George Romero explicou seu último filme com a seguinte frase: “Sempre achei que os zumbis são a classe operária na sociedade dos monstros”. Com essa dica, é possível ver no filme uma crítica ao capitalismo. A nós cabe nos juntar aos zumbis contra os monstros. Por Sergio Domingues, julho de 2005.

Romero ficou famoso com “Noite dos Mortos Vivos” (1968). Romero faz um tipo de cinema apelativo, com muito sangue, tripas e cadáveres podres perambulando. Portanto, não é para todos os gostos. Mas também tem suas pretensões políticas. Seus primeiros filmes fizeram críticas à Guerra do Vietnã, ao consumismo e ao autoritarismo da sociedade burguesa, principalmente nos Estados Unidos.

Na atual produção, o mundo está tomado pelos zumbis. Para proteger-se deles, os vivos isolam-se em áreas cercadas. Uma delas, é uma ilha. Mas há vivos e vivos. Os ricos se protegem dos defuntos que andam vivendo isolados em prédios luxuosos, que, não por acaso, são parecidos com shopping-centers. Os pobres vão se virando como podem numa cidade que virou uma enorme periferia violenta. Vendem bugigangas, roupas e comida em feiras muito parecidas com nossos camelódromos. Para proteger a todos há uma cerca elétrica e muralhas em que soldados e soldadas vigiam. De vez em quando, um deles (ou delas) brinca de tiro-ao-alvo com um zumbi que se aproxima demais. Qualquer semelhança com soldados israelenses fazendo o mesmo com palestinos vivos não deve ser mera coincidência.

Tal como os proletários, os zumbis não têm nada a perder

Mas, para além disso, e seguindo a dica do próprio Romero, os zumbis são como os proletários de nosso mundo real. Tal como eles, não têm nada a perder. No início do filme, por exemplo, o frentista Big Daddy (Eugene Clark), finge trabalhar no posto de gasolina que possuía enquanto era vivo. A cena pode ser uma referência ao desemprego. São como as centenas de milhares de pessoas que sabem que podem ser úteis, mas vivem numa sociedade que não lhes dá qualquer oportunidade. Seus corpos não têm licença para trabalhar, mas também não podem descansar.

Por outro lado, a mesma cena também pode simbolizar um mundo em que o trabalho deixa de ser uma relação criadora do ser humano com a natureza. Passa a ser exploração, castigo e destruição dos recursos naturais. É o que Marx chamou de trabalho alienado. Ou seja, algo estranho para seu próprio criador. Num caso ou no outro, ou o trabalho é atividade que empobrece ao invés de enriquecer, ou nem mesmo essa atividade sem sentido é permitida aos excluídos do emprego. Num caso e no outro, não são almas vagando sem seus corpos. São corpos distantes de suas almas. De qualquer maneira, o avanço dos defuntos é incessante. São muitos. E, apesar, de serem destruídos às dezenas em cada ataque, não param de chegar. Marx disse que a burguesia criou seus próprio coveiros, que são os trabalhadores. Em seu filme, Romero nos diz que, mais do que isso, os trabalhadores levantam-se de suas próprias covas para apavorar a burguesia.

Ao mesmo tempo, os vivos fogem dos mortos-vivos não apenas por nojo de seus rostos comidos por vermes ou de seus membros podres. É que os zumbis podem devorar os vivos ou apenas mordê-los. Neste último caso, a vítima transforma-se num deles. Ora, nesse mundo há dois extremos. Num lado, estão aqueles que acabam tendo uma vida quase normal em suas fortalezas. No outro, estão os zumbis. Criaturas que não têm nada a perder. No meio, estão os vivos pobres. Estes parecem retratar as classes médias de nosso mundo real. Vira e mexe, alguns de seus membros são “mordidos” e viram mortos-vivos do consumo. Vêm fazer parte de nossa comunidade que não tem nada a perder. É a diminuição da importância da classe média, que Marx e Engels já previam no Manifesto Comunista, em 1848.

Alguns dos personagens do filme querem fugir a esse destino. Um deles é o herói do filme, Riley (Simon Baker). Ele é um dos encarregados de buscar provisões no lado de fora da cerca. Tem bom coração, mas é amargo e desiludido. Quer fugir para o Canadá, onde acha que pode viver longe de confusões. Com ele, irão a valente prostituta Slack (Asia Argento) e Charlie (Robert Joy). Este simpático personagem teve o rosto deformado em um incêndio. Sua deformação e sua timidez fazem dele alguém que está a meio caminho entre os vivos e os mortos. Sua baixa auto-estima é a morte em vida que milhares de pessoas sentem por não terem a cor, o cabelo e o corpo que os massacrantes padrões de beleza impõem através da grande mídia.

Fogos de artifício simbolizam o poder da grande mídia

Falando em grande mídia, um dos meios para deter a marcha dos cadáveres é soltar fogos-de-artifício. Diante do espetáculo luminoso no céu, os morto-vivos estancam e olham hipnotizados para cima. Também parece uma referência à capacidade da indústria de diversão em manter distraídos os setores populares de suas tragédias diárias. No entanto, veremos que o expediente tem suas limitações. Os zumbis encontraram sua liderança. É o morto que trabalhava como frentista quando ainda era vivo. Em seu famoso filme de 1968, Romero colocou um ator negro no papel principal (Duane Jones). Agora, o zumbi que lidera a resistência dos mortos-vivos também é um negro. Provavelmente, uma homenagem aos mais explorados e discriminados entre os explorados e discriminados da sociedade norte-americana.

O fato é que os mortos-vivos começam a se organizar. O zumbi líder apodera-se da metralhadora de um guarda e aprende a usá-la. Mas, serão outras as armas que os mortos-vivos usarão. Depois de atacar um canteiro de obras, eles descobrem que podem usar pás, britadei

ras, picaretas e outras ferramentas como armas. Romero parece querer dizer que não é apenas o poder militar que pode garantir a vitória em uma rebelião dos trabalhadores. É sua condição de maioria e seu domínio sobre a produção social. Tal conclusão parece ser confirmada pela cena seguinte. É quando os zumbis descobrem que podem atravessar facilmente a grande extensão de água que os separa da ilha dos ricos. Basta andar por debaixo dela. A dominação ideológica também não nos deixa compreender o alcance de nossas capacidades. Mesmo que entre elas, não esteja andar por debaixo d água. O sintoma de que a dominação ideológica já não funciona é o fato de que os fogos-de-artifício perderam seu efeito sobre os mortos, que seguem em sua marcha contra os vivos. Nem sempre a grande mídia consegue esconder e distorcer os fatos do jeito que quer. Basta lembrar do episódio das Diretas, em 1984.

Enquanto isso, um dos vivos pobres tem sonhos de enriquecer. É Cholo (John Leguizamo), um mercenário de origem hispânica e nenhuma moral. Poderia ser preconceito de Romero contra os hispânicos? Não, apenas, uma situação possível. A costumeira cooptação dos pobres pelos ricos. O verdadeiro vilão é o poderoso Kaufman (Dennis Hopper), que comercializa artigos de luxo na fortaleza habitada pelos ricos. Este é o verdadeiro monstro. É para ele que Cholo trabalha, indo buscar champanhe, vinhos, jóias, fora da área reservada aos vivos. Cholo tem seus próprios planos e tenta trair seu patrão. Não consegue e ainda é mordido por um zumbi. O ataque vai transformá-lo num dos mortos-vivos. E isso o faz tomar consciência de que jamais será um dos poderosos. Por isso, antes de se transformar completamente num zumbi, Cholo volta para matar Kaufman. Este preparava sua fuga da fortaleza tomada pelos defuntos andarilhos. No final, tanto Cholo como seu patrão acabam mortos pelo zumbi líder, que retomando seu papel de frentista, usou gasolina para explodir os dois numa bola de fogo. Talvez, uma referência ao desastre em que se pode transformar a atual guerra pelo petróleo em que se meteu o governo dos Estados Unidos.

O filme acaba com Riley e seus companheiros finalmente fugindo para o Canadá. Pouco antes de partir, encontram-se com o zumbi negro e seus exército de defuntos. Slack prepara-se para atirar, mas é impedida por Riley. “Eles só querem encontrar um lugar para ficar”, diz, enquanto troca um olhar com o líder dos mortos-vivos antes de se separarem. Os heróis do filme são os que partiram para o Canadá ou os que ficaram na cidade? Ao gosto do freguês. Mas, no mundo real, fugir não é a solução. E ficar significa, mais cedo ou mais tarde, entrar para o time dos mortos-vivos para combater os monstros do capitalismo.

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Sérgio Domingues integra a equipe do NPC e escreve para as páginas Mídia Vigiada e Revolutas