“Em 2013, durante a distribuição do jornal, tiramos uma foto que talvez seja o último registro do Amarildo vivo. Meses depois, ele desapareceu, e ao ajudar sua sobrinha na divulgação, me recordei desta foto. Ela nos faz lembrar que, através do jornal, cruzamos com a vida dos moradores da Rocinha o tempo todo”. Esse é um trecho da conversa com Michelle Silva, 32, uma das jornalistas que entrevistamos. Ela é da equipe do “Fala Roça”, jornal impresso que circula na favela da Rocinha.
Um estudo, ainda em andamento, do NPC, nos mostra que há em torno de 70 equipes de comunicação comunitária no Rio, mas apesar do grande número de participação das mulheres, elas ainda são poucas no comando dos jornais. Nessa matéria, trouxemos a vida da Michele, da Jéssica Santos, 33, e da Thaís Cavalcante, 26, comunicadoras comunitárias há mais de dez anos. As conversas duraram em média uma hora cada, e dentre os vários assuntos, abordaremos alguns deles:
Michele Silva, 32, “Fala Roça”
Michele tinha 14 anos quando se envolveu na rádio poste da Rocinha, “nessa época as rádios comunitárias estavam em alta, e a juventude tocava a programação musical. Eu curtia funk e pagode, e adorava participar”. Com o tempo, “entendi que a rádio era um ótimo instrumento para divulgação, por exemplo, do calendário de vacinação”, e entre uma música e soltava informações que interessassem aos moradores da favela.
Em 2009, já na faculdade de Comunicação Social, ela e outros amigos fundaram o “Viva Rocinha”, um blog que abordava a história da favela, e também informações do território. Insatisfeitos com o pouco acesso, em 2013, o grupo migrou seus esforços para o jornal impresso, o atual “Fala Roça”. Michele explica que todos os processos para a produção da matéria são fundamentais, e a distribuição corpo a corpo deve ser inserida no cotidiano da equipe:
“Nossa tiragem é de cinco mil exemplares, que são distribuídos a cada dois meses. Percebemos, nos sete anos de atuação, que em toda distribuição nos aproximamos mais dos moradores. Uma vez publicamos uma reportagem sobre um vendedor de sonho [pão com creme doce], de porta em porta, com uma bandeja na cabeça. Depois que o jornal foi distribuído, ele explicou que estava feliz, pois ‘antes as pessoas me chamavam apenas de homem do sonho, e agora elas sabem que o meu nome é Nilson’”.
Já na pandemia, o “Fala Roça” se separou, no início, em duas frentes: “Uma foi a Frente de Solidariedade, responsável por parte da captação de recursos, compra e distribuição das doações da Rocinha, em torno de oito mil famílias foram beneficiadas. Já a segunda, uma equipe de jornalistas, cobriu a pandemia na favela. Fomos responsáveis por diferentes denúncias, como os tomógrafos colocados na igreja do prefeito [Marcelo Crivella (Republicanos)]”.
Jéssica Santos, 33 anos, “Ainda não pensei”
“Me encontrei com a comunicação comunitária antes da faculdade, quando, ainda adolescente, descobri uma rádio da comunidade em que eu nasci, no bairro do Barreto, em Niterói”. Assim como a jornalista do “Fala Roça”, Jéssica dirigiu um programa de música na rádio, e dava play em músicas de heavy metal. Segundo a jornalista, foi lá que aprendeu a operar uma mesa de som, mas também sobre comunicação comunitária.
Quando jovem, fez faculdade de Comunicação Social, e, “motivada com a experiência que tive com o NPC, sobretudo, porque fui estagiária da Claudia Giannotti, meu trabalho de conclusão de curso foi sobre sustentabilidade em comunicação comunitária”. Em 2012, já formada, Jéssica abriu uma produtora de comunicação e cultura, a Paiol Cultural, e formulou oficinas de comunicação comunitária para jovens favelados.
“Tivemos a oportunidade de propor duas oficinas em parceria com o SESC – Niterói, que foram aplicadas para jovens e crianças na comunidade do Grotão e do Preventório”. O objetivo do grupo foi, além de aplicar conceitos e técnicas básicas de comunicação, falar de sua importância para as vidas dos alunos.
Segundo Jéssica, as alunas do Preventório, apesar de novas, se entusiasmaram, e o jornal existe até hoje. “Dois meses depois de finalizadas as oficinas, produzimos, como material de conclusão, o jornal ‘Ainda não pensei’. Uma das jovens, Karine, a mais velha do grupo na época, permaneceu entusiasmada e participou de cursos do NPC. Em 2018, montou um projeto, ganhou um edital da cidade, e conseguimos retomar o jornal”.
A jornalista explica que a pandemia foi um disparador para a consolidação da nova equipe. “Nos espelhamos na Frente de Mobilização da Maré, e fizemos vários materiais. Produzimos faixas de prevenção e boletins online, escrevemos uma carta ao comércio para levar aos estabelecimentos do território. Tudo pensado para a realidade do morador de favela”.
Para Jéssica, o melhor exemplo de como a comunicação popular pode incidir na vida das pessoas, é a jovem Karina. “Eu acredito que a comunicação comunitária permite que você olhe onde vive com um olhar de potência. Desde o início, ela se agarrou às aulas, e nunca esqueceu os conteúdos que aprendeu. As formações, tanto nas minhas oficinas, como nas do NPC, criaram nela um compromisso local com o seu território”
Thaís Cavalcante, 26, Colaboração em Maré de Notícias e NPC
Em 2012, há quase dez anos, Thaís, ainda menor de idade, conheceu o jornal impresso que mudou a sua vida. “Gosto de brincar que há a Thaís antes e depois da minha passagem pelo jornal ‘O Cidadão’”. A jornalista conta que apesar de cria da favela Nova Holanda, na Maré, e participar de projetos sociais, demorou para ter uma visão positiva de onde mora, e que o jornal foi fundamental para a mudança de perspectivas.
“No ‘O Cidadão’ fiz cursos de comunicação comunitária, e participei da equipe. Conheci histórias da Maré, os nomes das ruas, e quem eram as pessoas que construíram a nossa favela. Refleti, inclusive, do quanto minha família foi importante para tudo isso. Porque, apesar de visitar as múltiplas favelas e morar aqui, eu não as conhecia profundamente”.
Depois que o jornal deixou de existir como impresso, Thaís participou da Revista Viração; da rádio da Maré; e contribuiu como colaboradora em jornais como o Vozes das Comunidades, do NPC, do Voz das Comunidades On-line, do Rene Silva, e com o da Vila Olímpia. No início da pandemia foi integrada como repórter do impresso Marés de Notícias, onde ainda atua como colaboradora.
Conversamos sobre sua passagem pela Maré de Notícias, e apaixonada, ela relembra que ainda n’O Cidadão, já namorava o impresso. “É um jornal com 50 mil exemplares que circula, de porta em porta, pelas favelas da Maré, e impacta de verdade a vida dos moradores”. Como repórter, busca trazer conteúdos com dados sobre a pandemia produzidos por instituições da própria Maré; mas também busca escrever sobre as expressões culturais dos moradores.
“No meu plantão de natal, escrevi sobre mulheres ceramistas, que durante a pandemia precisaram parar suas produções por serem idosas, e o trabalho precisar ser presencial. A repercussão foi enorme, soube depois que o curso on-line que elas disponibilizam, teve mais inscrições do que o esperado”.
E quem quer começar a fazer comunicação comunitária?
As jornalistas deram algumas dicas:
As três jornalistas seguem o mesmo caminho: Quem quer fazer comunicação comunitária em sua favela deve aprender fazendo. Michelle relembra que a nova geração está em vantagem, pois quando começou existiam poucos vídeos com conteúdos educativos disponíveis na internet. “Para quem não sabe editar um vídeo, é só ir até o Youtube, pode ter certeza que alguém já produziu conteúdo para responder à sua dúvida”.
Jéssica e Thaís têm a mesma dica, que complementa a de Michelle. Comece! Segundo Jéssica, “Se você for esperar ter recurso, equipamento, equipe e estrutura, você nunca vai começar. De início, reflita o que você pode fazer com o que tem em casa. ‘Ah, eu só tenho papel e caneta’. Então faça um cartaz, e cole no poste. Isso é comunicação comunitária”.
Thaís acrescenta: “Se não sabe por onde começar, vá atrás de quem você admira, e se inspire. Além disso, participe da equipe do jornal do seu bairro, e aprenda com quem já sabe. Colocar em prática é a melhor forma de aprender o que você quiser.”.