Parentes de vítimas da violência estatal, moradores do asfalto e de outras comunidades subiram o Morro do Borel para denunciar a violência estatal e ausência de serviços públicos nas favelas
Por Marina Schneider, Euro Mascarenhas, Alan Tygel e Sheila Jacob – Núcleo Piratininga de Comunicação
No sábado, 20 de abril, pais e parentes de vítimas da violência estatal, moradores e apoiadores da luta contra violação dos direitos dos moradores de favelas participaram de uma manifestação que lembrou os 10 anos da Chacina do Borel. Em 16 de abril de 2003, Carlos Alberto da Silva Ferreira, Carlos Magno de Oliveira Nascimento, Everson Gonçalves Silote e Thiago da Costa Correia da Silva foram assassinados por policiais militares na favela da zona norte do Rio de Janeiro.
Os quatro jovens não tiveram tempo de se identificar e foram executados com tiros à queima-roupa disparados por policiais do 6º Batalhão da Polícia Militar (BPM), que realizavam uma operação na favela. Os assassinatos foram registrados como autos de resistência (termo técnico que indicaria um confronto armado entre polícia e “criminosos”). Depois, perícias da Polícia Federal e do Instituto de Criminalística Carlos Éboli concluíram que os quatro jovens haviam sido executados em uma emboscada.
Os manifestantes subiram a Estrada da Independência, uma das principais vias de acesso à comunidade, em direção à Vila da Preguiça, local onde três dos quatro rapazes foram assassinados. Lá foi afixada uma placa em homenagem à memória das vítimas. Maria Dalva Correa da Silva, mãe de Thiago, morto aos 19 anos, lembra que os policiais tentaram forjar até o local onde ocorreram os crimes. “A polícia alegou que tinha sido lá em cima, no Verão Vermelho. Para a gente é importante que esta placa fique aqui, realmente no lugar onde aconteceu a chacina”, ressaltou.
Na placa, estão os nomes dos jovens e a frase Não nos deixaram falar, mas muitos falarão por nós. Segundo Maria Dalva, o intuito da caminhada foi mostrar que as violações contra jovens continuam acontecendo. “Minha luta vai continuar até o fim, não pelo meu filho, que já se foi e não volta mais, mas pelos que estão aqui, principalmente os jovens”, disse. “O meu filho era mecânico e sonhava em ser engenheiro. Infelizmente o sonho dele foi interrompido, mas eu sonho que daqui do Borel ainda saiam muitos engenheiros”, desabafou.
Um ato para lembrar os 10 anos
Em solidariedade, parentes de vítimas da violência policial em outras favelas do Rio também participaram do ato, que reuniu cerca de 100 pessoas. “Nós somos solidários pelo que aconteceu e ainda acontece não apenas no Borel, mas em outras comunidades também”, explicou Maria do Socorro, moradora da Indiana, favela vizinha do Borel. Na fala de muitos participantes surgiu a denuncia de que a violência policial continua existindo em várias comunidades do Rio de Janeiro, mesmo após a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP).
A moradora Mônica Santos Francisco recordou a caminhada de maio de 2003, que reuniu cerca de mil participantes que andaram em silêncio do Borel à Praça Saens Peña, um dos pontos centrais e de maior movimento da Tijuca, em protesto contra a chacina do mês anterior. “Há 10 anos caminhamos com o coração sangrando. Descemos a favela com muito medo porque sempre taxaram que quando o morador da favela desce é para fazer baderna. E naquele dia a gente desceu em silêncio, mostrando nossa dor e indignação”, lembra. Para Mônica, hoje os moradores estão atentos e pensando sobre a favela em que vivem. Um exemplo concreto foi o “Ocupa Borel”, mobilização articulada por jovens e que reuniu centenas de pessoas na comunidade no dia 5 de dezembro do ano passado, em protesto contra o toque de recolher imposto pela UPP do local. “A gente quer que a juventude tenha direito de ir e de vir. O mote do “Ocupa Borel” foi que, se disseram que o território foi devolvido para nós, então nós queremos ter de fato direito a usufruir deste território”, ressaltou.
“O passado marcou a gente, nós não esquecemos e estamos aqui cobrando”, disse Marlene Paula Afonso, moradora do Borel. “A única coisa que nós não temos hoje é tiro, mas não temos infraestrutura, moradia e saúde. Nós queremos mudança de fato”, destacou.
“Lutando para que a violência não atinja os grupos já definidos como inimigos é que nós vamos poder ter a segurança da sociedade toda”, afirma delegado
Orlando Zaccone, delegado da 15ª Delegacia da Gávea, era o delegado titular da 19ª DP, da Tijuca, onde fica o Borel, em 2003. Ele acredita que as manifestações dos moradores à época e também neste sábado, foram importantes, mas avalia é preciso avançar para que se discuta a fundo a violência. De acordo com o delegado, é preciso ampliar o debate sobre a forma como se legitima a morte de traficantes no Rio de Janeiro. “É justamente com base nisso, com o “kit drogas” e todos aqueles elementos apresentados na delegacia que se tenta legitimar a violência”, ressalta. Para ele, um caminho para combater esta prática seria dar um tratamento equiparado a um homicídio comum sempre que um policial matar uma pessoa. “Hoje nós ainda temos uma distinção. Na capital, a Delegacia de Homicídios cuida de todos os homicídios, mas não é responsável pelos autos de resistência, o que já significa um tratamento diferenciado”, aponta.
Na época, a mídia ouviu apenas um lado: o dos policiais
Saiba mais sobre a chacina
A do Borel não foi a única. É uma rotina de mortes e impunidade. Em 1990, 11 jovens moradores da favela de Acari, zona norte do Rio, desapareceram. Foram sequestrados por um grupo que se identificava como policiais. As mães, que ainda buscam seus filhos e lutam por justiça, ficaram conhecidas como as Mães de Acari. Três anos depois, sempre no Rio, mais duas chacinas cometidas por policiais: Candelária e Vigário Geral.
10 anos depois de Vigário Geral e Candelária, a vez do Borel
No dia 16 de abril de 2003 16 policiais do 6º Batalhão de Polícia Militar assassinaram quatro rapazes. Carlos Alberto da Silva Ferreira tinha 21 anos e era pintor e pedreiro; Carlos Magno de Oliveira Nascimento, tinha 18 anos e era estudante; Everson Gonçalves Silote tinha 26 anos e era taxista; e Thiago da Costa Correia da Silva, tinha 19 anos e era mecânico.
Magno e Thiago tinham acabado de sair de uma barbearia quando escutaram tiros e correram. Carlos Alberto, que tinha acabado de chegar à barbearia, também ouviu os tiros e correu. Os três atravessaram uma das principais ruas da comunidade e entraram em uma ruela onde foram alvejados pelos policiais. Everson, que andava pela Estrada da Independência, trazia num envelope com todos os seus documentos, mas a tentativa de se identificar foi em vão: ele foi executado sem conseguir apresentar os documentos.
Os casos foram registrados como autos de resistência – casos em o policial atira em sua própria defesa. A versão foi desmentida pela Polícia Federal. Foram execuções.
O dia em que o morro desceu e não era carnaval
A brutalidade da chacina gerou uma indignação muito grande e mobilizou a população da favela, que decidiu realizar uma marcha em silêncio pelas ruas da Tijuca. Enquanto a imprensa reproduzia a versão da polícia de que os jovens eram traficantes, o povo do Borel fez uma marcha com mil pessoas e faixas com os nomes das vítimas, que a polícia recolheu. Os moradores percorreram cerca de dois quilômetros, do morro até a praça Saens Peña, área de grande movimentação de pessoas na Tijuca.
Conforme lembra Maurício Campos dos Santos, membro da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, naquele maio de 2003, “todo aquele público de classe média da Tijuca, acostumado por preconceito ou devido às campanhas mentirosas da mídia, a ver os moradores das favelas como gente perigosa, viu com admiração e até com simpatia todas aquelas mulheres, homens e jovens se manifestando com firmeza e veemência mas sem nenhuma agressão gratuita”.
A luta por justiça não acabou
Em junho daquele ano as investigações e a perícia levaram, ao indiciamento por homicídio qualificado de apenas cinco dos 16 policiais envolvidos. Dois policiais foram absolvidos em júri popular em outubro de 2004 e fevereiro de 2005, respectivamente. Em outubro de 2006 um cabo foi condenado a 52 anos de prisão. Em março de 2009, no entanto, a 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio, contrariando a decisão da outra instância o colocou em liberdade. Os outros policiais envolvidos também estão livres, um deles ainda recorrendo às instâncias judiciais.
Em resposta à Chacina do Borel, nasce Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência
A Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência é um movimento social independente que reúne moradores de favelas e comunidades pobres em geral, sobreviventes e familiares de vítimas da violência policial ou militar, e militantes populares e de direitos humanos. Sua origem remete esta intimamente ligada à mobilização que aconteceu após a Chacina do Borel. Maurício Campos dos Santos, da Comissão de Comunicação da Rede lembra que a comunidade ficou em choque com o fato de um dos jovens, que estava com todos os documentos em mãos, implorou, mas não conseguiu se identificar. “Aí surgiu o lema “Posso me identificar?”, usado na manifestação que a comunidade organizou em maio de 2003. Foi a partir da articulação dos diversos movimentos nesse período de 2003 e 2004 que se constituiu na Rede, que atua em três áreas principais: jurídica, comunicação e denúncia, e articulação entre familiares. Contatos: Telefone: (21) 2210-2906 / E-mail: redecontraviolencia@uol.com.br / Site: http://www.redecontraviolencia.org/