a baixaria, as grosserias e o desrespeito à dignidade humana.
NPC. E esses programas têm maior penetração nos fins de semana…
Lígia. Foquei o estudo no fim de semana, por duas razões: a primeira, de ordem prática, para facilitar o trabalho; caso contrário, demandaria um estudo muito mais aprofundado, exigindo muito mais tempo e não seria esse o caso, pois se trata de uma monografia de fim de curso de graduação e não de uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado. Em segundo lugar, o recorte sobre o fim de semana foi também uma sugestão do meu orientador, professor Leonardo Guelman, considerando que o fim de semana é a ocasião privilegiada para o descanso do trabalhador e a mídia aproveita para reforçar a manipulação ideológica através do entretenimento.
NPC. Qual a principal diferença da programação do fim de semana para a semanal ?
Lígia. Não existe propriamente diferença de fundo. Aos sábados, por exemplo, os telejornais e as telenovelas são mantidos, como durante os dias úteis. No domingo, há algumas variações: as telenovelas são suspensas e os noticiários são diferenciados, figurando, em geral, dentro de algum programa de variedades, como no Fantástico. Mas, como disse, o fim de semana é o período privilegiado para manipulação ideológica, uma vez que, em tese, é quando o trabalhador passa mais tempo em casa, com a família. De acordo com a “Escola de Frankfurt”, que teve nos filósofos Theodore Adorno e Max Horkheimer os principais nomes, o fim de semana cumpre um papel importante no sistema capitalista como “reajustador” do trabalhador para uma nova seqüência de jornada de trabalho; funciona como uma espécie de catarse. Esse aspecto também é abordado no trabalho.
NPC. Você poderia citar e analisar dois programas totalmente opostos que passem nos fins de semana, caso existam ?
Lígia. Existem, sim, programas totalmente opostos em termos de entretenimento. Exemplo, os programas evangélicos, que se espalham por vários horários nas emissoras de menor poder econômico, e humorísticos ou programas de auditório, tipo Caldeirão do Huck, a Praça é Nossa e Zorra Total. Mas, no fundo, acho que todos se encontram numa mesma tangente: a
alienação.
NPC. Mas no caso, os religiosos não dizem estar justamente combatendo a alienação consumista em defesa de uma maior espiritualidade ?
Lígia. Não! Porque se acompanharmos a programação vemos, que no fundo eles convergem para um mesmo campo: a alienação mesmo. Nos programas eles colocam que problemas de ordem temporal (a falta de um carro, de uma promoção no trabalho…), não espiritual, serão resolvidos pela fé. Mas só dizem isso, não trabalham a espiritualidade propriamente dita. Na maior parte das vezes esses programas não estimulam a reflexão crítica. Então, os programas de TV, sejam religiosos ou não, fecham na alienação, se encontram aí.
NPC. Você acha que a TV e seus anunciantes, de certa maneira, incentivam uma campanha de “violentização” da vida e do mundo, para que as pessoas, amedrontadas, se tranquem em casa e liguem suas TVs ?
Lígia. Acho que a TV, da forma como vem sendo conduzida, contribui, e muito, para gerar violência, na medida em que incentiva valores individualistas e consumismo desenfreado, valorizando um modelo de convivência social pouco fraterno e solidário. Percebem-se, inclusive, muitas contradições. Por exemplo, o telejornal da noite apresenta uma matéria sobre o alto índice de acidentes nas estradas, provocado ou pelo consumo de álcool, ou pela direção descuidada ou pelo desrespeito às regras de trânsito. Logo em seguida, no intervalo, entra um comercial de bebida, seguido de um comercial de carro (que em geral apela para a velocidade) e pelo trailler de um filme onde se destaca perseguição de automóveis em alta velocidade, etc.
NPC. Qual a ética e a estética na TV hoje ? Já existiu outra ? Na TV só aparece gente bonita ?
Lígia. Acho que esta pergunta já está respondida no começo. Mas vale ressaltar, por exemplo, que o tipo padrão do brasileiro, marcadamente mestiço ou negro, não tem visibilidade na TV, salvo exceções que confirmam a regra. Acho importante frisar, também, que o objetivo do trabalho não é tão-somente criticar. Apontamos falhas, mas também reconhecemos que há bons programas, de qualidade, com elenco impecável e direção segura, com propostas positivas e educativas. Cito no trabalho, como exemplo, o programa Cena Aberta, conduzido por Regina Casé. O programa de estréia foi belíssimo, sobre o romance A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Os que se seguiram (pelo menos os que vi), também eram todos da melhor qualidade. Algumas minisséries (Os Maias, Desejo e outras) também são muito bem cuidadas.
Finalmente, acho importante frisar a organização da sociedade civil no sentido de forçar a melhoria da qualidade da TV. Cito, no trabalho, a campanha Quem financia a baixaria é contra a cidadania, promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados (cujo coordenador é o deputado Orlando Fantazzini, do PT de São Paulo). É uma campanha pela valorização da ética e dos direitos humanos na televisão e, apesar do bloqueio da mídia, vem obtendo resultados bastante positivos. Através de denúncias que chegam à comissão de DH, a campanha divulga os nomes dos programas que desrespeitam a dignidade do ser humano, insistindo junto aos patrocinadores para que deixem de financiar os programas listados no “Ranking da Baixaria”. Tem sido bem sucedida. A discussão vem crescendo, dentro e fora da Câmara dos Deputados. O episódio do Domingo Legal, do apresentador Gugu Liberato (SBT) é um exemplo. Em setembro, o programa colocou no ar uma entrevista com falsos bandidos do PCC (Primeiro Comando da Capital), que, encapuzados, ameaçavam seqüestrar autoridades de São Paulo e apresentadores de emissoras concorrentes. Houve uma verdadeira grita. O programa foi denunciado pela campanha (chegou a sair do ar por determinação judicial, por incitação ao crime) e os anunciantes retiraram o patrocínio. O programa do Ratinho vive divulgando testes de DNA, desrespeitando até a Justiça, já que, judicialmente, os conflitos familiares correm em sigilo. Ratinho também já divulgou cenas de sexo entre um pedófilo e crianças. E a TV Record chegou a exibir um suicídio ao vivo. Convenhamos, é demais.
NPC. Existem outras iniciativas para mudar esse quadro?
Lígia. Além da campanha pela ética na TV, existem outras iniciativas positivas no âmbito da sociedade organizada: por exemplo, o debate que vem sendo travado pelo Fórum Nacional de Democratização da Comunicação. No âmbito da Câmara dos Deputados, a deputada Jandira Feghali (PC do B – RJ) apresentou projeto de lei regulamentando dispositivo constitucional referente à regionalização da produção cultural, artística e jornalística das emissoras de rádio e TV e estabelecendo percentual mínimo dos programas de produção regional, que devem ser obrigatoriamente exibidos nas emissoras.
Enfim, são várias frentes de luta.
Março de 2004