Luiz Fernando Gallego, Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise RJ, novembro de 2004 

Chamas da Vingança conta a estória da fúria narcisista de um guarda-costas que não conseguiu evitar o seqüestro da criança que ele acompanhava. A partir desta frustração ele retomará sua implacável mecânica de “máquina de matar”: afinal, é um ex-agente com muitos serviços prestados a Tio Sam em territórios fora dos EUA. No papel de “justiceiro” tudo lhe é permitido: torturar sadicamente para obter informações; matar criminosos abjetos de modo abjeto – por exemplo, com explosivo no ânus ! Segundo Freud, o ódio é, cronologicamente, um sentimento bem precoce na história psíquica de cada um de nós, despertado por tudo que é vivido como “ruim” apenas porque não se coadune com nossos desejos egocêntricos. Nesta “lógica” solipsista tudo estaria justificado; e nos adultos com fortes traços de narcisismo arcaico, as reações de fúria narcisista se manifestam intensamente como subproduto do amor-próprio ferido. Talvez esta premissa se aplique às nações.

Em 1915, David Griffith lançava Nascimento de uma Nação, obra que consolidava e definia a então incipiente linguagem cinematográfica. O enredo era lamentavelmente racista, mostrando um negro – escravo – que tentava violentar uma moça branca; e isto “justificava” a Ku Klux Klan !  Se não foi exatamente assim que nasceu a nação norte-americana, este foi o nascimento do cinema americano. O diretor Tony Scott, competente artesão na linguagem de videoclipe e propaganda, não é equiparável ao “pai” da sintaxe do Cinema; mas quase noventa anos depois, pode-se constatar o que permanece imutável no ideário da América do Norte, assim como na dissociação entre a forma cinematográfica capaz de envolver o espectador e o conteúdo de muitos filmes portadores de preconceitos bem maquiados e azeitados para penetrar corações e mentes.

Em tempos de Condoleezza Rice, negros não são mais obrigatoriamente uma ameaça para mocinhas brancas; pelo contrário, um afro-americano como Denzel Washington pode até ser guarda-costas de uma menininha branca – ainda que filha de mãe americana e pai mexicano. Segundo o filme, guarda-costas são indispensáveis para os ricos do México que, como toda a América Latina – também informa o filme – sofre o horror dos crimes de seqüestro. Já o pai mexicano aceita Denzel para defender a integridade de sua filhinha mesmo que o outro lhe confesse seu alcoolismo. Mas a cativante menina – que toca Debussy e Chopin como nem Nelson Freire conseguiria na mesma idade – irá fazer com que o sisudo protetor se afaste da bebida para tentar cumprir adequadamente com seu dever.

Qualquer semelhança com George W. Bush, ex-alcoolista confesso e “justiceiro” do Ocidente contra o Oriente, não é mera coincidência. Tal como Bush e seu conselho de segurança, o guarda-costas do filme falha em evitar seu “onze de setembro” particular; e sua “cruzada” vingativa também será implacável contra os que infligiram tamanha ferida no amor-próprio norte-americano. A idéia é de que não se deve confiar em não-americanos, mesmo que sejam devotos da Virgem de Guadalupe; árabes são religiosos, mas podem ser perigosos. Hoje, os árabes – e outros povos do terceiro mundo – ocupam, não só no cinema, o lugar traiçoeiro que foi dos negros em 1915 e dos orientais em meados do século vinte (japoneses na II Guerra e, posteriormente, coreanos e vietnamitas nas demais incursões ianques ao Extremo Oriente).

Note-se que a trama que se esconde atrás do crime mais ou menos organizado dos seqüestros, tal como exibida no filme, é razoavelmente verossímil se comparada com nossa triste experiência de cariocas e brasileiros em geral: encobre uma promiscuidade degradante entre policiais e bandidos. E um concubinato perverso entre os criminosos ricos e os de origem pobre. Isto, que causa revolta, se soma à simpatia pela menina lourinha seqüestrada, bem como pela atitude pretensamente atenuante do guarda-costas negro que parece sofrer por erros do passado. A intenção é a de seduzir e manipular os sentimentos do espectador para que também aceite a vingança como substitutivo da Lei e da Justiça falhas. Enfim, uma “justificativa” para a barbárie da Roma atual, os EUA. O título do filme em português, neste caso, é bem sugestivo: a despeito da sabedoria de antigas peças gregas de Ésquilo, propondo a troca da vingança furiosa pelos tribunais de júri, quando falta o calor humano da Justiça eficiente e da Lei civilizadora, irrompem as chamas da vingança cega, surda, muda e burra.