“A Vila”, do diretor M. Night Shyamalan, faz a denúncia do papel maléfico do dinheiro e defende o isolamento das relações capitalistas. Mas isso não é possível. A luta contra o capitalismo tem que ser global. Experiências como o “socialismo num país só” da União Soviética mostram isso.
 

O filme mostra uma aldeia que parece estar em algum momento do século 19. A vida é pacata e bonita. Com muitos bosques e árvores. As pessoas, tranqüilas, não querem mais do que viver seu dia-a-dia sem muita tensão ou preocupações. Cada um faz sua parte para que a vida social seja harmoniosa. Apesar de haver um prefeito (William Hurt interpreta Edward), tudo é decidido coletivamente, com base no consenso.

Mas há uma restrição rígida. Ninguém deve sair da aldeia. Ninguém pode atravessar o bosque que circunda a Vila para chegar à cidade mais próxima, sob pena de ser atacado por Aquelas-de-Quem-Não-Falamos. Criaturas vestidas de vermelho, com garras e presas horríveis.

A restrição será quebrada quando o doente mental Noah Percy (Adrien Brody) esfaqueia Lucius (Joaquin Phoenix), porque tem ciúmes da ligação amorosa deste com a jovem cega Ivy Walker (Bryce Dallas Howard), filha do prefeito. Salvar a vida de Lucius está fora do alcance da medicina local. Alguém precisa ir até a cidade buscar remédios para o jovem moribundo. Ivy se apresenta para a tarefa. Seu pai, surpreendentemente, aceita com facilidade demasiada a idéia.

Os divulgadores do filme no Brasil solicitaram aos críticos presentes na pré-estréia que não divulgassem o final do filme. Este texto não vai acatar a solicitação. Mas, o final nem é tão surpreendente assim porque o segredo em torno das criaturas que amedrontam os moradores da Vila é revelado exatamente antes do que deveria ser o momento de maior suspense do filme. De fato, o espectador é avisado com muita antecedência do que vai acontecer. De qualquer maneira, aqueles que não querem saber do final do filme, podem retomar a leitura depois de ir ao cinema. 

Antes de Ivy sair para a missão, seu pai confessa que Aquelas-de-Quem-Não-Falamos não passam de uma farsa inventada pelos fundadores da cidade para impedir que os mais jovens deixem a vida tranqüila da aldeia. As criaturas que aparecem, vez por outra, nas proximidades do lugarejo são pessoas vestidas para assustar. Nada mais. Algo como um desenho animado do Scooby-doo. Se o diretor tivesse deixado a revelação para mais perto do final, a produção ganharia em suspense.

A demonização do dinheiro
A surpresa maior fica por conta da revelação de que a cidadezinha não passa de um condomínio, em pleno século 21, fechado e vigiado para que ninguém entre ou saia. Ivy descobre isso depois de passar maus bocados no bosque. Acontece que o agressor de Lucius, Noah Percy, foge de seu cativeiro. Veste uma das roupas das criaturas vermelhas e sai atrás de Ivy. Esta consegue enganá-lo, fazendo o cair num buraco, onde o pobre coitado morre. Depois disso, a bela cega corre para seu destino até se deparar com um muro, que separa o condomínio do mundo externo. Consegue pular a barreira e convence um guarda que faz a segurança em torno do condomínio a arranjar-lhe os remédios necessários. Ivy volta para a Vila e salva seu amado. Seu pai diz que vai ficar tudo bem. Vão usar o corpo de Percy como prova de que as criaturas realmente existem. Tudo voltará à normalidade. 

A normalidade da mentira, claro. E aí o filme pode servir de pretexto para discutir algumas questões interessantes. Em primeiro lugar vem a demonização do dinheiro. O prefeito Edward explica a sua filha que os veteranos inventores da farsa das criaturas porque cada um deles perdeu alguém muito querido no passado devido à ganância pelo dinheiro. Assaltos, desentendimentos, vinganças. Tudo envolvendo o dinheiro. Por isso, resolveram se refugiar num mundo sem a presença do dinheiro.

A idéia de que o dinheiro é mal por natureza é antiga. Chamado de vil metal desde muito tempo, o dinheiro é uma mercadoria cuja maior utilidade é o fato de poder ser trocada. Não tem utilidade por si só. Essa utilidade “inútil” do dinheiro é que faz dele uma mercadoria de que as pessoas desconfiam. Mas antes do capitalismo o papel do dinheiro ainda era claro. Era um meio de adquirir coisas úteis. No capitalismo, isso se inverte. 

Em “O Capital”, Marx apresenta o seguinte esquema. A forma simples da circulação das mercadorias, anterior ao capitalismo era é M – D – M. Ou seja, mercadoria – dinheiro – mercadoria. Quando é vendida, a mercadoria transforma-se em dinheiro. Quando este dinheiro é usado, transforma-se novamente em mercadoria. O processo começa e termina com a mercadoria.

Com o capitalismo, há uma inversão. A sociedade controlada pelo capital tem como centro de sua vida social a mercadoria. Tudo vira mercadoria. Com exceção de nossos parentes, todas as outras pessoas com quem nos relacionamos são parte do processo de circulação das mercadorias. Podemos simpatizar com o fulano do açougue em frente, mas primeiramente o conhecemos como vendedor da mercadoria carne. Lembramos do ciclano da padaria da esquina antes de tudo como o vendedor de pão. Quanto a nossos amigos, conhecemos muitos deles porque vendiam ou vendem sua força de trabalho na mesma fábrica, banco, escola etc em que vendíamos ou vendemos nossa força de trabalho. Nesse mundo as mercadorias é que circulam. Nós nos encaixamos onde for possível nessa circulação.

Para se isolar do dinheiro é preciso muito dinheiro
Então, sob o comando do capital, aquele esquema M-D-M transforma-se em D-M-D, dinheiro-mercadoria-dinheiro. Usemos um exemplo bem grosseiro. Imaginemos uma aldeia em que o peixeiro compra do ferreiro, mas este também venderá ao peixeiro, quando ele precisar de uma nova balança ou de facas. O tecelão fará o mesmo com o agricultor e vice-versa. O dinheiro está presente, mas seu caráter intermediário é mais claro.

Agora imaginemos essa aldeia se transformando numa cidade em que uma grande maioria trabalha para uma minoria em troca de salário, como no capitalismo. Essa maioria terá que ser remunerada em dinheiro para adquirir as mercadorias que ela mesma produz. Com isso, todo o resto começa a girar em volta do dinheiro. Já não circulam produtos e serviços através do dinheiro, mas dinheiro através de produtos e serviços. Há uma passagem de O Capital, de Marx que diz: “… uma mercadoria não se torna dinheiro somente porque todas as outras nela representam seu valor, mas, ao contrário, todas as demais nela expressam seus valores, porque ela é dinheiro. Ao se atingir o resultado final, a fase intermediária desaparece sem deixar vestígios”. D-M-D: O processo começa e termina com dinheiro.

Não se trata de atribuir um poder maléfico ao dinheiro, mas de identificar seu uso em uma forma de sociedade em que as pessoas se relacionam através das mercadorias e não as mercadorias através das pessoas.

A tentativa dos fundadores da Vila pode ter boas intenções. Mas destinadas a serem frustradas. Afinal, a manutenção de um condomínio como aquele exige exatamente muito dinheiro. No atual estágio do capitalismo é cada vez mais difícil fazer grandes investimentos que não tenham retorno rápido. E mesmo quando têm, podem ir à falência devido à enorme especulação financeira. É o caso da Enron, World.com, Parmalat etc. Ou seja, um empreendimento como a Vila é feito a fundo perdido. Não tem retorno. Num ambiente de competição selvagem, essa é uma despesa a que um capitalista não pode ser dar ao luxo por muito tempo. 

Mas o aspecto mais interessante do filme é o sonho do isolamento. Um sonho impossível e conservador. Impossível porque, o capitalismo é um sistema mundial. Não consegue ficar preso a fronteiras nacionais. Precisa buscar novos mercados o tempo todo. E é assim porque o que está na base do capitalismo é a desigualdade. De um lado, uma minoria que possui as fábricas, fazendas, bancos. Do outro lado, a grande maioria que tem somente sua força-de-trabalho para vender. Essa desigualdade leva a que, de tempos em tempos, a produção de mercadorias seja maior do que seu mercado consumidor. São as crises de superprodução, que levam os capitalistas a buscarem novos mercados. Seja, através de guerras, da conquista de territórios, ou da atual globalização, em que os paises ricos exigem a abertura das fronteiras comerciais e o desmonte dos parques industriais dos paises pobres. Em qualquer dessas formas, o resultado são milhões de mortos nos campos de batalha, nas guerras coloniais ou simplesmente de fome.

O capitalismo não é o fim de uma evolução histórica necessária. Não precisava ter sido jeito que foi. Ele é resultado de uma série de condições que se combinaram num local e momento específicos. Ou seja, na Inglaterra do século 18. Mas uma vez em desenvolvimento, o capitalismo foi impossibilitando o surgimento ou a sobrevivência de outras alternativas históricas, devido a sua vocação planetária.

A pátria dos socialistas é a classe trabalhadora
Os socialistas utópicos tentaram experiências isolacionistas. Robert Owen criou colônias onde as famílias deveriam viver em comunidade num ambiente de convívio espontâneo, abundância igual para ricos e pobres, substituição da competição pela cooperação. Anarquistas tentaram experiências em que a propriedade era comum, o dinheiro não existia, e os produtos do trabalho eram divididos de forma igual.

Cada uma dessas experiências foi vencida pela força ou pela competição econômica capitalista. Ou por ambas. E as experiências revolucionárias também. Desde as suas primeiras lutas, os trabalhadores já sabiam que precisavam se organizar internacionalmente. Sabiam que a pátria dos socialistas e anarquistas é a classe trabalhadora, não este ou aquele país. Sabiam que revoluções começariam em territórios nacionais, mas precisariam se espalhar rapidamente para não serem cercadas e asfixiadas pelos governos capitalistas. Mais do que isso, mesmo que o novo poder revolucionário resistisse, a continuidade de relações capitalistas no resto do planeta empurrariam a experiência socialista a adotar o seu jogo. O jogo da competição feroz e sangrenta. E aí o isolamento, além de não funcionar, ainda se torna conservador.

Foi o que aconteceu com a União Soviética. Logo após a revolução de 1917, o país foi cercado por exércitos de 14 países. Em 1920, a revolução havia conseguido derrotar todos eles. Mas, os inimigos voltaram ao ataque. Desta vez, apoiando a oposição interna ao governo revolucionário. Os antigos burgueses, que perderam seus privilégios. A produção de rifles em toda a União Soviética mal chegava ao um milhão de unidades. Mas só a Inglaterra, enviou para as forças contra-revolucionárias um milhão de rifles.

Diante disso, a única forma de salvar a revolução russa seriam novas revoluções. Principalmente, na Alemanha e na Itália, em que o movimento operário estava mais avançado. Com isso, poderiam deter as agressões e multiplicar os alvos a serem atacados pelos capitalistas, enfraquecendo a contra-revolução. Isso não aconteceu por uma série de motivos que não discutiremos aqui.

Já que a revolução internacional não chegava, Stalin decretou a União Soviética a “pátria do socialismo”. Agora, tudo o que a Internacional Comunista e seus representantes nos partidos comunistas no mundo fizessem tinha que ter como objetivo último a preservação da pátria socialista. Ao contrário do que defendia Lênin, em seu livro “Estado e Revolução”, o Estado não foi desaparecendo. Foi aumentando em tamanho e poder. Praticamente toda a vanguarda revolucionária de 1917 foi morta ou exilada. A classe operária foi massacrada nas guerras em defesa da revolução e foi sendo substituída pelos camponeses que sobreviveram à morte pela fome devido à coletivização forçada das terras russas, entre 1929 e 1930. A tudo isso, Stalin chamou de “revolução a partir de cima”. Nome bonito para o que foi uma contra-revolução.

Do capitalismo de Estado ao capitalismo de mercado
No mesmo período, os paises capitalistas passavam pela grave crise econômica de 1929. Os comunistas desavisados viam na ausência de crise semelhante na União Soviética, um sinal de que o socialismo funcionava. Mas o que estava acontecendo era um processo de acumulação primitiva de capital tocada pelo Estado stalinista. Enquanto, as economias capitalistas avançadas entravam em crise de superprodução, em terras russas havia escassez de produção. Grandes usinas de aço e ferro, minas de carvão, exploração de petróleo. Indústrias pesadas foram instaladas. A própria corrida armamentista da Guerra Fria ajudou a desviar recursos que poderiam ir para programas sociais para a indústria de armas, mantendo a economia aquecida.

O problema é que quando chegou a terceira revolução industrial, nos anos 1960, com a informática, química fina, automação e métodos gerenciais que dispensavam a utilização de enormes quantidades de força-de-trabalho, a União Soviética não tinha como acompanhar. No ocidente capitalista, a competição feroz que causava desemprego fazia parte do jogo. Na União Soviética, isso era inadmiss] ]>