[Por Lucas Estanislau/Brasil de Fato-Caracas (Venezuela)] Frasso ainda era novato na redação do El Nacional, um dos maiores diários da Venezuela à época, quando o enviaram ao centro de Caracas, no dia 27 de fevereiro de 1989, para cobrir o que chamavam de “alguns protestos”. Para o jovem repórter fotográfico natural da pequena cidade de Santa Ana, no interior do Estado de Anzoátegui, que havia começado na fotografia tirando fotos de formaturas e velórios, trabalhar em um grande jornal da capital era, até então, o ponto alto de sua carreira.

O que Frasso não sabia é que, ao chegar à sede do Corpo de Bombeiros na avenida Bolívar e registrar com sua câmera os primeiros incêndios naquela manhã do dia 27, ele começava a cobrir uma das maiores revoltas sociais da história da Venezuela, que teria influência decisiva no futuro político do país e de sua própria trajetória jornalística: o Caracazo, que completa 34 anos nesta segunda-feira (27).

Francisco Solórzano, apelidado de Frasso pelos primeiros companheiros de redação, foi um dos principais fotógrafos a registrar a violência brutal com a qual o Estado venezuelano reprimiu os protestos que tomaram conta de Caracas e de outras regiões do país nos últimos dias de fevereiro de 1989.

“Ver um menino de 16 anos ser assassinado diante dos seus olhos com um tiro no ventre, isso não é qualquer coisa”, conta ao Brasil de Fato, deixando claro o fardo e a glória de ter participado daquela cobertura.

A Venezuela iniciou o ano de 1989 enfrentando uma grave crise econômica, com fatores típicos dos quadros de instabilidade de países dependentes da renda petroleira: inflação disparada, desvalorização cambial, escassez de produtos e recessão. Nessa conjuntura, o social-democrata Carlos Andrés Pérez, que já havia sido presidente entre os anos 1974 e 1979, havia acabado de assumir seu segundo mandato com a promessa de recuperar os tempos de bonança financiados pela alta no preço do petróleo que marcaram seu primeiro governo e restaurar a chamada “Venezuela saudita”.

O apelo nostálgico ao eleitor se provaria falso quando Pérez anunciou, durante os primeiros dias de seu novo mandato, um pacote de ajustes econômicos neoliberais acordado com o Fundo Monetário Internacional (FMI), sob a justificativa de diminuir o Estado e dar mais espaço ao mercado para superar a crise.

O choque foi imediatamente sentido pelos mais pobres e pela classe média. Aumentos em quase todos os serviços básicos como telefonia, água e luz, nas tarifas dos transportes públicos, nos combustíveis, e o fim do controle de preços de alguns itens básicos foram as principais medidas que dispararam a revolta popular.

Na manhã do dia 27 de fevereiro, trabalhadores que utilizavam o terminal rodoviário de Guatire, cidade satélite de Caracas, se revoltaram contra mais um aumento nas passagens de ônibus e começaram a protestar. Piquetes foram montados nas ruas e os primeiros registros de incêndios e saques começaram a chegar aos noticiários. Não demorou muito para que o exemplo de Guatire se espalhasse para a capital e para outras regiões do país.

“Foi uma explosão espontânea”, classifica Frasso. “Isso não foi organizado por nenhum partido político, foi a reação de um povo cheio de descontentamento com as políticas daquele momento”, diz.

Comunidade 19 de abril, em Petare, zona leste de Caracas [foto cedida pelo autor] / Francisco ‘Frasso’ Solórzano

O governo reagiu rápido e da pior maneira possível, chegando a convocar as Forças Armadas para conter os manifestantes. Da noite do dia 27 para a manhã do dia 28, Caracas ficou tomada por forças de segurança que começaram a abrir fogo contra a massa popular que saia para protestar. 

A versão oficial fala em 276 mortos, mas o número é amplamente refutado por organizações de direitos humanos, movimentos sociais e por quase todos os que viveram os atos de repressão. Segundo o Comité de Familiares de Víctimas del Caracazo (COFAVIC), ONG nascida após os eventos de 27 de fevereiro de 1989, a violência do Estado contra os protestos pode ter deixado até 3 mil mortos e desaparecidos.

Apesar do ex-presidente Carlos Andrés Pérez nunca ter sido judicialmente responsabilizado pelas mortes, a pressão de setores da sociedade civil e do Parlamento foi enorme e acabou tornando seu governo insustentável. O golpe fatal viria em 1992, quando o então desconhecido tenente-coronel Hugo Chávez liderou uma rebelião militar para tentar derrubar Pérez. O movimento fracassou, mas ganhou amplo apoio popular e pressionou ainda mais Carlos Andrés, que terminou destituído por um processo de impeachment em 1993.

O Caracazo foi o disparador de um processo político que colocou fim ao período que passou para a história da Venezuela como 4ª República, iniciado em 1958 com um pacto entre os principais partidos: Ação Democrática e Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (Copei). Nas eleições presidenciais de 1998, Chávez soube organizar o respaldo popular que havia conquistado em sua tentativa de rebelião e o descontentamento existente com os partidos tradicionais, extremamente desgastados pela crise econômica e pelo histórico de repressão durante o Caracazo.

As fotos de Frasso da revolta de fevereiro de 1989 são parte desse processo histórico e expõem violações de direitos humanos cometidas pelas forças de repressão do Estado. Seu trabalho na cobertura do Caracazo lhe rendeu o prêmio Rei da Espanha de Fotografia de 1989 e, além disso, serviram como provas no processo que familiares das vítimas da repressão moveram contra o Estado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, do qual obtiveram sentença favorável em 1999.

Frasso inaugurou exposição de suas obras no último sábado (25) / Lucas Estanislau

No último sábado (25), Frasso participou da inauguração de uma exposição em Caracas sobre seu trabalho. Seus 68 anos de idade e frágil estado de saúde não impediram que o fotógrafo caminhasse pelos corredores da galeria explicando as obras e dando detalhes sobre cada uma de suas fases profissionais. Frasso já fotografou o trabalho de camponesas venezuelanas, paisagens naturais, intelectuais latino-americanos e inclusive foi o fotógrafo oficial da primeira campanha de Chávez, em 1998.

“Mas eu sempre me lembro do 27 de fevereiro e daqueles dias que se seguiram”, confessa o repórter, que conversou com o Brasil de Fato sobre a cobertura da revolta que mudou a sua vida e a de um país.

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Como começou a cobertura no dia 27 de fevereiro de 1989? Quando foi a primeira vez que você ficou sabendo dos protestos?

Frasso: O dia começou como um dia de trabalho normal. O governo já havia anunciado o aumento da gasolina, o congelamento dos salários, tudo isso em meio a uma economia que só deixava o povo mais pobre. Na tarde do dia 27, nos mandaram cobrir os acontecimentos no centro de Caracas, na Avenida Bolívar. Eu fiquei responsável por ir à sede do Corpo de Bombeiros de Caracas e presenciei o incêndio do primeiro ônibus na cidade. Muitas pessoas que viviam em Guatire e vinham a Caracas para trabalhar não puderam voltar para casa por conta das marchas que haviam também por lá. Foi um dia muito duro. Por volta do meio-dia foi declarado um toque de recolher e isso fez com que na noite do dia 27 para o dia 28 ocorresse outra ação grave, porque o governo foi pego de surpresa e começou a pedir que soldados que estavam no interior do país viessem a Caracas com armamentos. Alguns desses soldados tinham menos de dois meses de quartel. Esses foram os que, com ordens presidenciais e do então ministro da Defesa, Ítalo del Valle Alliegro, dispararam contra as pessoas que estavam protestando nas ruas. Nas primeiras horas da manhã do dia 28, começamos a ver os primeiros mortos, sobretudo nas “barriadas” [bairros pobres] de Caracas. Então, nesse dia, me mandaram para a comunidade 19 de abril de Petare e foi aí que fiz as fotos tão conhecidas: o homem na moto, os jovens assassinados nos morros que vinham carregados por outros companheiros, tudo isso eu comecei a ver ali, em Petare, nesse dia.

‘O homem na moto’, vítima da repressão [foto cedida pelo autor] / Francisco ‘Frasso’ Solórzano

Mas até então você estava cobrindo protestos. Você chegou a pensar que aqueles atos teriam o impacto que tiveram?

No mesmo dia 28, quando já havia toque de recolher, eu já pensava que tinha que registrar os eventos e guardar as imagens bem guardadas porque não era um golpe de Estado, era o povo nas ruas tentando liquidar uma democracia representativa e substituí-la por uma democracia participativa. Eles pediam um processo de inclusão, pediam que o povo também pudesse governar e ter ações. Isso começou na explosão do Caracazo. Eu nunca imaginei a magnitude e as consequências desse evento. Inclusive hoje, 34 anos depois dos acontecimentos, ainda pensamos: ‘meu deus, nós nunca poderíamos ter imaginado isso’. Porque uma explosão é produto desse aquecimento permanente que existe dentro das massas e que havia no momento do Caracazo.

O que você sentia por trás da câmera?

Um misto de raiva e tristeza. Porque ver um menino de 16 anos ser assassinado diante dos seus olhos com um tiro no ventre, isso não é qualquer coisa. Ver mães chorando porque seus filhos foram assassinados nas portas de suas casas, isso não é qualquer coisa. A ordem era essa, assassinar. Eu ainda acredito que há justiça a ser feita sobre os eventos de 27 de fevereiro. Eu fui testemunha na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ali, com as minhas fotografias e o meu testemunho, foi possível processar o Estado. No ano 2003, no primeiro governo de Chávez, foi aprovada uma indenização a um grupo de familiares de vítimas do Caracazo e nós sentimos que somos parte dessa conquista. Nesse momento eu era deputado e membro da Comissão de Finanças do Parlamento e pude participar das discussões e fazer pressão pela aprovação da indenização que foi entregue a essas famílias, que buscavam justiça não somente pela morte de seus filhos, mas também pelo massacre de um país. Além disso, elas pediam a identificação dos corpos que ainda estavam em fossas comuns no cemitério de Caracas, naquele lugar conhecido como ‘La Peste’, que inclusive eu visitei durante aqueles dias do Caracazo.

Mas “La Peste” não era uma fossa comum clandestina? Como conseguiu chegar até lá durante a repressão?

Nós seguimos um caminhão carregado de caixões pela pista. Tenho inclusive uma foto disso. Depois de perseguir esse caminhão, entrei no cemitério e passei pelo lugar onde estão enterrados os mortos da comunidade judaica. Seguindo um pouco mais à frente e nos pés de um morro vimos que havia alguns buracos recém-tampados e a um metro e meio desse ponto estava essa fossa comum, ‘La Peste’.

‘Nós seguimos um caminhão’, conta Frasso [foto cedida pelo autor] / Francisco ‘Frasso’ Solórzano

Você sofreu algum tipo de represália após suas fotos do Caracazo terem ganhado tanta notoriedade?

Existiu censura desde o início, mas o que foi mais forte foi a autocensura de alguns editores que nos dias seguintes ao Caracazo, pediam que não fizéssemos fotos de cadáveres e da repressão, mas sim de situações normais, de pessoas varrendo as ruas etc. Sobre isso há outra história interessante que ocorreu no aniversário do jornal El Meridiano. Eu fui ao evento para fazer algumas fotos e lá estava o então presidente Carlos Andrés Pérez com Pepe Consuegra, que era um de seus assessores de imprensa naquela época. Consuegra me apresenta a Pérez e diz: ‘Presidente, aqui está o jornalista que ganhou o Prêmio Rei da Espanha’. ‘E por que ganhou?’, me perguntou Carlos Andrés, ao que eu respondi: ‘por seus mortos do dia 27 de fevereiro, presidente’. Isso me rendeu muitos problemas, inclusive eu fui proibido por muito tempo de trabalhar no Palácio Miraflores [sede do Poder Executivo venezuelano].

Você acha que seu trabalho acelerou o fim do governo de Carlos Andrés Pérez e da 4ª República?

Eu acho que o mais importante é que meu trabalho serviu e segue servindo para manter a memória coletiva do venezuelano, para manter o povo orientado e ciente desses eventos. Hoje é possível dizer que essas fotografias se converteram em um símbolo das lutas que posteriormente ocorreram no país. Eu sempre me lembro do dia 27 de fevereiro e daqueles dias que se seguiram e sigo acreditando que todo governo que der as costas ao povo estará condenado ao fracasso.

Edição: Thales Schmidt