(Lucília Maria Sousa Romão)

Professora  da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo analisa panfleto de latifundiários distribuído à população de São Gabriel, no Rio Grande do Sul, em 17 de junho. O panfleto segue abaixo do  texto da professora.

O panfleto circulou de mão em mão. Foi distribuído à população em 17 de junho, uma semana depois da Marcha Rumo ao Latifúndio ter partido da cidade de Pântano Grande. A manifestação dos oitocentos trabalhadores rurais sem-terra tem por objetivo apoiar a desapropriação de uma área de 13,2 mil hectares no município de São Gabriel, estado do Rio Grande do Sul, cujo dono é Alfredo Southall. As cinco fazendas, vistoriadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), foram consideradas improdutivas; não bastasse tal fato, o proprietário engorda um residual considerável de dívidas aos cofres públicos: a módica quantia de R$ 21 milhões. No local, seriam abrigadas mais de duas mil pessoas, cerca de quinhentas famílias. Por uma medida do Supremo Tribunal Federal (STF), a desapropriação foi suspensa. Latifundiários resolveram fazer um alerta pelo município, anunciando uma “catástrofe” e conclamando a população a preparar táticas de defesa, que incluiriam desde a construção de um buraco de dois metros na rodovia estadual, que liga o município à fazenda desapropriada, até a divulgação de um receituário de extermínio, discurso que me proponho interpretar a partir de agora.

Merece destaque a repetição da cidade: “povo de São Gabriel, São Gabriel, gabrielense amigo, povo gabrielense”. Mais do que uma mera repetição estilística, trata-se de uma marca indiciária. Na verdade, ela corporifica um poderoso elemento metafórico de coesão entre os moradores, apelando para sua origem geográfica como a delimitar uma identidade própria, portadora de força. Ideologicamente o sentido de ser gabrielense supera o fato de ser gaúcho e de ser brasileiro também. Entra em cena um novo personagem descolado do resto do país e dotado de uma natureza superior às contingências do Estado brasileiro. A cidadela “tão bem conservada, que nunca conviveu com a miséria” se pretende uma nação à parte e seu povo “ordeiro, trabalhador e produtivo” precisa ser salvaguardado do resto do país.

Observa-se o movimento de narrar uma ilha de fartura e bem-aventurança, como se em São Gabriel não existisse espaço para os problemas sociais. Ao colorir a naturalidade e a descrição da população, é criado um imaginário de representações, que passeia pelos sentidos de superioridade e poder. Povo e cidade são alinhados por um efeito de produção e prosperidade, emparceirados por adjetivos positivos. Esse movimento de hegemonia do povo purificado pelo trabalho e de supremacia da cidade constituída pela riqueza engendra uma combustão muito parecida com a noção de “raça pura” tal como a História nos conta. Além disso, abarca uma nova cruzada: o fortalecimento do poderio daqueles que possuem certo símbolo de nascença: o pertencimento à cidade. Puros, produtivos, banhados pela riqueza e pelo que “de melhor” existe na sociedade, são eles que anunciam, profetizam e se colocam no lugar de oradores das leis e ordens de comando. Basta observar o excesso de verbos no imperativo “não permita, prepara para a guerra, pulveriza, usa, atira” para assegurar que o sujeito assume o papel de um general à frente do exército. Grita manobras, modaliza justificativas, dogmatiza sentidos e proclama certa suástica ideológica, que ele supõe ser capaz de convencer seus soldados.

Resta perguntar: em lugar de quem ele enuncia e para quem ele se dirige? Serão os sentidos de seu discurso pertencentes a todos os moradores? As estatísticas de desenvolvimento e bem-estar social apontam um quadro real, que não dialoga com a imagem de uma cidade imaculada. Segundo o IBGE, o município de mais de 62 mil residentes conta com uma agricultura diminuta e com a terra concentrada. O número de casas assistidas pela infra-estrutura de rede sanitária, abastecimento de água e coleta de lixo somam pouco mais de 4000. Apenas 344 crianças freqüentam a pré-escola; no Ensino Fundamental não chegam a 5000 as crianças matriculadas e no, Ensino Médio, há 2700 alunos. Até 1999, não havia nenhum posto de saúde na cidade. No contraponto das carências objetivas de saúde, moradia e educação, pastam rebanhos bovinos nas terras de São Gabriel. A gorda cifra de 436 mil cabeças é indício revelador para se pensar quem capitaneou tal discurso, em que condições de produção o panfleto foi gerado e por qual prisma o sujeito, na posição de dono da terra, narra e vê o MST.

Postos os horizontes sociais que circundam a cidade, é possível afirmar que o discurso do sujeito é materializado pelos sentidos que a ideologia lhe permite enunciar. Ao registrar “gabrielenses dizem não à invasão e a seus apoiadores”, o sujeito se filia à tradição que coloca a classe proprietária de terra, na sua lida diária com a condição e a obediência bovinas, como a fonte da verdade e a única representação do município.

O sentido é compreendido aqui como efeito entre interlocutores, datado historicamente e afetado por posições de classe. Ocupando o lugar daquele que detem a terra e se vê ameaçado pela reivindicação dos integrantes do MST, o sujeito didatiza passo a passo as etapas de reconhecimento, criminalização e extermínio dos sem-terra. Apresenta uma retórica, que funciona como um receituário. E o faz com certa “autoridade” como a diagnosticar uma doença e um perfil de deformidade da saúde física e moral: “pés deformados e sujos da escória humana”, “massa podre”, “bêbados”. Do universo médico, o sujeito empresta certos significantes, colocando-se, assim, como um doutor capaz de traçar a interpretação dos sintomas, reconhecer a enfermidade e prescrever o receituário. Sentencia que: “vai doer, mas para as grandes doenças, fortes são os remédios” como no consultório tantas vezes se ouve a máxima de que o tratamento envolve sacrifícios, mas cura. Apenas uma ressalva, aquele que se coloca na posição de doutor está acostumado a contar cabeças de gado no curral, a marcar com ferro em brasa o lombo dos animais e a não ser questionado no pasto-consultório dos seus interesses.

O remédio indicado é o extermínio e a eliminação dos “covardes, bêbados, ralé, vagabundos e mendigos de aluguel”. O composto químico de preconceitos discursivizados por esses vocábulos arquiteta uma estratégia retórica de apagamento da reivindicação política do MST. Ao receberem a designação de “escória humana”, os sem-terra são julgados, sentenciados e ficam sem direito à voz. Por apresentarem vícios sérios de caráter, a luta pela terra (e especialmente o caso da desapropriação da área citada) deixa de ser merecedora de crédito. Pulsam aqui o movimento de imputar crimes e sua conseqüência mais direta: a condenação moral, jurídica e política. Não por acaso o sujeito alardeia o perigo daqueles que irão “trazer o roubo, a violência, o estupro, a morte”, abalando a ordem social pacífica da cidade. A gradação, dada por esses quatro vocábulos, aponta crimes cada vez mais hediondos e gravita em torno dos efeitos de crueldade que

tais crimes expressam. Dilata-se a noção da baderna, do terror e da ilegalidade, retórica muito conhecida pelos camponeses desde os movimentos libertários dos Quilombos, Levante de Ibicaba, Canudos, Contestado e Ligas Camponesas.

Ao afirmar a ilegalidade e os feitos criminosos do movimento, pretende-se calar não só o sentido dessa Marcha, mas também de todas as manifestações e atos realizados pelo país afora. Silencia-se o trabalho de educação vivido nos acampamentos e assentamentos de todo país, realidade que absorve cerca de 160 mil alunos e quase 4000 educadores em 23 estados da Federação, dando vida a 1800 escolas de Ensino Fundamental. As práticas cooperadas, a produção orgânica, o respeito ao ambiente também são sonegados. Apaga-se, por fim, o caldo de solidariedade em que fervilha a prática diária tão estimulada e vivida no movimento. A partir de um lugar social e interprelado por uma formação ideológica, o sujeito vocifera mais do que a prescrição de um medicamento: dá a exata dose, indica o medidor e explica a composição química do remédio. Goza ao falar dos efeitos colaterais.

Pulverizar gasolina no acampamento, envenenar as águas que servem de bica aos sem-terra e atirar de longe no corpo humano desprevenido banqueteiam passos aceitos e legitimados pelo código de ética desse sujeito, que sabe medir os sentidos da realidade social apenas pelo crescimento de suas cercanias e trata humanos como gado confinado. As práticas de matar por queima, envenenamento e tiro não são tidas como ações criminosas, mas como acordo entre “gabrielenses amigos”, destituídas da gravidade jurídica e moral que representam. Não são ditas como afrontas à Constituição e à Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas azeitam as engrenagens ideológicas fascistas e preconceituosas, dentro das quais posta-se o poder do latifúndio e a cegueira diante dos processos sociais.

Vale observar que o pacto de matança é narrado como uma conversa entre cavalheiros, um acordo consensual entre iguais, que certamente não envolve a maioria da população pobre, mal remunerada e desempregada da cidade. Para o gabrielense estar na roda dos “amigos”, é preciso que ele possua um avião agrícola, uma farmácia para o seu rebanho doente e, por fim, uma arma de caça, que fique bem claro: tais bens não são extensivos à maioria e, de imediato, já recortam os interlocutores de tal discurso. Em nome do sujeito que deseja vida eterna ao latifúndio, o serviço é “liquidar todos eles”.

“Eles” são condensados em uma metáfora que merece análise: “Estes ratos precisam ser eliminados”. Afora todos os adjetivos e atribuições já apresentadas para designar os sem-terra, o ultimato é dado pela representação da agressividade de um roedor. O sujeito mobiliza certa região de sentidos já construídos socialmente e consensuais a partir da memória já posta sobre esse animal, que faz referência às noções de imundície, sujeira e nojo. Sabe-se que tal animal procria e vive no subterrâneo escuro, úmido e fétido dos esgotos, dos depósitos de lixo e das áreas sem saneamento, daí deriva o fato de ser ele um vetor de contágio para mais de setenta doenças. “Ratos” sinalizam um elo de transmissão entre vírus e homens, na maioria dos casos envolvendo debilidade física e até a morte. Propagação, febre, dor de cabeça, prostração, vômitos, complicações renais e hepáticas sinalizam o tamanho da ameaça que os ratos representam à saúde pública. Com sua urina, eles tomam de assalto áreas inteiras após enchentes, contaminando a água, os alimentos e objetos; pestilizam bairros inteiros e espalham pragas de difícil controle. Da mesma forma, os marchantes espalham vírus e doenças pelo interior do país, semeiam o rastro de destruição por onde andam. Vistos como sujos habitantes do esgoto social, eles contaminam o latifúndio com a marca de seus passos insistentes e reivindicadores e inquietam a ordem estabelecida, manobra associativa que justifica mais uma vez a sanha de extermínio.

Ainda que sejam presos e mortos os integrantes dessa marcha, ainda que tombem seus corpos diante de seus feitores, ainda que a face do diabo apareça nas fronteiras da cidadela gaúcha para esburacar o sonho dessa desapropriação, ainda assim, não se calará a desigualdade de um país que sonega terra a seus filhos e nem cessará o clamor de que “essa terra ainda vai cumprir seu ideal”. Uma pena os donos dos pastos de São Gabriel não terem ouvido o poeta cantar que: “gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas com gente é diferente”. Fim ao receituário do extermínio!

Gabrielenses dizem não à invasão e a seus apoiadores

Povo de São Gabriel, não permita que sua cidade tão bem conservada nesses anos, seja agora maculada pelos pés deformados e sujos da escória humana.

São Gabriel, que nunca conviveu com a miséria, terá agora que abrigar o que de pior existe no seio da sociedade. Nós não merecemos que essa massa podre, manipulada por meia dúzia de covardes que se escondem atrás de estrelinhas no peito, venham trazer o roubo, a violência, o estupro, a morte. Estes ratos precisam ser exterminados. Vai doer, mas para as grandes doenças, fortes são os remédios. É preciso correr sangue para mostrarmos nossa bravura. Se queres a paz, prepara a guerra, só assim daremos exemplo ao mundo que em São Gabriel não há lugar para desocupados. Aqui é lugar de povo ordeiro, trabalhador e produtivo. Nossa cidade é de oportunidades para quem quer produzir e não há oportunidades para bêbados, ralé, vagabundos e mendigos de aluguel.

Se tu, gabrielense amigo, possuis um avião agrícola, pulveriza a noite 100 litros de gasolina em vôo rasante sobre o acampamento de lona dos ratos. Sempre haverá uma vela acesa para terminar o serviço e liquidar com todos eles.

Se tu, gabrielense amigo, és proprietário de terras ao lado do acampamento, usa qualquer remédio de banhar gado na água que eles usam para beber, rato envenenado bebe mais água ainda.

Se tu, gabrielense amigo, possuis uma arma de caça calibre 22 atira de dentro do carro contra o acampamento, o mais longe possível. A bala atinge o alvo mesmo há 1200 metros de distância.