Por Sérgio Domingues, junho de 2004. O filme O Dia Depois de Amanhã , do diretor Roland Emmerich, poderia servir como um alerta para o problema do aquecimento do planeta. Mas, as necessidades comerciais de Hollywood transformam tudo em diversão inconseqüente.

Dizem que a superprodução foi inspirada pelo relatório do Pentágono que vazou para a imprensa em 9 de fevereiro passado. A responsável pelo furo foi a revista norte-americana Fortune. No Brasil, o relatório foi capa da revista Carta Capital nº 280, de março deste ano.

Segundo o documento do Pentágono, entre 2010 e 2020, haveria grande possibilidade de acontecer uma virada no clima do planeta. O aquecimento da atmosfera terrestre provocado pela grande quantidade de gás carbônico levaria ao derretimento das geleiras do Ártico e ao aumento de volume de chuvas. Com isso, a água do mar teria seu teor de sal alterado diminuindo sua densidade média. Uma das principais conseqüências seria verificada na corrente marítima do Golfo. Ela é responsável por manter altas as temperaturas do norte do planeta. Com seu ciclo afetado, aquela parte do planeta sofreria uma queda brutal da temperatura.

Plantações, criações de animais, a própria sobrevivência humana, se tornaria impossível. Regiões altamente produtivas como o meio-oeste norte americano passariam a sofrer os efeitos de grandes secas e vendavais. A disputa pelo controle das fontes de água passaria para o centro do cenário mundial. O acesso a rios como o Nilo e o Amazonas passariam à condição de grande objetivo militar. Guerras seriam travadas por recursos naturais e não mais por motivos ideológicos, religiosos ou nacionalistas.

Tudo isso já vinha sendo discutido por ambientalistas do mundo inteiro. O aquecimento global é provocado pelo excesso de gás carbônico na atmosfera, devido à queima de combustível fóssil. Petróleo, basicamente. A própria Eco-Rio 92 previu a ameaça e criou o Protocolo de Kyoto para diminuir a emissão desse tipo de gás. Os maiores responsáveis pelo enorme volume do gás são os paises industrializados do norte. Estados Unidos, à frente. Mas são exatamente os donos do império do norte os principais inimigos da adoção de políticas para diminuir a emissão de carbono. E a subida ao poder de um governo conservador e reacionário como o de Bush só reforçou essa posição.

Portanto, o relatório do Pentágono entra em contradição com a linha do governo norte-americano. Mas, o Pentágono é o centro militar dos Estados Unidos. Seus cérebros estão treinados para pensar no longo prazo com o objetivo de manter o domínio norte-americano no mundo. O documento não foi elaborado por preocupações ambientalistas, mas para preparar militarmente o país para um provável cenário de conflitos.

Claro que um documento como esse tinha tudo para inspirar a indústria cinematográfica estadunidense. Mas, tal como as intenções do Pentágono, o filme nada tem a ver com o aumento da consciência ambiental.

O México bate a porta na cara dos americanos: improvável
Em primeiro lugar, a produção mostra um processo acelerado e em curto prazo do congelamento da parte norte do planeta. Uma hipótese improvável. É o que diz numa entrevista publicada na Carta Capital nº 294, o especialista em aquecimento global, Wally Broecker. Broecker é o responsável pela teoria que relaciona as correntes marítimas às mudanças do clima do planeta. Ele diz que a probabilidade de um cenário como o mostrado no filme é muito pequena. Hoje, não haveria água suficiente nas calotas polares para provocar a diminuição do sal da água marinha. Isso seria mais provável somente daqui a uns 500 anos. O perigo mais imediato, segundo ele, são as conseqüências do aquecimento global, que pode ocorrer em uns 50 anos e atingir mais fortemente o hemisfério sul da Terra.

Claro que uma produção hollywoodiana não perderia a chance de mostrar acontecimentos dramáticos como pessoas congelando em segundos e a água marinha inundando Nova Iorque para virar gelo logo em seguida. Mas é por isso mesmo que a indústria cinematográfica é o pior caminho para qualquer intenção de conscientização. Como se trata de um cenário improvável, a tendência é de que as pessoas se assustem momentaneamente para esquecer tudo em muito pouco tempo.

Além disso, todo o drama se passa no norte. A catástrofe climática é mais provável no sul, mas cidadãos de paises pobres morrendo são menos atraentes para o grande público. Seria somente mais uma tragédia na trágica vida dos habitantes abaixo do Equador. Há imagens rápidas de inundações em países do sul, mas o que marca mesmo são as imagens do drama vivido por cidadãos norte-americanos em suas cidades congeladas. É a colaboração do filme para reforçar a tendência dos ianques de se comover apenas sob a ameaça de seus respectivos narizes congelarem.

Do ponto de vista político, há uma situação irônica e outra maliciosa. A ironia fica por conta da corrida dos habitantes do norte em direção ao sul para fugir do frio. Os estadunidenses tentam atravessar a fronteira mexicana e são impedidos. As cenas de norte-americanos dando com a cara na porta mexicana não deixam de ser cômicas. A situação perde um pouco da graça quando o governo norte-americano oferece o perdão da dívida externa mexicana em troca da abertura das fronteiras e obtém sucesso. Claro que na vida real, dificilmente um governo mexicano deixaria de oferecer asilo imediato aos senhores do norte. Mas mesmo que viesse a fazer isso, seria mais fácil o governo estadunidense somente lembrar da existência da dívida externa mexicana para alegar seu direito a invadir militarmente a casa dos devedores.

A malícia do diretor aparece no fato de mostrar como vilão da história o vice-presidente dos Estados Unidos. Este se recusa a ouvir as advertências dos cientistas quanto à iminência da mudança climática. Usa sua influência junto ao presidente para impedir a adoção de medidas de prevenção. Somente perto do final do filme, o chefe do governo norte-americano livra-se dos conselhos do maldoso auxiliar. Como em todo filmão estadunidense que resolve criticar o poder, Depois de Amanhã focaliza o sistema político ianque como algo que funciona bem. O que pode afetar seu funcionamento são pessoas com más intenções. Algo que mostra que a indústria de entretenimentos americana tem lá suas diferenças sérias com o governo Bush. Mas, nada que sua substituição por alguém menos explicitamente conservador não resolva.

Enfim, trata-se de um claro exemplo do poder de distorção da indústria cinematográfica. A ameaça de mudanças climáticas perigosas é a própria denúncia da impossibilidade de o planeta continuar a viver sob os padrões capitalistas. Padrões que combinam altos índices de consumo e desperdício, de um lado, e muita fome e carências, do outro. No entanto, a produção de 125 milhões de dólares de Emmerich transformou tudo em diversão inconseqüente. Algo que fará milhões de pessoas refletirem por alguns segundos antes de partirem em seus automóveis com destino à primeira sorveteria.