(Sérgio Domingues)
Invasões Bárbaras é um filme bonito, sensível e pessimista. Pessimista como só a classe média pode ser quando descobre que tornar o capitalismo civilizado é como querer fazer as barbas do demônio.
O filme é uma continuação de “O Declínio do Império Americano” (1986) também do diretor Denys Arcand. Quase 20 anos depois, o mesmo elenco repete os personagens de “O Declínio”. Reencontram-se para consolar os últimos dias de Rémy, vítima de um câncer.
O filme de 1986 falava de um império em declínio. Qual império? A produção é canadense mas refere-se à sociedade norte-americana, incluindo o vizinho estadunidense. Fala de uma sociedade que tem um alto nível de civilização. Educação e saúde públicas de alta qualidade, distribuição de renda, seguridade social, baixa criminalidade, cidades arborizadas e tranqüilas, cercadas por belos campos. Apesar de tudo isso, os homens e mulheres mostrados no filme estão às voltas com suas obsessões sexuais, rancores pelas traições sofridas e arrependimentos pelas não cometidas, medos, angústias. Enfim, todo o conforto material não foi capaz de diminuir os conflitos existenciais de pessoas inteligentes, bem-sucedidas, maduras e sensíveis. Taí a crise do império. Tanta civilização só tinha que dar em decadência, diria Luis Fernando Verissimo.
Depois do declínio, os bárbaros
Tudo bem. Mas o que vem depois do declínio de um império? Os bárbaros. É o que nos ensina a história quando nos fala da passagem do império romano para o feudalismo. E quem são os bárbaros do filme de Arcand? A frase “invasão dos bárbaros” aparece numa cena em que a tevê do hospital mostra um comentarista falando sobre o ataque às torres gêmeas de Nova Iorque. Mas, segundo a visão de Rémy, a barbárie não está apenas nos ataques externos ao império. Os bárbaros têm aliados como seu próprio filho, Sebástien. O rapaz não se interessa por livros e discussões acadêmicas e políticas. É um executivo de uma corretora que assume enormes riscos financeiros e, por isso mesmo, fatura rios de dinheiro. Ganha em um mês o que o pai não chega a ganhar em um ano.
Educado nesse mundo de enormes riscos, o jovem vem em socorro do pai. Rémy está em um hospital público pouco melhor que os que conhecemos em terras brasileiras. Faltam leitos, os exames são demorados, quartos exclusivos, nem pensar. Sebástien é o bárbaro que chega empunhando dinheiro e não um machado. Compra a administração do hospital e o sindicato local. Manda construir um quarto numa ala abandonada do prédio. Paga exames caríssimos, banca a viagem dos amigos e suborna alguns alunos do pai para que venham ao hospital demonstrar uma comoção que não sentem. Aconselhado a oferecer heroína ao pai para diminuir o sofrimento, dá um jeito de obter a droga. Primeiro, tenta junto à polícia, mas seus integrantes não concordam porque temem ser uma armadilha da mídia, nada mais. Então recorre diretamente aos traficantes com a ajuda de uma amiga de infância, usuária da droga.
No lugar do machado, o dinheiro
É como se fundamentalistas islâmicos e neoliberais se merecessem. Claro que Sebástien não é o vilão do filme. Apenas mostra a seu pai como se lida com um mundo de pernas para o ar. Os serviços públicos que seu pai tanto defendia só funcionam à base de corrupção. O sindicato está nas mãos dos mafiosos. A polícia teme a mídia, mas o policial admite que concentra a repressão nos usuários e não nos traficantes. A barbárie ganha terreno fácil. E Sebástien circula com desenvoltura nesse terreno para dar a seu pai um fim digno.
Por outro lado, há uma cena em que Rémy e seus amigos falam dos vários “istas” que já foram. Desde monarquistas até existencialistas, passando por maxista-leninistas e maoístas. Na verdade, representam uma classe média que vê a luta de classes mais ou menos de camarote. São bem intencionados, progressistas, odeiam a pobreza e a injustiça, mas vão tocando suas vidas entre a academia de letras e a academia de ginástica. As conquistas de que essa classe média se orgulha são aquelas obtidas pelas reformas. Reformas para melhorar os serviços públicos, para distribuir melhor a renda, tornar a vida menos dura e miserável.
Nada contra. Reforma e revolução não são incompatíveis. O problema é que reforma e capitalismo também não são. A burguesia, quando obrigada a isso, até que aceita umas reforminhas. Mas somente até que elas não façam a água bater no seu traseiro gordo. Aí, passa a valer a contra-reforma. Bastou a crise econômica atingir os impérios (americanos ou não) para que o Estado de Bem-Estar-Social começasse a virar passado. Aí, o hospital público canadense passou a se
parecer com o hospital brasileiro, argentino, sul-africano. Aí, aqueles que acreditaram que a sociedade justa chegaria gradualmente, pouco a pouco. Pedindo licença aqui, dando uma cotoveladinha ali na burguesia. Esses sentiram todo peso da frustração.
O filme não se reduz a isso. É bonito. Fala de amizade, amor entre pais e filhos, solidariedade. É triste como deveria ser, e engraçado como não se esperaria. É sensível e deve ser assistido por todo mundo (leve uma caixa de lenço). Mas também parece de um pessimismo classe média. De alguém que não conseguiu ver que os bárbaros nunca foram embora. Estavam à espreita. Prontos para contra-atacar. E não são os que tombaram as torres de Manhatan.
Dezembro de 2003