Por Sergio Domingues, novembro de 2004. São Nicolau transformou-se no Papai Noel, velho, barbudo e gordo por obra e graça da Coca-Cola. Um verdadeiro santo capitalista. O filme de Robert Zemeckis é uma prece caprichada e nos faz perguntar porque a figura redonda e vermelha tem tanto apelo.
O filme que Robert Zemeckis dirigiu e produziu junto com Tom Hanks surpreende pela qualidade de suas técnicas de animação. Uma tentativa parecida foi feita em Final Fantasy (de Hironobu Sakaguchi e Moto Sakakibara – 2001). Neste filme, os atores virtuais tinham formas físicas bastante realistas, mas as expressões duras de seus rostos acabavam estragando a perfeição dos efeitos anatômicos. Já em Shrek 2 (de Andrew Adamson e Kelly Asbury – 2004), aconteceu o contrário. As expressões ganharam em naturalidade, mas não havia intenção de representar figuras humanas realistas. Agora, Expresso Polar, juntou a exatidão anatômica com a expressividade de rostos e gestos.
Tamanha perfeição técnica torna pertinente a discussão sobre a substituição de atores reais por seus sósias virtuais. No filme em questão isso fica ainda mais claro porque o próprio Hanks é substituído por um ator computadorizado que é sua cópia fiel. Mas, já discutimos essa questão no texto “Shrek” e o futuro dos atores de Hollywood”. Então, vamos abordar outros aspectos, também muito importantes.
Comecemos pelo óbvio. O filme aborda o Natal de um ponto de vista bastante norte-americano. A começar pelo objetivo do enredo. Desculpem contar o final do filme, mas o objetivo é dizer que Papai Noel existe. Baseado no livro de Chris Van Allsburg, a história tem como personagem principal, um garoto que está bastante desconfiado de que o velhinho barbudo e vestido de vermelho não passa de invenção de seus pais. Há outro garoto na história, igualmente cético. Mas, enquanto o primeiro menino duvida porque tem um senso crítico afiado, este tem razões bem mais concretas. Ele é pobre e raramente ganhou presentes na noite de Natal.
Papai Noel: inspirado num vendedor aposentado
Claro que no final do filme um e outro são vencidos em seu ceticismo. Eles não só vêm o Papai Noel em carne e osso, como encontram seus presentes esperando sob bonitas árvores de natal. Que isso tenha acontecido com o primeiro garoto não surpreende. Afinal, seus pais têm o dinheiro necessário para adiar a descoberta da fraude natalina, supondo-se que o menino tivesse sonhado com a viagem toda. No entanto, que o menino pobre tenha sido presenteado sem que seus pais tivessem condições para fazê-lo, será, claro, atribuído aos milagres da noite de Natal. E bota milagre nisso. É preciso crer. Creia e o capitalismo o recompensará com bens materiais.
Outro aspecto interessante é o desaparecimento da razão cristã para a comemoração da data. Mais especificamente, o nascimento de Jesus. O velho barbudo rouba a cena. Nada mais coerente. Nada mais norte-americano. Afinal, antes de sair voando por aí em seu trenó, Papai Noel era apenas São Nicolau. Um santo que era filho de pais ricos e acabou com sua herança distribuindo dinheiro aos pobres e presenteando crianças de famílias sem posses. Com o tempo foi sendo caracterizado como Papai Noel, principalmente na Europa e Estados Unidos. Mas, na visão de vários artistas que o representavam, sua figura aparecia das mais variadas formas. Até como elfo ou duende.
A esperteza comercial ianque mudou tudo isso. Em 1931, a Coca-Cola contratou o artista americano Haddon Sundblon para transformar Papai Noel numa figura totalmente humana. Sundblon inspirou-se em um vendedor aposentado e fez o Papai Noel tal como o conhecemos até hoje. Até a cor vermelha foi escolhida para combinar com os logotipos da empresa. Sai o menino Jesus que recebeu presentes do três reis magos na noite de seu nascimento. Entra o vendedor aposentado. Nada mais norte-americano do que isso.
O trem: símbolo de progresso, pretexto para massacres
Norte-americana também é a escolha do veículo que leva os meninos céticos para conhecer Papai Noel no Pólo Norte. O trem é tratado pela mitologia dominante nos Estados Unidos como símbolo de exploração de terras desconhecidas. Era o progresso chegando aos lugares mais desertos e selvagens. A primeira ferrovia transcontinental norte-americana resultou da junção dos trilhos das companhias Central Pacific Railway e Union Pacific Railway, em 1869. Uma trouxe sua linha ferroviária do Oceano Pacífico, a outra veio da costa do Atlântico. Vieram escoltadas pelos soldados do exército norte-americano, liderados pelos famosos generais Sherman e Sheridan. A fama dos dois militares foi construída com o sangue de centenas de milhares de indígenas, cujas tribos estavam atrapalhando o desenvolvimento do progresso. Foram devidamente massacrados, expulsos, perseguidos e enganados. Mas não foi só o sangue indígena que encharcou a terra em que os dormentes dos trilhos eram colocados. Muitos trabalhadores morreram, também. Eram brancos, negros, chineses, todos mal pagos. Foram vítimas de acidentes, doenças, ataques de índios e de animais.
Outra idéia bem estadunidense é a de um Pólo Norte povoado de duendes. Eles são os responsáveis pela fabricação dos presentes em enormes linhas de montagem. Estão lá no lugar dos trabalhadores, cuja presença na mitologia ianque é rara. Duendes são seres não humanos. Não fazem greves, talvez não comam etc. As criações da Disney são sem dúvida as mais famosas e bem feitas no gênero da animação. E nelas também a presença dos trabalhadores é rara. Nas histórias em quadrinhos, por exemplo, Donald, Peninha, Pateta só trabalham uma vez ou outra e sempre se dão mal. Quem já leu “Para Ler o Pato Donald”, de Ariel Dorfman e Armand Mattelart sabe bem disso. Se o fetichismo da mercadoria vem da inversão das relações sociais, em que as pessoas se relacionam entre si através das mercadorias, no mundo norte-americano da diversão cultural, a ligação entre mercadorias e pessoas desaparece completamente. É como se as coisas fossem produzidas por mágica. No máximo, por duendes.
Mas citar todos esses aspectos do filme deixa de lado algo mais profundo. Não basta questionar a origem estrangeira da gorda figura vermelha. De nada adianta inventar um correspondente nacional, de bermudas e camiseta, voando em uma jangada voadora e com as cores do guaraná Antarctica. O esforço dos “criadores de saci”, no sentido de valorizar o folclore nativo é até simpático. Mas, digamos que um movimento assim consiga substituir as figuras estrangeiras por personagens da mitologia local. Somente conseguirá manter e, talvez, reforçar um mecanismo que só faz aumentar as vendas e marginalizar os que não podem cumprir os rituais das datas comemorativas com ofertas materiais.
Os encantos de um barbudo que não é Karl Marx
O fato é que Expresso Polar fará muito marmanjo de esquerda voltar pra casa pensando num velho barbudo que não é Karl Marx. Fazer a crítica do consumismo de Papai Noel ou de sua origem estrangeira é correto. O problema é saber o que leva pessoas de todas as idades a precisar do mundo do faz de conta. Todos os povos, em todos os lugare
s sempre precisaram dessa dimensão fantasiosa. Principalmente, em sua função pedagógica junto às crianças. São formas de introduzir os pequenos aos problemas da vida, usando imagens claras e situações atraentes. E essa função marca toda a vida das pessoas.
A indústria de diversão aproveita essa circunstância da vida humana. Transforma-a em mercadoria. Se apropria de suas qualidades especificas e as transforma em pacotes quantificáveis. A deliciosa experiência de ouvir ou de contar um conto de fada passa a ser acompanhada pela necessidade de comprar os brinquedos, jogos e filmes a ele correspondentes. Ao “era uma vez…”, as crianças respondem cada vez mais com “compra pra mim”.
Há alguns paises da Europa que proíbem publicidade dirigida a crianças até certa idade. Precisaríamos adotar isso por aqui, também. Seria um avanço, mas ainda seria pouco. A esquerda revolucionária tem que se dedicar também a esse aspecto da luta ideológica. Ouvir pedagogos, psicólogos, especialistas. Mas, ouvir principalmente o próprio povo. Recuperar a história oral, prestar atenção à literatura de cordel e outras manifestações da narrativa popular. Principalmente, encontrar espaços para contar experiências pessoais. Criar um ambiente cultural menos marcado pela escravidão material a que o capitalismo nos condena. Construir formas novas de convivência social. Serão formas frágeis enquanto não mudarmos o mundo radicalmente, através da tomada do poder e de mudanças econômicas e políticas radicais. Mas, até para fazermos isso sem perigo de produzir ou reproduzir esquemas de dominação, é preciso dar asas à imaginação. Ousar voar e correr, sem precisar usar trens ou trenós ou acender velas para “santos” errados.
Visite www.midiavigiada.kit.net