[Por Gabriela Gomes/NPC] O programa da última quinta-feira começou com uma homenagem ao cantor e compositor, Sérgio Ricardo, que faleceu aos 88 anos na manhã deste dia 23 de julho. O NPC presta sua homenagem com um verso de Sérgio Ricardo: “Não tenho mágoas / não precisa vir me consolar / Mágoas são águas / Vão para o mar / Trago lembranças / E essas eu não posso apagar / São a herança do meu caminhar…”
Sérgio Ricardo, presente!
“Nasci filho de Marighella”, o orgulho e a admiração de ser filho de um dos maiores símbolos de resistência contra a ditadura
O convidado desta semana, Carlos Augusto Marighella, 72 anos, nascido no Rio de Janeiro mas que passou grande parte da sua vida na Bahia, onde mora atualmente, fala durante toda a nossa conversa com um imenso orgulho de seu pai. Conhecido também como Carlinhos ou Marighella filho, herda o nome de seu pai, Carlos Marighella, um dos maiores militantes que lutou contra o regime da ditadura militar e foi assassinado por agentes da repressão.
Eleito deputado estadual na Bahia em 1983, Carlos Augusto formou-se em direito; advoga na área penal, dedicando-se a temas relacionadas aos direitos humanos, ao combate à violência e perseguição às religiões da comunidade negra. Participou ativamente dos trabalhos da comissão nacional de anistia política e atualmente dedica-se a projetos culturais, especialmente à criação de uma rede de memoriais, entre eles, o Memorial Nacional da Anistia e o Memorial Marighella Vive.
Carlos Augusto, relembrando fatos de sua infância, conta que só conheceu o pai quando já tinha sete anos de idade, já que antes o Marighella pai vivia na clandestinidade, o que dificultava essa interação entre eles. Contou que até então não tinha nem certidão de nascimento e que, embora sem o conhecer, sabia que seu nome era uma homenagem a seu pai e também a seu avô (que se chamava Augusto Marighella) e que isto sempre foi motivo de honra.
Ele nasceu em 1948, ano que o Partido Comunista Brasileiro, em que o pai militou durante anos de sua vida, foi cassado e os comunistas impedidos de se candidatar. Segundo Carlos Augusto, era uma falsa democracia que viviam, como a que experimentamos atualmente: “É estarrecedor que no século 21, no Brasil, do tamanho que é, ainda haja alguém que possa dizer que a ditadura possa fazer algum bem ao país”, argumenta.
Durante o ano de 1956, Carlos conheceu o pai e recorda o momento alegre e a figura humana que foi Marighella por trás da figura histórica: “Meu pai era alegre, brincalhão; um pai extremamente carinhoso, desses que beijam filho; que me levava pra praia, e que brincava de corrida na praia… enfim essas brincadeiras”. Em uma carta que sua mãe recebeu do pai, estava escrito: “Eu amo meu filho mais do que as pessoas imaginam”, lembra emocionado.
Ele via o pai como uma pessoa extremamente humana, cheia de esperança e feliz consigo mesma. Um dos motivos dessa felicidade, ele afirma, era porque o pai lutava por algo em que acreditava. Tinha como suas paixões o carnaval, a música e a poesia. Marighella foi um homem popular e era apaixonado pelo povo brasileiro.
Carlos Augusto se recorda quando o pai, que foi se tornando uma figura conhecida, inclusive como liderança internacional, conheceu o morro pela primeira vez. Marighella ficou impressionado com a simplicidade do povo e a extrema felicidade daquelas pessoas. “A felicidade é uma coisa que a gente faz do tamanho que quer!”, afirma, acrescentando que, apesar de tudo que passou — anos de cadeia, clandestinidade etc. —, o pai era uma pessoa extremamente feliz!
A defesa da luta armada liderada por Marighella e a militância em sua vida
Carlinhos relembra que o pai sempre o estimulou a ler e o cobrava bastante acerca de suas leituras, mas nunca tentou influenciá-lo no sentido político. Mas ao mesmo tempo reconhece que a leitura o fez uma pessoa maior ainda, já que leu todo tipo de livro, o que, conforme conta, contribuiu para o seu crescimento pessoal e profissional.
Em 1964, precisou ir embora do Rio e voltar para Bahia. Estudou em uma escola pública de qualidade em que seu pai também havia estudado. De acordo com Carlos Augusto, a escola que era tida como “escola de liberdade”, foi fechada e depois “militarizada” durante a ditadura. Daí começou a vontade de lutar: filiou-se ao Partido Comunista entre os anos de 1967 e 68, antes do pai ser executado.
De acordo com Carlos Augusto, a ditadura militar não contou com o apoio popular em momento algum. Os militares “deram o golpe dizendo que iam convocar as eleições, mas, no final das contas, não cumpriram a palavra e conforme foram apertando o cerco, começaram a matar”. Em resumo, era um regime de terror que contava com sequestros, torturas e mortes. “A luta armada nasceu dessa vontade de se contrapor à ditadura, ela era um desejo igual de toda esquerda e, por incrível que possa parecer, era o que a população queria”, afirma Carlos Augusto Marighella.
Como advogado, Carlos Augusto ainda afirma que, do ponto de vista jurídico, houve um grande erro no processo da transição, pois os militares não foram julgados e condenados pelo que fizeram, e, por isso, estamos repetindo essa história: “Eles deveriam ter sido punidos, já que os métodos praticados pelos militares, torturar e matar, são crimes comuns e não crime político.”
A prisão, as lutas e a importância da criação do memorial
Quando entrou para o partido comunista, Carlos trabalhava em fábricas e participou de lutas sindicais. Foi baleado durante uma manifestação estudantil e então, por causa disto, foi demitido de uma fábrica em que trabalhava. Conta que, nessa época, participou de projetos em que ajudava famílias de presos políticos.
Em 1975, foi preso e torturado, juntamente com outras 48 pessoas, sendo uma das últimas prisões de opositores e que se deu em um momento em que já se vislumbrava o fim da ditadura militar. Carlinhos relata que eles eram levados para um centro de tortura clandestino onde as pessoas eram encapuzadas e depois torturadas.
Com intuito de conscientizar a população para os horrores da ditadura, ele desenvolve um projeto para criar uma rede de memoriais, “a exemplo do há no mundo todo”, explica. A ideia inicial é constituir, em um primeiro momento, uma memória com heróis anônimos e conhecidos, e assim resgatar outras iniciativas memorialistas espalhadas por todo Brasil. Outro desejo é tombar o local onde Marighella viveu com seus pais, para transformá-lo em um espaço onde possa se desenvolver atividades educativas e onde também seja possível guardar tudo o que pode ser recuperado como testemunho desse período, em uma espécie de acervo físico.
Para Carlos, a política oficial sempre foi a de apagar e silenciar a história para que o povo esqueça que tivemos ditadura. Por isso, a importância de resgatar essa memória social e oficializá-la.
Mesmo com todo esse esforço por parte daqueles que desejam que Marighella seja esquecido, Carlos declara orgulhoso: “Marighella está vivo e aonde vou sempre tem uma bandeira afirmando “Marighella vive!”, sempre tem alguém lembrando dele: é música, é poema, é filme… é impossível efetivamente apagar da memória da nossa juventude uma pessoa como ele.” conclui.
Um comunista
Um mulato baiano/Muito alto e mulato/
Filho de um italiano/E de uma preta hauçá
Foi aprendendo a ler/Olhando mundo à volta
E prestando atenção/No que não estava à vista
Assim nasce um comunista/Um mulato baiano
Que morreu em São Paulo/Baleado por homens do poder militar
Nas feições que ganhou em solo americano/A dita guerra fria
Roma, França e Bahia/Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! Os comunistas!/O mulato baiano, mini e manual
Do guerrilheiro urbano que foi preso por Vargas/Depois por Magalhães
Por fim, pelos milicos/Sempre foi perseguido nas minúcias das pistas
Como são os comunistas?/Não que os seus inimigos
Estivessem lutando/Contra as nações terror
Que o comunismo urdia/Mas por vãos interesses
De poder e dinheiro/Quase sempre por menos
Quase nunca por mais/Os comunistas guardavam sonhos
Os comunistas! Os comunistas!/O baiano morreu
Eu estava no exílio/E mandei um recado:
“Eu que tinha morrido”/E que ele estava vivo,
Mas ninguém entendia/Vida sem utopia
Não entendo que exista/Assim fala um comunista
Porém, a raça humana/Segue trágica, sempre
Indecodificável/Tédio, horror, maravilha
Ó, mulato baiano/Samba o reverencia
Muito embora não creia/Em violência e guerrilha
Tédio, horror e maravilha/Calçadões encardidos
Multidões apodrecem/Há um abismo entre homens
E homens, o horror/Quem e como fará
Com que a terra se acenda?/E desate seus nós
Discutindo-se Clara/Iemanjá, Maria, Iara
Iansã, Catijaçara/O mulato baiano já não obedecia
As ordens de interesse que vinham de Moscou/Era luta romântica
Ela luz e era treva/Venta de maravilha, de tédio e de horror
Os comunistas guardavam sonhos/Os comunistas! os comunistas!