Por Sérgio Domingues* | A atuação do coletivo Mídia Ninja (Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação) está no centro dos debates sobre jornalismo alternativo. Seus integrantes se destacaram no acompanhamento das manifestações populares que começaram em junho passado. A cobertura do coletivo foi fundamental na denúncia da violência policial e na divulgação das principais pautas dos movimentos. Furou o bloqueio dos monopólios da comunicação e mostrou compromisso com a informação e com as causas das manifestações.
Mas somente aos poucos vai ficando clara qual é a proposta dos ninjas. A presença de dois de seus membros no programa Roda Viva de 05/08, na TV Cultura, ajudou a esclarecer alguns pontos. Diante de jornalistas da grande imprensa, Bruno Torturra e Pablo Capilé deram uma demonstração de segurança quanto ao que fazem e no que acreditam. Enfrentaram com tranquilidade uma bancada que, em grande sua maioria, vacilava entre a hostilidade ignorante e a ignorância hostil.
Mas não deveríamos acreditar que a grande mídia observará tudo isso tranquilamente ou com temor. E não se trata apenas de ataques ao coletivo. Calúnias e insinuações quanto a quem está por trás de seus membros. Mais do que isso, uma proposta como a apresentada pelos ninjas, apesar de sua novidade, corre o risco de ser engolida pelo mercado.
Foi grande a pressão para saber quem banca o coletivo. Os jornalistas presentes sabem muito bem que quem paga a banda, escolhe a música. Torturra e Capilé não se intimidaram. Afirmaram que a Mídia Ninja faz parte do coletivo Fora do Eixo. Trata-se de uma rede solidária de coletivos distribuídos por todo o país e mantida por recursos públicos, obtidos por edital, afirmaram os entrevistados. Sua dinâmica colaborativa e horizontal permitiria potencializar o uso desses recursos. Uma espécie de moeda própria circularia pela rede, viabilizando shows e eventos artísticos, artistas e trabalhadores culturais.
Há muita polêmica cercando esse modo de funcionamento do Fora do Eixo. Principalmente, nas redes virtuais. Muitos apoiam e elogiam a iniciativa, como inovadora e comprometida com a produção cultural alternativa. Mas também há acusações de centralismo, falta de democracia, oportunismo, relações privilegiadas com governos, utilização pouco transparente dos recursos etc.
Mas digamos que as críticas não procedam. Consideremos que o coletivo realmente funcione como seus divulgadores afirmam. Ainda assim, é preciso considerar uma série de questões. A começar pela relação com o mercado.
Para ficar apenas na questão da Mídia Ninja, no programa Roda Viva Torturra deixou muito claro quais são os objetivos perseguidos pelos ninjas. Disse que o ideal do coletivo é tentar criar uma rede financeiramente viável que dê conta não só da demanda por informação de qualidade, mas oferecer oportunidade de trabalho a jornalistas que não encontram vagas no mercado ou que estão sendo despedidos das grandes redações. Portanto, trata-se de uma aposta de mercado, ainda que na contramão dos monopólios que o dominam e se apresente sob a forma de um empreendimento solidário.
Ocorre que não há horizontalidade profissional e princípios colaborativos que possam fazer frente às leis da concorrência capitalista, cada vez mais selvagens. A não ser que a proposta seja aderir a elas. E nesse caso seria bom lembrar uma análise de Rosa Luxemburgo sobre os limites da produção cooperativada. O trecho é de “Reforma ou Revolução”, uma das maiores obras da grande revolucionária:
… na economia capitalista a troca domina a produção; por causa da concorrência exige, para que a empresa possa sobreviver, uma impiedosa exploração da força do trabalho, quer dizer. a dominação completa do processo de produção pelos interesses capitalistas. (…) Daí uma cooperativa de produção ter a necessidade, contraditória para os operários, de se governar a si própria com toda a autoridade absoluta necessária e de os seus elementos desempenharem entre si o papel de empresários capitalistas. Dessa contradição morre a cooperativa de produção, ou tornando-se uma empresa capitalista ou, no caso em que os interesses dos operários são mais fortes, se dissolvendo. Estes são os fatos.
É certo que os representantes da Mídia Ninja não concordariam com tal argumentação. Pelo que disseram no programa da TV Cultura, vivemos num momento “pós-industrial”, que já teria superado as contradições a que se refere Rosa. Além disso, a iniciativa que propõem não poderia ser caracterizada como uma cooperativa de produção, mas de serviços criativos.
No entanto, uma coisa é inegável. Os lucros movimentados pelo setor de comunicações e produtos culturais são cada vez mais astronômicos. Queiram ou não os ninjas, o setor obedece à lógica da rentabilidade acima de tudo, chamemos ou não isso de capitalismo industrial, de capital material ou imaterial, de setor de transformação ou de serviços. E pequenas iniciativas criativas e inovadoras não são necessariamente contraditórias com essa lógica.
Novamente recorremos a Rosa e ao seu texto, publicado mais de um século atrás. Ainda em “Reforma ou Revolução”, ela diz:
No curso geral do desenvolvimento capitalista, os pequenos capitais desempenham o papel, na teoria marxista, de pioneiros da revolução técnica, e isso de maneira dupla: em primeiro lugar no respeitante a novos métodos de produção nos setores antigos fortemente enraizados, depois pela criação de novos setores de produção inexplorados pelos grandes capitais.
Como a comprovar essa tese, basta observarmos as gigantes empresariais que nasceram em garagens, sótãos e porões, como Microsoft, Apple, HP, Google e Youtube. Até pouco tempo atrás, considerados instrumentos de inovação criativa e democratização da informação. Recentemente, foram desmascarados como colaboradores do sistema de espionagem estadunidense. E agarram-se a suas posições monopolistas como os velhos tubarões do capitalismo.
De qualquer maneira, vivemos em tempos de ditadura midiática. E sob uma ditadura, as forças que a ela resistem devem buscar a maior unidade possível. Os ninjas são muito bem vindos às mobilizações populares na luta anticapitalista. Anticapitalista!
*Sérgio Domingues é sociólogo e autor no blog Pílulas Diárias.