[Por Rosângela Ribeiro Gil – Redação ABCPA] A notícia da grande imprensa, ou da mídia corporativa – aquela que lemos em jornais e portais, vemos na televisão, ouvimos nas rádios etc. –, é feita de lacunas e silenciamentos. É uma notícia que tem lado e classe, a dos grandes grupos econômicos. Tentam passar à opinião pública a ideia de falar apenas a “verdade dos fatos”, mas não é assim.

A notícia tem interesse, cor, conta bancária e disputa poder político e econômico. Sendo assim, a melhor forma de ler ou ver a informação da grande mídia é com lupa e sempre duvidando, ou se perguntando: o que eles não disseram sobre isso?

São diversos e diários os temas nacionais e internacionais que sofrem o “recorte” ideológico da mídia corporativa, como o caso envolvendo Palestina e Israel. Querem nos fazer crer que o mocinho da história é Israel, e os bandidos, os palestinos. Para entender essa história, iniciada na metade do século XX, entrevistamos a jornalista palestino-brasileira Soraya Misleh.

Mestre e doutora em Estudos Árabes pela Universidade de São Paulo (USP) e autora do livro “Al Nakba – um estudo sobre a catástrofe palestina” (Ed. Sundermann, 2017), Misleh conheceu a história da Palestina em casa, com o seu pai, um dos milhares de refugiados (ou expulsos) de sua terra natal, em 1948.

Coordenadora da Frente em Defesa do Povo Palestino SP e diretora cultural do Instituto da Cultura Árabe (ICArabe), a jornalista nos concedeu, gentilmente, essa entrevista com detalhes históricos e muita informação para podermos ter melhor compreensão sobre o que acontece naquela região entre o Rio Jordão e o Mar Mediterrâneo.

ABCP – Você pode se apresentar para a categoria petroleira do Litoral Paulista? Qual o seu vínculo com a causa palestina?
Soraya Misleh –
 Sou jornalista palestino-brasileira. Meu pai é um sobrevivente da Nakba, a catástrofe palestina cuja pedra fundamental é a formação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948. Israel foi formado em 78% do território histórico da Palestina, através de limpeza étnica. Meu pai tinha 13 anos em 1948 e foi um dos 800 mil palestinos expulsos violentamente de sua terra naquele momento, juntamente com meus avós e meus tios. A aldeia deles, Qaqun, foi uma das cerca de 530 destruídas. Ali começou a questão dos refugiados palestinos.

Meu pai me contava as histórias da Palestina antes de 1948 e da expulsão desde criança. Ele me dizia que lá, antes de 1948, não tinham trancas nas portas, não tinha convite para casamentos, era uma vida comunitária. Ele sempre dizia que era um paraíso, uma vida simples, mas feliz, com todo mundo vivendo em paz, “com carinho”. Meu pai dizia que antes de 1948 nunca uma criança perguntou para outra: você é judeu, muçulmano, cristão, então com você não brinco. Isso não existia, contava ele. E completava: o problema foi o sionismo.

Conheci primeiro a Palestina pelos olhos do meu pai e aprendi que ali remontavam nossas raízes, nossas origens. Ele sempre sonhava com o retorno as suas terras e quando ficou mais velho, dizia: se eu pisar na minha terra e morrer, morro feliz. Nem esse direito ele teve. Sua história e memória são coletivas. Metade dos 13 milhões de palestinos vivem no refúgio/diáspora. Além da relação de pertencimento e identidade, passei a estudar sobre a questão palestina e aprendi mais sobre a enorme injustiça que continua e se aprofunda há 76 anos.

Fiz mestrado em Estudos Árabes pela USP tendo como estudo de caso sobre a Nakba de 1948 a aldeia em que meu pai nasceu e depois, e doutorado sobre as mulheres palestinas na literatura e na política.

ABCP – Qual a contextualização histórica dos conflitos Israel e Palestina que a imprensa hegemônica ocidental, como a brasileira, silencia?
Soraya Misleh –
 É uma história de colonização por povoamento, planejada pelo sionismo político moderno, que surgiu em fins do século XIX. Colonização por povoamento é o que aconteceu nas Américas com o extermínio indígena, para exemplificar. Acontece por meio da limpeza étnica e genocídio, para substituir a população nativa por outra estrangeira. Isso é o que ocorreu na Palestina, em que o movimento sionista planejou o que denominava “transferência populacional”, a partir do estímulo à imigração de judeus europeus para dentro da Palestina e “transferência” da população nativa não judia para fora da Palestina. Um eufemismo para limpeza étnica, ao que houve genocídio em dezenas de aldeias para provocar terror psicológico e expulsar os palestinos.

O movimento sionista falava em conquista da terra e do trabalho, via construção de assentamentos e a partir da chegada dos colonos, trabalho exclusivo para judeus. Em 29 de novembro de 1947, a Assembleia Geral das Nações Unidas, presidida pelo diplomata brasileiro Oswaldo Aranha, recomendou a partilha da Palestina em um estado judeu (56% do território) e um estado árabe (43%), deixando Jerusalém sob administração internacional, sem consulta aos habitantes nativos e dando sinal verde, assim, para a limpeza étnica sionista planejada.

Naquele momento, mesmo depois de várias ondas de imigração sionista europeia, havia menos de 30% de judeus na Palestina, e a ONU [Organização das Nações Unidas] delegou mais da metade daquelas terras a um estado judeu. Doze dias depois começou a fase mais agressiva da limpeza étnica. Via colonização por povoamento, sobre os corpos palestinos e os escombros de suas aldeias, se criou, em 1948, o estado de Israel, como eu disse antes, em 78% da Palestina histórica.

Em 1967, Israel ocupou militarmente o restante da Palestina: Cisjordânia, Gaza e Cidade Velha de Jerusalém, expulsando mais 350 mil palestinos. A expansão colonial agressiva nunca parou. A Nakba agora entra em uma nova fase, em que Israel busca sua “solução final” de extermínio do povo palestino, com o genocídio em Gaza e a limpeza étnica avançada na Cisjordânia.

Toda essa contextualização histórica é ignorada pela grande mídia, que tem reproduzido verdadeira propaganda de guerra contra todo o povo palestino, desumanizando-o e criminalizando-o.

ABCP – Quem é o povo palestino fora da narrativa da imprensa hegemônica?
Soraya Misleh – É um povo que vive opressão há cerca de 76 anos, com a ocupação israelense, que o priva de todos os direitos humanos fundamentais. Sob um regime institucionalizado de apartheid, colonização, limpeza étnica e genocídio.

Mas é um povo diverso, hospitaleiro, solidário e generoso, resiliente e resistente, que tenta viver apesar da ocupação brutal. É o que em árabe se chama sumud, firmeza e persistência, resiliência como resistência, em todos os aspectos da vida. O povo palestino é o povo originário da Palestina.

ABCP – Para a opinião pública brasileira, um grupo terrorista, o Hamas, fez reféns, em 7 de outubro de 2023. O que é verdade e o que é mentira nessa sobre esse fato?
Soraya Misleh –
 O Hamas é um partido político, não é terrorista, e o que se difunde sobre o 7 de outubro são inverdades para justificar o genocídio. Nunca houve decapitação de bebês e não há qualquer evidência de estupros. Tudo o que dizem que a resistência palestina fez é o que as forças de ocupação sionistas têm feito com o povo palestino.

A verdade é que houve ação coordenada da resistência, no dia 7 de outubro, contra estações militares, diante de uma situação que já era muito grave, visando a troca de prisioneiros políticos. Havia, então, 5.200 presos políticos palestinos, já submetidos a torturas institucionalizadas, inclusive mulheres e crianças – hoje mais que dobraram, e as torturas são inomináveis, incluindo estupros e abusos sexuais.

Gaza está submetida a um cerco criminoso por Israel há 17 anos e metade da população tem até 18 anos, e tinha vivenciado pelo menos cinco massacres, além dos corriqueiros bombardeios a conta-gotas, por algumas horas ou um dia inteiro.

Em 2015, a ONU concluiu que, diante da crise humanitária dramática, Gaza se tornaria inabitável em cinco anos. A limpeza étnica avançava a passos largos e já se registravam, antes de outubro de 2023, pogroms [ataques violentos] por parte de colonos na Cisjordânia contra aldeias palestinas, onde há centenas de checkpoints, muro do apartheid, estradas exclusivas para colonos, diferenciação de placas e identidades. E havia um processo de normalização crescente das relações entre Israel e regimes árabes. A bola da vez era a Arábia Saudita. E a causa palestina estava esquecida, enquanto os palestinos estavam morrendo cada vez mais. Este é o contexto em que se deu a ação da resistência em 7 de outubro, mas nada disso se vê na mídia, que desinforma, distorce os fatos e, como eu disse, promove verdadeira propaganda de guerra contra todo o povo palestino.

ABCP – Israel comete genocídio contra o povo palestino?
Soraya Misleh –
 A Convenção para a Prevenção e Combate ao Genocídio, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 9 de dezembro de 1948, conceitua genocídio, que é o que tem acontecido em Gaza. Sob essa fundamentação, a Corte Internacional de Justiça considerou plausível, em 26 de janeiro último, a ação da África do Sul contra Israel pelo crime de genocídio. Estudo publicado na revista científica The Lancet, de 5 de julho, estima que pelo menos 186 mil palestinos podem ter sido mortos, direta ou indiretamente, no genocídio em Gaza, por bombas, disparos, fome, sede, doenças, falta de condições sanitárias e de tratamento dos feridos, já que a maioria dos hospitais foi destruída pelos bombardeios, total ou parcialmente. Isto é genocídio.

ABCP – Poderia nos informar quem é o Estado de Israel; e quem é a Palestina? Os dois países têm o mesmo poderio econômico e militar?
Soraya Misleh
 – Israel é um estado ocupante, racista e colonial. É a quarta ou quinta potência bélica no mundo. É uma base militar do imperialismo que tem seus interesses estratégicos numa região rica em petróleo, o Oriente Médio e Norte da África, e também se descobriu gás no norte de Gaza. Recebe bilhões de dólares dos EUA anualmente e suas armas, bem como das potências europeias.

Sua economia agora vai mal, em função, sobretudo, da campanha de BDS (boicote, desinvestimento e sanções) a Israel, que tem tido sucesso em isolar internacionalmente o regime de apartheid e o estado colonial e genocida. Teve uma queda de 20% em sua economia. Vinte por cento de sua população são palestinos de famílias remanescentes da Nakba de 1948, os quais estão submetidos a 65 leis racistas e agora uma ditadura plena. É uma sociedade muito militarizada. Há uma minoria de judeus antissionistas, que são perseguidos.

Não há qualquer comparação: os palestinos são um povo sob brutal ocupação, apartheid, colonização, vulneráveis, que não têm exército ou armas de ponta. Apesar de toda a violência, são um povo altamente educado, com níveis elevados de escolaridade, mas alto índice de desemprego e pobreza (que se acentuam ainda mais nesta nova fase da Nakba). Tinham, por exemplo, em Gaza, alta taxa vacinal, superior a 99%, que caiu porque bebês continuam a nascer neste quase um ano de genocídio e não há vacinas. Depois de 25 anos se registrou o primeiro caso de poliomielite num bebê de 10 meses por conta desse crime contra a humanidade cometido por Israel.

ABCP – Tentam relacionar críticas às atitudes de Israel ao antissemitismo. Isso é verdade?
Soraya Misleh
 – De maneira alguma. Antissionismo é se opor a um projeto colonial e racista, criticar Israel é lutar contra a opressão nacional e exploração de um povo, o palestino, não tem nada a ver, é uma questão política. Antissemitismo é discriminação contra semitas, entre os quais judeus, e nos opomos a qualquer forma de opressão, inclusive o antissemitismo. Judeus antissionistas crescem mundo afora e são aliados nessa luta. Têm desmontado essa propaganda para criminalizar e silenciar a solidariedade.

ABCP – Dá para separar governo israelense do povo de Israel?
Soraya Misleh –
 Não é um problema de governo, mas de Estado. Trata-se de um estado colonial e racista, de apartheid. São mais de 76 anos de contínua Nakba, e os que promoveram a limpeza étnica em 1948 e 1967 eram os sionistas trabalhistas, identificados com o que seria a “esquerda sionista” hoje. [Benjamin] Netanyahu [primeiro-ministro de Israel] e seu governo são da ala sionista revisionista, menos hipócritas e fascistas sem máscaras. Mas na defesa do projeto colonial, Israel, não há distinção. Sionismo é um projeto colonial racista, independentemente de suas vertentes. E o Estado de Israel é a consolidação desse projeto.

ABCP – O que o povo palestino quer? E o que Israel quer?
Soraya Misleh
 – O povo palestino quer justiça, igualdade e liberdade. Quer seus direitos humanos fundamentais, inclusive o retorno dos refugiados às terras de onde foram expulsos violentamente, um direito inalienável e inegociável. Quer o fim da colonização, da ocupação, do apartheid e do genocídio. Quer, como todos os povos no mundo, viver em paz com dignidade. Mas não há paz sem justiça. E justiça deve contemplar a totalidade do povo palestino. Israel quer expandir ainda mais a colonização, ao que leva a cabo o extermínio do povo palestino.

ABCP – Como se alcança a paz naquele território?
Soraya Misleh
 – Na minha opinião, a única forma de se alcançar a paz é em um estado palestino único, laico, livre, democrático e não racista, com a derrota do projeto colonial sionista. Lideranças sionistas, responsáveis pelos crimes contra a humanidade, devem ser julgadas em tribunais internacionais. E assim se poderá retomar a Palestina histórica, livre, do rio ao mar, em que, como dizia meu pai, nenhuma criança perguntava à outra se era judia, muçulmana ou cristã.

A dita solução de dois estados, como argumenta há anos o historiador israelense Ilan Pappe, está morta, pela expansão colonial agressiva. Não fosse injusta desde sempre, porque não contempla a totalidade do povo palestino, inclusive a metade refugiada e na diáspora, hoje equivaleria a enclausurar palestinos em bantustões.

Então é preciso lutar por justiça. A solidariedade internacional é urgente, é questão de vida ou morte, e precisa ser fortalecida. É uma luta da humanidade, para que todos e todas sejam livres. Afinal, as armas que promovem o genocídio pobre e negro e extermínio indígena no Brasil são também as armas testadas por Israel sobre as verdadeiras cobaias humanas que Israel converte os palestinos todos os dias. No Brasil, a campanha BDS reivindica embargo militar, fim da exportação de petróleo que abastece os tanques israelenses para o genocídio e fim das relações econômicas, militares e diplomáticas com Israel, aos moldes da campanha que ajudou a pôr fim ao apartheid na África do Sul.

ABCP – Por fim, a quem interessa a guerra?
Soraya Misleh
 – Em especial aos senhores da guerra das potências imperialistas, que lucram com a morte. Ao imperialismo dos EUA e a Israel.