Arrigo: com este nome próprio incomum (mas também um verbo significando “arranco”), o sociólogo Marcelo Ridenti batizou não só o protagonista de seu primeiro romance como também o próprio livro. Trata-se da história da vida de um brasileiro, militante de ações e de partidos políticos de esquerda, que nasce e alcança a juventude na cidade de São Paulo, no início do século XX. Uma travessia existencial entremeada pelo cenário político e social que transcorre as décadas vividas, no país e fora dele. Telma Gil, do NPC, entrevistou o autor sobre sua nova obra.
Marcelo é autor de outros livros, fruto de suas pesquisas na área da sociologia, que tratam criticamente da produção cultural e política de grupos de esquerda e de direita. O mais recente é “O segredo das senhoras americanas: Intelectuais, internacionalização e financiamento na Guerra Fria cultural” (São Paulo, Ed. Unesp, 2022). Agora ele se lança ao romance, mas sem abandonar o campo em que política e cultura se encontram ao demonstrar como emergem tanto o processo de dominação quanto o de resistência social.
Através da trajetória de Arrigo, vivemos os sentimentos que marcam a existência daqueles que não se curvam e lutam: aflições, escolhas e paixões políticas e pessoais, sofrimentos, alegrias – sentimentos que todos carregamos. É um convite à leitura e reflexão que acompanha um emocionante e envolvente cotidiano militante sobre as possibilidades de existir e resistir.
O sociólogo Marcelo Siqueira Ridenti é paulistano, 63 anos, tem três filhos, e é professor no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Entre os livros de sua autoria estão: “Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV (Ed. UNESP, 2a ed. revista e ampliada, 2014); “Brasilidade revolucionária – um século de cultura e política” (Ed. UNESP, 2010)”; “O fantasma da revolução brasileira” (Ed. UNESP, 2a ed. revista e ampliada, 2010), e entre diversos artigos: “As mulheres na política brasileira – os anos de chumbo” (Tempo Social, Revista USP, SP,1990). Leia a entrevista completa!
NPC: Nada melhor do que o próprio autor apresentar sua obra. Então, vamos começar com você explicando do que trata Arrigo…
Marcelo: Eu conto a história do Arrigo, esse personagem que tem nome italiano como Arrigo Sacchi, por exemplo, ou Arrigo Boito, que era um músico, ou o que a gente tem no Brasil, o Arrigo Barnabé. É a história de um Arrigo, mas a palavra arrigo também significa arrancar da terra, arrancar a juta da terra. Então, pode ser “eu arrigo”, “eu arranco”.
Ele é um personagem próprio, da mesma geração de alguns personagens que aparecem e também são amigos dele no livro: o Apolônio de Carvalho, o Carlos Marighella, o Caio Prado Junior, todos nascidos por volta de 1910, pouco antes, pouco depois. O Arrigo é um personagem de idade avançada e que lutou todas as lutas do século XX, especialmente nos governos autoritários.
Chegou a ser preso durante o governo repressivo do Artur Bernardes; lutou no movimento de 35 e acabou sendo preso depois da derrota da chamada Intentona Comunista; foi pra Europa depois que saiu da cadeia e no navio encontrou o Apolônio de Carvalho, um personagem real do Partido Comunista que o convence a lutar na Guerra Civil Espanhola. Ele vai lutar na Espanha contra o Franco; depois vai pra França também lutar contra o nazifascismo; volta ao Brasil, participa de todo o processo de democratização e depois de 64, com outros companheiros, fundam um grupo guerrilheiro, o grupo do Arrigo; com a redemocratização, ele é preso, vai para o exílio.
Então, eu conto 100 anos de história da esquerda brasileira até chegar nos momentos mais recentes. O marco temporal do livro é de mais ou menos 1917 até mais ou menos 2018, época da eleição do último presidente de extrema direita, o que, em parte, motivou a realização do livro.
NPC: A questão do tempo é algo bem forte em Arrigo, tanto que o título do livro, como você já disse em uma outra entrevista, poderia ter sido “Um tiro no tempo”. Qual sua relação com o tempo?
Marcelo: A gente vai ficando mais velho e vai dando mais importância para a passagem do tempo. Eu vou fazer 64, vai sobrando mais memória. No livro, eu tentei trabalhar com tempo nesse âmbito da memória, mas também juntando com a reconstituição objetiva da história. Quem lê o livro vai perceber que tem um cuidado muito detalhado com os fatos históricos, os acontecimentos…
NPC: Você pode citar algumas das fontes que você usou?
Marcelo: Por exemplo, para falar das cadeias, os livros do Everardo Dias, um velho militante do começo do século XX, que morreu nos anos 60. Ele escreveu livros interessantes, como “Memórias de um exilado” e “Bastilhas modernas”. Como preso político, além de falar sobre as prisões dele, conta as de outros prisioneiros. Faz um levantamento detalhado das prisões, especialmente durante o governo do Arthur Bernardes. Assim como o Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere, faz durante a ditadura do Getúlio, antes do Estado Novo, quando ele foi preso. Usei não só o projeto Brasil Nunca Mais, mas o relatório da Comissão Nacional da Verdade, que conta detalhadamente as prisões e as torturas terríveis e, especialmente, aquelas às quais mulheres foram submetidas. Tem a biografia do Marighella, a biografia do Caio Prado Júnior, a autobiografia do Apolônio de Carvalho e os estudos que estão, por exemplo, na História do Marxismo no Brasil, que eu ajudei a organizar, além de alguns livros meus, como a biografia que eu escrevi sobre a esquerda armada, O Fantasma da Revolução Brasileira.
NPC: Eu queria falar um pouquinho sobre o “inventário das prisões políticas”, no qual você registra os inúmeros períodos de ditadura que o Brasil viveu, descrevendo também com bastante detalhe as torturas. A intenção era provocar um impacto no leitor?
Marcelo: Isso não foi à toa. A minha decisão de escrever foi porque a gente estava enfrentando, continuamos enfrentando, risco de um retrocesso democrático no Brasil, risco de uma ditadura mesmo. Quis mostrar como as pessoas reagiram, não só aqui, mas também na Europa, durante o nazifascismo na luta do Arrigo, dos seus companheiros, primeiro resistindo ao Franco e depois na ocupação nazista da França. Eu trabalho com esse lado, que recupera a memória e reconstitui a história, mas que ao mesmo tempo tem também um lado que é humano e de arte. Eu trabalho muito com referências a poemas do Carlos Drummond de Andrade, ou especialmente do Manuel Bandeira.
NPC: Mas nesse inventário das prisões políticas você teve um propósito?
Marcelo: A gente vai se impactando. Desde o meu outro livro, Brasilidade Revolucionária, que tem um capítulo sobre o Everardo Dias — primeiro os anarquistas, depois os comunistas e mesmo os tenentes sofreram perseguição política, foi terrível. É preciso que as novas gerações conheçam tudo que passamos, que saibam que tivemos um presidente que publicamente elogiava um torturador. Eu achava que tinha que contar um pouco dessa história. O livro tem a intenção de recuperar os elos perdidos, como a luta democrática, como a luta contra ditadura militar, a luta contra a ditadura do Estado Novo, ou, mais antigamente, as lutas contra a República Oligárquica, contra os patrões, contra aquela frase famosa atribuída ao Washington Luiz: “A questão operária é uma questão de polícia!”; e como todos os direitos que nós temos hoje foram conquistados duramente em batalhas. Uma história anterior, longa, de resistência popular. Faz parte da hegemonia burguesa, se a gente quiser chamar assim, colocar a ideia de que o povo brasileiro é um povo pacífico, ordeiro, que aceita as coisas. Não, nós temos uma tradição longa de luta contra as injustiças, as arbitrariedades que vêm desde o tempo do escravismo, desde o tempo da colônia.
Esse é o lado político, mas o livro não é uma demonstração de tese acadêmica. Eu estou contando uma ficção. Não é um balanço para julgar politicamente. Não quero demonstrar nada, quero só expressar, contar uma história que funde os destinos individuais do Arrigo, dos companheiros do Arrigo. O livro tem esse lado, umas 10 ou 15 páginas que expressam uma coisa da tortura, mas também tem pedaços que são mais brincalhões …
NPC: Está bem mesclado, mas é um inventário! Eu colocaria dessa maneira. Agora, queria fazer uma pergunta que junta com seu outro livro, sobre o romantismo revolucionário: o Arrigo foi capitulado no pós-golpe por essa orientação?
Marcelo: De certa maneira, ele é um revolucionário. No sentido que o Michel Lowÿ coloca nos escritos dele. Significa que você pega elementos do passado da tradição para construir uma proposta de futuro. Quer dizer, se você pega elementos, por exemplo, do povo brasileiro, tem alguma coisa que está arraigado na experiência dos trabalhadores do campo e da cidade e de um passado que serve para resistir ao avanço da mercantilização geral da vida no presente e, ao mesmo tempo, anunciar o futuro. De certa maneira, o Arrigo tem um pouco disso, de recuperar tradições, mas não no sentido de voltar ao passado, mas de usar esses elementos para pensar o futuro. Particularmente, um autor que o Michel Lowÿ usa muito quando fala disso é o Walter Benjamin. Aquela coisa do Anjo da História, que é impelido pelo vento para frente, mas vai de costas, olhando para as ruínas que estão atrás. O meu livro tem esse lado que é um pouco de olhar as ruínas do que foram deixadas para trás para construir um futuro. É uma volta ao passado nesse sentido romântico, mas ao mesmo tempo revolucionário. Você não está idealizando o passado, mas como é que esse passado, em grande parte trágico, coloca elementos para pensar o futuro.
NPC: Então, acho que ele foi capitulado…
Marcelo: Em grande parte, ele era um romântico revolucionário.
NPC: Você acha que esse seu novo livro vai alcançar mais leitores do que os anteriores?
Marcelo: Essa é a coisa mais fascinante, porque, em teoria, esse romance pode ser lido por qualquer pessoa, minimamente alfabetizada. Diferente dos meus outros livros, como O fantasma da Revolução Brasileira, Brasilidade Revolucionária, Em Busca do Povo Brasileiro, Artista da Revolução ou O Segredo das Senhoras Americanas. Embora eu sempre tente escrever para ser compreendido por qualquer pessoa letrada, é difícil, porque tem as exigências acadêmicas, as citações, a reflexão, a linguagem, que acabam restringindo. Num romance, eu me permito tentar conversar com qualquer pessoa, que não precisa ser sociólogo, nem historiador, nem ter diploma universitário.
NPC: O professor Daniel Aarão comentou que tem observado uma tendência dos acadêmicos de entrar pelo campo ficcional. O Marcelo romancista vai influenciar o Marcelo acadêmico?
Marcelo: De certa maneira, sempre influenciou. Se você olhar os meus escritos como acadêmico, eu uso muito o que as pessoas falam. Tento incorporar esse lado humano, existencial — claro que confrontado com a reconstituição objetiva da história. Ao mesmo tempo, questionando uma certa ilusão biográfica que as pessoas têm quando falam de si mesmo, reconstruindo pelo discurso a própria vida, que eu diria que tem uma ligação desde sempre.
NPC: Ao explicar a origem do novo livro, você cita o verbo “arrigar” no sentido de “arrancar”. O que Arrigo “arrancou” do Marcelo?
Marcelo: Acho que arrancou uma coisa que está lá no fundo, até mesmo pessoal. Olhar a sociedade brasileira hoje passa por essa via que, ao mesmo tempo, é memória, é história, mas é existencial. Por exemplo, quando eu era menino, no comecinho dos anos 60, ficava muito com os meus avós, no Brás, em São Paulo. Ali, na rua João Boemer, eram vários quarteirões, foi tudo destruído. E o que está no lugar? O templo de Salomão. Então, o livro arranca um pouco isso: que sociedade é a nossa, essa cultura que eu vi um pouco do tempo dos meus avós e que o meu pai foi criado nela, foi tudo afastado para construir essa coisa monstruosa. Na minha opinião, monstruosa. Ao mesmo tempo, a gente entende que as pessoas simples, às vezes, não têm quem lhes dê a mão, e quem dá são esses evangélicos. O Reginaldo Moraes, no fim da vida, dizia que a esquerda brasileira tinha uma tradição de ser uma espécie de religião laica. Você organizava as bases, os sindicatos, os partidos e criava comunidades de ajuda mútua e isso foi se perdendo com o tempo. Se acreditou que, pela obra dos próprios trabalhadores, eles criariam esses mecanismos. Por outro lado, esses setores religiosos muitas vezes doutrinam as pessoas, arrumam um emprego, criam um sentido de ajuda. Então, é superimportante ter entidades sindicais ou partidárias que tentem fazer essa aproximação.
NPC: Arrigo conversa com várias manifestações culturais, como as artes plásticas, a música — a própria Editora Boitempo lhe encomendou um playlist de Arrigo. O livro pode render outros frutos? Como uma sugestão de leituras para uma formação militante, um roteiro turístico para São Paulo ou Rio, ou mesmo uma adaptação para o cinema ou teatro?
Marcelo: Eu acho que dá uma minissérie, mas seria muito cara, porque teria que ser filmado em São Paulo, Rio, Recife, Barcelona, Lisboa, Marselha, Paris, depois Santiago do Chile.
NPC: É a primeira vez que a Boitempo faz um playlist de um livro?
Marcelo: Alguém lá teve essa feliz ideia e eu fiz agora mais do que eles pediram. Preparai 14 playlists, cada uma tem mais ou menos uma hora. Tem o Arrigo acadêmico, que é música popular; tem o Arrigo e a República Velha; tem o Arrigo menino com as canções italianas que ele ouvia no tempo da mãe dele no começo do século, e assim por diante. Arrigo na Guerra Civil Espanhola tem mais de uma hora, com canções anarquistas e comunistas dessa época. Depois, tem Arrigo na resistência ao nazifascismo na França, com todas as canções que vêm desde a revolução francesa, canções populares. Tem o Arrigo e as namoradas, o Arrigo e a Aurora, o Arrigo e a Sima, as namoradas principais. Tem outra que é mais geral, o Arrigo sentimental. E ainda o Arrigo na resistência à ditadura, o Arrigo no tempo, com questões tratando da passagem do tempo.
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