Trigésimo Curso Anual do NPC presta homenagem a religiosos comprometidos com a luta dos explorados e discute papel da comunicação no “chão da luta”

Por Rosângela Ribeiro Gil
NPC

Rio de Janeiro, 5 de dezembro de 2024 – De 5 a 8 de dezembro de 2024, mais de 200 pessoas, entre dirigentes sindicais e populares e comunicadores de todo  o Brasil, focaram a atenção no 30º Curso Anual do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), no Rio de Janeiro, no Clube de Engenharia. Com o tema “Democracia, internet e a nossa comunicação: desafios e caminhos para a organização popular”, o evento oportunizou debates fundamentais para as lutas dos tempos atuais. Foram jornadas diárias iniciadas às 9h e finalizadas até às 18h30 (confira a programação aqui). 

Durante quatro dias ouvimos, aprendemos e debatemos comunicação popular e sindical, conjuntura no Brasil, inteligência artificial, soberania digital e história do Rio de Janeiro. “Foram dias lindos de muito trabalho, muita troca e muitos abraços. Agradecemos a todos os companheiros e companheiras que estiveram conosco nesse ano especial em que celebramos 30 anos a serviço da comunicação dos trabalhadores e das trabalhadoras”, comemora a jornalista e historiadora Claudia Santiago, fundadora do NPC juntamente com Vito Giannotti. Como ela mesma disse e foi repetido por outros participantes do curso, devemos combinar “luta e afeto” no dia a dia das nossas ações em defesa de todos os explorados do sistema capitalista. 

Santiago fez questão de mostrar na prática o que disse, recepcionando os participantes do curso com muita alegria e abraços, e conversa ao pé do ouvido, já no credenciamento.

Homenagens

À abertura, a fundadora do NPC fez uma digressão rápida das atividades do Núcleo ao longo de três décadas de existência e enfatizou a importância de cada um dos presentes na construção das boas e necessárias lutas dos sindicatos de trabalhadores e dos movimentos sociais e populares. Na sequência, a primeira mesa do curso homenageou Frei Tito, morto em decorrência das torturas sofridas na ditadura empresarial-militar de 1964, com a exibição de documentário sobre o religioso.

Frei Tito
Frade católico brasileiro assumiu a direção da Juventude Estudantil Católica, em 1963. Morou no Recife. Mudou-se para São Paulo para estudar Filosofia na Universidade de São Paulo (USP). Em outubro de 1968, foi preso por participar do 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) em Ibiúna (SP). Fichado pela polícia, tornou-se alvo de perseguição pela repressão militar.

Preso em novembro de 1969, em São Paulo, acusado de oferecer infraestrutura a Carlos Marighella, Tito foi submetido à palmatória e choques elétricos, no Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Em fevereiro do ano seguinte, quando já se encontrava em mãos da Justiça Militar, foi retirado do Presídio Tiradentes e levado para a sede da Operação Bandeirantes (Oban).

Durante três dias, bateram sua cabeça na parede, queimaram sua pele com brasa de cigarros e deram-lhe choques por todo o corpo, em especial na boca, “para receber a hóstia”. (Disponível em https://memoriasdaditadura.org.br/personagens/frei-tito-de-alencar-lima/. Acesso em 11 dez. 2024).

A emoção de rever a história de Frei Tito prosseguiu no lançamento do livro “Jornal Ferramenta: a comunicação popular na luta contra a ditadura militar no Espírito do Santos”, da escritora e jornalista Elaine Dal Gobbo. A mesa contou, ainda, com Adriano Araújo, do Fórum Grita Baixada, Sandra Quintela, do Jubileu Sul, e Júlio Cesar Pereira de Carvalho, do Grupo de Estudos René Dreifuss (GERD). 

Ferramenta: ver, julgar e agir

A escritora iniciou lembrando a luta do padre francês Gabriel Maire, em Cobi de Cima, em Vila Velha (ES). O religioso foi assassinado em 23 de dezembro de 1989. Ele atuava na Pastoral Operária e coordenava o jornal “Ferramenta”. Como descreveu Dal Gobbo, a pauta do jornal era discutida por grupos de conversas nas comunidades, “o método utilizado era ver, julgar e agir”. O objetivo era entender a comunicação como um bem social e ter uma leitura crítica da mídia. A base do “Ferramenta” era incentivar a organização popular para mobilizações e ações em defesa de direitos, dignidade e qualidade de vida.

“A pauta era ampla, social e buscava a justiça. Apesar de ter à frente, principalmente, os operários, o jornal não se fechava na questão sindical. Da comunicação à ação, o jornal era um instrumento importante para a organização e conscientização de protestos, de criação de chapas de oposição em sindicatos e também para criação de associações comunitárias ou de mulheres”, explicou a jornalista.

Elaine Dal Gobbo lembrou que o Concílio Vaticano II (1962-1965) fala sobre o direito de informação não relacionado a interesses comerciais, mas como um bem social, ou seja, com assuntos que interessam à sociedade em defesa de uma vida digna. “O jornal “Ferramenta” trabalhou a comunicação nesse sentido, como um bem social organizador e formador”, destacou.

“Ferramenta” foi um projeto de comunicação popular importante, criado a partir de uma construção coletiva, distribuído nas empresas e lido pelas comunidades. O jornal esteve presente, como lembrou Dal Gobbo, no nascimento das periferias da Grande Vitória, formadas a partir da migração de grande número de trabalhadores atraídos por empreendimentos industriais.

Para a escritora e jornalista, hoje, a visão do cristianismo – seja das igrejas católica e evangélica – está fora dos parâmetros de luta por dignidade e justiça, tão presentes à época do padre Gabriel, de frei Titto e tantos outros lutadores religiosos que cerraram fileiras, principalmente nas décadas de 1960 e 1970, junto à classe trabalhadora e aos menos favorecidos. Ela enfatizou: “A crença em Deus não se opõe à dignidade.”

A economia é política

Na sequência, a economista e educadora popular Sandra Quintella, da Coordenação América Latina e Caribe da Rede Jubileu Sul, iniciou a sua participação lembrando que Carlos Marighella fazia aniversário naquele dia (05/12), numa referência à grande liderança política e popular, assassinada pela ditadura empresarial-militar de 1964, em 4 de novembro de 1969.

Quintella explicou que trabalha na educação popular – ferramenta criada pelo educador Paulo Freire – para tentar traduzir o “economês” e desnaturalizar a economia capitalista ou desconstruir narrativas impostas à sociedade. A visão única do mundo, a partir do contexto hegemonizado, é construída todos os dias pelo discurso midiático. “A mídia nos impõe um discurso de mercado feliz ou triste. Como falar para os mais empobrecidos que essa visão não é única nem boa para eles?”, indagou, e acrescentou: “Quem manda na política é a economia. A economia é política.”

O que se tem, pela mídia tradicional, é a visão da economia clássica e neoclássica, sem a possibilidade de contraposições, críticas ou refutações. Ou seja, outras visões de economia simplesmente não aparecem para a sociedade.

Economia clássica
Baseada no livre mercado e na ideia de que a mão invisível do mercado permite uma alocação eficiente dos recursos. Adam Smith e David Ricardo são alguns dos principais expoentes dessa escola.

Economia neoclássica
Conhecida como escola ortodoxa, é caracterizada por supor agentes racionais, informação completa e resultados imediatos. A escola neoclássica surgiu no final do século XIX e século XX, e alguns de seus principais expoentes são Leon Walras, William Jevons, John Hicks, George Stigler e Alfred Marshall.

A educação popular, observou Quintella, tem o objetivo de revelar ou desvelar, dialeticamente, as ausências e faltas versus as presenças no discurso dominante da mídia tradicional, destacadamente a televisão, que está todos os dias nos lares do público brasileiro. “A ausência é de quem não tem carro, direitos, emprego, terra, casa, saneamento”, explicou. Para ela, não existe educação popular apenas com rede social, mas no papel.

Violência do Estado: padre Hypólito e Amarildo

Adriano Araújo se apresentou na sequência, expondo a grave situação da Baixada Fluminense (RJ). Para ele, é um “legado” da ditadura empresarial-militar de 1964, a violência e o terror do Estado contra a população pobre local. “Continuamos com os nossos mortos e desaparecidos”, disse.

Araújo lembrou do frade franciscano sergipano Dom Adriano Hypólito, um dos bispos da Igreja Católica que lutou contra os anos de chumbo. Ele escolheu atuar como religioso na Baixada Fluminense e optou pelos mais pobres e por lutas em defesa dos direitos humanos, justiça social e dignidade. Foi bispo da Diocese de Nova Iguaçu entre os anos de 1966 e 1994 e, ao completar 75 anos, tornou-se Bispo Emérito. Faleceu em 10 de agosto de 1996, aos 78 anos.

Dom Hypólito sofreu a violência e o terror da ditadura militar na pele. Em 1976, foi sequestrado e torturado por seis homens. Foi jogado nu e com o corpo pichado de vermelho num matagal em Jacarepaguá. Em 1977, homens armados, até com metralhadora, invadiram o Centro de Formação de Líderes da Igreja, em Nova Iguaçu — que hoje guarda o acervo do bispo — e impediram a realização do congresso sobre Direitos Humanos. 

Conforme relato de Adriano Araújo, Dom Hypólito sofreu outras tentativas de pressão e assassinato. No dia 9 de novembro de 1979, a Catedral de Santo Antônio de Jacutinga, sede da Diocese da cidade, e a Igreja da Prata, localizada no bairro do mesmo nome e hoje tombada por sua importância cultural para a cidade pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC), amanheceram pichadas com frases escritas com tinta spray vermelha: “Aqui sede do PCB” e “O bispo é comunista”. E, no dia 20 de dezembro de 1979, uma bomba explodiu no altar da Catedral da Diocese, a mesma que havia sido pichada. Ouvida num raio de um quilômetro, a explosão destruiu portas, janelas e o sacrário, ferindo levemente um operário que montava um presépio de Natal.

A história, conforme Araújo, precisa ser lembrada e contada, até porque a violência dos aparelhos do Estado segue fazendo vítimas todos os dias na Baixada Fluminense. Ele lembrou o caso de Amarildo Dias de Souza, sequestrado, torturado e assassinado por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha, em 14 de julho de 2013. Até hoje o corpo não foi encontrado e nenhum familiar foi indenizado, mesmo com decisão favorável da Justiça. “São os nossos mortos sem voz”, criticou Adriano Araújo, destacando que o Brasil ainda não tem legislação para  os casos de desaparecimento forçado.

Desaparecimento forçado
A Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH) analisa casos de desaparecimentos forçados e invoca a violação de artigos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH), como o artigo 4º (Direito à Vida), o artigo 5º (Direito à Integridade Pessoal) e o artigo 7º (Direito à Liberdade Pessoal). 

A Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado define o crime como a privação de liberdade de uma pessoa ou mais pessoas, praticada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com autorização, apoio ou consentimento do Estado.

Adriano Araújo observa a importância de discutir e pressionar para que o País tenha políticas públicas voltadas para inibir e punir a violência praticada por integrantes de instituições de governo. Para ele, a comunicação popular, ou aquela fora do eixo da mídia corporativa, é fundamental para dar visibilidade à realidade das classes trabalhadoras, periféricas e negras, principalmente. 

Como exemplo do discurso midiático cheio de lacunas, Araújo citou as notícias sobre apreensão de grandes carregamentos de drogas ilícitas pesadas no Porto de Santos, no litoral paulista. “Nunca se fala de quem é a droga e como ela chegou até os navios”, apontou. 

Ditadura, empresários e Petrobrás

A finalização da primeira mesa do curso (5/12) foi feita pelo professor Julio Cesar Pereira de Carvalho, do Grupo de Estudos René Dreifuss (GERD). Ele apresentou sua tese de doutorado com a orientação  da professora Virgínia Fontes, na Universidade Federal Fluminense (UFF), que também compôs o livro “Petrobras e petroleiros na ditadura: trabalho, repressão e resistência”.

Carvalho destacou a dificuldade de romper a narrativa do império midiático brasileiro, na área de radiodifusão (rádio e televisão), formado por três ou quatro famílias, durante a ditadura empresarial-militar de 1964. “Além de se beneficiar economicamente e articular o golpe de 1964, esse império impõe, até hoje, o que se pretende ‘a’ verdade dos fatos e acontecimentos no País e no mundo”, disse.

A contribuição da pesquisa do professor Julio, disponibilizada em livro para discussão e reprodução na nossa comunicação popular, é mostrar o que não interessa para a mídia tradicional empresarial, concentrada em poucas mãos: “A minha tese vê o outro lado da moeda [na maioria das vezes tornada invisível para a sociedade brasileira], ou seja, como a construção de aparatos de vigilância e de repressão contou [no golpe de 1964] com a participação direta do alto escalão das Forças Armadas e de empresas. Precisamos perguntar: quem ganhou com toda essa repressão?”, indagou. 

Para o professor, é fundamental descobrir a relação orgânica entre empresários – entidades de classe, mineradoras, indústria automotiva, banqueiros etc. – e a ditadura para entender quem, porque e como ainda manda nos dias de hoje. “Por outro lado, percebi a lacuna, nessa relação, da alta diretoria da Petrobras e as classes dominantes. Na ditadura, a petrolífera demitiu, perseguiu e até torturou seus trabalhadores, no século XXI, a Petrobras volta de outra forma para desestabilizar a dinâmica política e econômica do Brasil com a operação Lava Jato”, explicou.

Julio Cesar Pereira de Carvalho faz um trabalho minucioso historiográfico para que a verdadeira história do Brasil não fique escondida, “importante, apesar do esforço que nos tentam impingir de que tudo começa e termina no presente, sabermos e contarmos a nossa história sob pena de repetir tragédias e comprometer futuros”.

Quem somos

Para ser mais exato, o 30º Curso Anual do NPC teve 187 inscritos. Somos de cidades dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Espírito Santo, Paraná, Pará, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Tocantins, Amapá, Sergipe, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Bahia, Distrito Federal, Minas Gerais, Acre. Estamos em diversos movimentos sociais e sindicais, desde sem-terra e sem-teto, professores das redes pública e privada, têxteis, servidores da Justiça do Trabalho e do CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], trabalhadores de pesquisa e desenvolvimento agropecuário, dos Correios, dos químicos, dos petroleiros, dos bancários, do movimento dos policiais antifascismo, da CUT, da União Movimentos Populares de Saúde.

Somos muitos e podemos falar para milhões. Pautas, lutas, ações e informações não nos faltam para fazer a boa comunicação popular, social e sindical. Bora nos comunicar!