Conexões Periféricas entrevista o professor Marcelo Badaró

[Jean Dantas* ]O dia 3 de março foi, até então, o mais letal de toda pandemia. Nesta data, o portal Conexões Periféricas-RP, junto com o Núcleo Piratininga de Comunicação debateu um tema importantíssimo para a classe trabalhadora: a história de suas lutas e de sua organização através do sindicalismo. 

Abordar o respectivo tema, sobretudo nos últimos anos, passou a ser um processo pedagógico. Afinal, o assunto ou está envolto em dúvidas, ou não é do conhecimento de boa parte da classe trabalhadora. 

O convidado da noite de estreia do programa Sindicalismo nas favelas foi o professor Marcelo Badaró, autor de diversos livros sobre o tema. Badaró é doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor titular em História do Brasil também na UFF.

Porto, século XX

Badaró iniciou sua participação apresentando algumas fotografias e foi explicando a história de cada uma. Na primeira, tratava-se de uma foto do início do século de trabalhadores no porto do Rio de Janeiro. “No porto, há muitas categorias como a gente conhece hoje. Há o pessoal que tira e põe os objetos dos navios, que a gente chama de estivadores. Há o pessoal que trabalha nos armazéns, que hoje em dia chamamos de arrumadores. Naquela época os armazéns chamavam-se trapiches, pelas imagens podemos observar que não existia tecnologia nos portos, o trabalho era todo manual”, explicou o professor. 

Primeira greve geral

A primeira greve geral do Rio de Janeiro aconteceu em 1903. Badaró descreveu o cotidiano de trabalhadores e trabalhadoras e as circunstâncias que levaram à paralisação. O movimento se iniciou nas fábricas de tecidos e se espalhou feito um “rastilho de pólvora” pela cidade toda. As pessoas trabalhavam 12 horas ou mais por dia. “Não existia nenhuma legislação garantindo direitos aos trabalhadores, a exploração era intensa, salários baixos, condição de vida precária”, conta Badaró.

A classe trabalhadora estava em efervescência. Uma das classes cujas condições de trabalho eram ainda mais precárias era a dos trabalhadores do Porto, conforme explica Badaró:

Na época, não havia legislação dizendo o que era emprego formal, com direitos. Na tese, todos eram informais. Mas esses eram mais informais ainda, eram chamados de trabalhadores avulsos. O trabalhador ia para porta do trapiche, podendo ou não ser chamado para trabalhar naquele dia. Podia ficar uma semana sem trabalhar. Esses trabalhadores entraram em greve em 1903, contra esse tipo de condições de trabalho.

A partir dessa greve, analisamos o início da organização sindical por parte dos trabalhadores, tendo como pioneiros os estivadores, que criaram então a União dos Estivadores. Nessa época, o café era o principal produto de exportação nacional, movimentando os portos. Badaró frisou a importância dos estivadores para a organização sindical, “entre 1904 e 1905, os trabalhadores que atuavam nos trapiches, especialmente no carregamento de café, constituíram o que ficaria conhecido em 1905 como Sociedade de Resistência dos Trabalhadores de Trapiches de Café”.

Legado escravista

Estamos analisando o começo do século XX. Sendo assim, não há como dissociar as condições de vida e de trabalho do legado escravista. Badaró apresenta a imagem da ficha de inscrição de um dirigente desse sindicato e ressalta:

Esses trabalhadores eram em sua maioria negros. Eles vinham dos tempos da escravidão em alguns casos, como o do sr. Cândido Manoel Rodrigues, um dos fundadores da Sociedade de Resistência dos Trabalhadores de Trapiches do Café. Ele nasceu em 1869, em plena vigência da escravidão. Antes até da Lei do Ventre Livre.

Organização sindical 

Por meio de reivindicações, greves e embates com os patrões, esses grupos de resistência, conquistaram diversos direitos trabalhistas, que configuraram vitórias importantes, como ressalta Badaró: “eles conquistaram através dos sindicatos, algo que durou durante muito tempo, durou até os anos 90 no Brasil, que era o sindicato ter o controle sobre a contratação e distribuição do tempo de trabalho deles”.

A distribuição realizada pelo sindicato ajudou a organizar a rotina de trabalho no Porto, o que foi um avanço significativo para uma categoria marcada pela exploração, instabilidade e informalidade. Ainda no início de século XX, São Paulo despontou como a principal cidade industrial do país. Essa industrialização foi marcada pela luta da classe operária por direitos e melhorias nas condições de trabalho. Luta evidenciada em 1917 por uma grande greve geral.

A greve geral de 1917

Acerca da greve, conta Badaró:

A greve geral de 1917 começou também nas fábricas de tecidos e se generalizou pela cidade de São Paulo. Houve uma negociação coletiva imposta aos patrões e ao governo. Eles conquistaram uma série de avanços. Depois, claro, o governo reprimiu, os patrões não cumpriram acordos… a gente já conhece como funciona a história das lutas dos trabalhadores. Elas vão e vêm, porque os trabalhadores não estão sozinhos no “campo de jogo”; há o adversário do outro lado e ele não se cansa de jogar sujo.

A partir desse período da história, foi constatada uma grande adesão aos movimentos sindicais, paralelamente a um aumento na repressão por parte do governo e dos patrões. Não obstante, essas mobilizações resultaram em uma série de conquistas para a classe operária. Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder em 1930, a luta dos trabalhadores e a organização sindical ganharam novos contornos.

Getúlio Vargas

Neste ponto, Badaró destacou:

A partir dos anos 30, o governo federal começa a aprovar leis que asseguravam alguns direitos para classe trabalhadora. São conquistas das lutas das décadas anteriores, mas o governo “amarra” essas leis a outro tipo de legislação. Que se chama legislação sindical, que reconhece o sindicato, mas “aprisiona” o sindicato em uma série de regras que limitam o seu funcionamento a aquilo que é estabelecido por essas regras que vinham do Ministério do Trabalho. Os sindicatos precisavam ser reconhecidos, só poderia ter um sindicato por categoria e região.

Nesse sentido, observou-se uma ambiguidade com os avanços da era Vargas, uma vez que pautas reivindicadas por décadas foram conquistadas. Contudo, os sindicatos foram silenciados ou aparelhados pelo Estado. A relação entre trabalhadores, sindicatos e patrões nos anos da Era Vargas foi marcada pela conciliação.

Esse enquadramento dos sindicatos numa série de regras, numa estrutura que a gente chama de “sindicato oficial”, ele continuou no Brasil e tem traços fortes até hoje no sindicalismo brasileiro. Havia uma limitação nas lutas sindicais.  

Ditadura militar e luta sindical

O período da Era Vargas apresentado pelo professor Marcelo Badaró foi quase que em sua totalidade uma ditadura, o que certamente foi um empecilho para a concretização de avanços sociais e trabalhistas. 

Especificamente sobre a década de 1960, Badaró dimensionou os avanços das lutas sindicais e as dificuldades impostas pelo regime militar. Veja-se:

Em 1962, acontece a primeira greve geral nacional do Brasil. Funda-se o “embrião” da central sindical que era o CGT, Comando Geral dos Trabalhadores. É por conta dessa capacidade de luta da classe trabalhadora, não só na cidade, mas no campo também, lutando pela reforma agrária,  é que a gente começa a entender por que a classe dominante brasileira se articulou com os militares para derrubar o governo naquele período, que era o governo João Goulart, derrubado em 1964.

A ditadura imposta em 1964, foi marcada pela repressão imposta aos movimentos sociais, pela cassação de direitos políticos, por intervenções nas direções de sindicatos, entre outras medidas de controle. Foram anos difíceis, nos quais sindicatos e movimentos sociais enfrentaram uma violenta repressão. 

Por outro lado, Badaró exaltou a luta contínua que ocorreu, mesmo diante de uma ditadura:

Ainda assim, houve luta na ditadura militar. Houve luta em 1968 e voltou a ter luta no final da década de 1970. Grandes greves em 78,79 e 80 apareceram em cidades industrializadas e também no interior do Brasil. Nas mais diferentes categorias profissionais, em plena ditadura, o movimento sindical se erguia.

A Ditadura Militar representou um enorme retrocesso para os movimentos sociais e para a classe operária, tendo sido manifesta a precarização e o sucateamento das condições de trabalho, além da utilização de um sistema ineficiente de saúde, o precário acesso ao saneamento básico, restrito a poucas camadas sociais, o arrocho salarial, entre outros problemas que transformam a década de 1980 em um período relevante na história de lutas sociais do país.

Novo sindicalismo e o fim da ditadura

Conta Badaró: 

Esse momento do novo sindicalismo, como foi chamado ali em 1978, 1979 e 1980, ele se estendeu ao longo da década de 1980 e não era só o sindicalismo que estava se reerguendo: os movimentos em geral ligados às classes trabalhadoras, movimentos de lutas nos bairros, movimentos de luta pela saúde, pelo transporte coletivo. No campo retomasse a luta pela reforma agrária (…) Os anos de 1980, foram anos de muitas lutas, a classe trabalhadora construiu organizações novas, centrais sindicais, partidos políticos de esquerda, disputou o espaço político no final da ditadura.

Chegada a década de 1990, evidencia-se a ascensão das políticas neoliberais. A afirmação desse projeto político significava um novo retrocesso nas conquistas realizadas nas décadas anteriores. 

Nesse sentido, Badaró arguiu: 

Esse sindicalismo combativo dos anos 80 teve muita dificuldade de enfrentar o novo período que se abriu nos anos 90. No plano das relações de trabalho nas fábricas, nas empresas, uma reestruturação produtiva significou corte de empregos, gerou um desemprego muito elevado.

A década do neoliberalismo

Como vimos, no início da década de 90, há a consolidação das políticas neoliberais. Essas propostas afetaram as estruturas sindicais e os direitos trabalhistas, conforme relata Badaró:

A partir da década de 90, a gente assiste também a uma expansão da lógica da conciliação de classes, no sindicalismo de resultados, no sindicalismo que, segundo o qual, negociando com os patrões as coisas seriam menos pior para os trabalhadores. Essa lógica de negociação, da conciliação, foi cedendo espaço para retiradas profundas de direitos. E a gente não reverteu isso mais, dos anos 90 pra cá. A constituição de 1988 reconheceu direitos novos para a classe trabalhadora,  direitos trabalhistas, direitos sociais… Mas isso começou a ser revertido nos anos 90, e de lá pra cá, o que a gente vive é uma profunda situação de perda de direitos.

A trajetória do sindicalismo no país, está diretamente relacionada à história de lutas por direitos. Desde os trabalhadores informais da região portuária no começo do século XX, passando por uma ascensão de conquistas a partir da década de 1930. Atravessando mais tarde um período sombrio de repressões e intervenções durante a ditadura militar, vivendo a esperança por dias melhores na década de 1980, tendo na redemocratização e na elaboração da Constituição de 1988 o seu grande ápice. Revivendo momentos de desmonte, com as políticas neoliberais da década de 1990. Acompanhando a chegada dos anos 2000, com as relações trabalhistas precarizadas e sucateadas. Culminando na atualidade, com a uberização das relações trabalhistas, a precarização sendo vendida como liberdade e empreendedorismo.  As lutas nunca foram fáceis, mas nosso povo sempre lutou.

Este programa foi ao ar no dia 03 de março de 2021.

Jean Dantas* é professore de História e faz parte da Rede de Comunicadores do NPC

Edição de Texto e revisão: Moisés Ramalho, jornalista e antropólogo.