(Boaventura Santos)

 

Os processos judiciais midiáticos confrontam-nos com um dilema: todos os comentadores, analistas e políticos responsáveis estão de acordo em que a Justiça deve ser feita nos tribunais e não nos meios de comunicação, mas todos usam estes últimos para o afirmar.

Os processos judiciais midiáticos confrontam-nos com um dilema: todos os comentadores, analistas e políticos responsáveis estão de acordo em que a Justiça deve ser feita nos tribunais e não nos meios de comunicação, mas todos usam estes últimos para o afirmar. Um dilema a que eu, obviamente, não escapo. Já que é assim, o proveito da atenção dada pelos meios a este tipo de casos reside na possibilidade de levar a um público mais amplo as análises da Justiça que normalmente ficam confinadas aos operadores e aos estudiosos do sistema judicial.

O processo Casa Pia [caso de pedofilia que envolve personalidades portuguesas] integra-se naquilo que designo por Justiça dramática. Trata-se de casos em que a natureza dos crimes e a notoriedade dos presumíveis criminosos fazem com que sobre eles incida a atenção dos meios de comunicação social. Ainda que esta visibilidade pública cubra uma fração infinitesimal do trabalho judiciário, é suficientemente recorrente para não parecer excepcional e mesmo para parecer corresponder a um novo padrão de intervencionismo judiciário. Os casos de Justiça dramática transformam-se rapidamente em símbolos de justiça ou de injustiça e o seu desenrolar e desfecho em prova pública do bom ou mau desempenho do sistema judicial. Estes casos ocultam todo o trabalho judicial que extravasa deles, inclusive o que respeita a outros casos de Justiça dramática. É da natureza destes casos não partilhar a ribalta. Foi, por isso, que o caso da Universidade Moderna desapareceu dos meios no momento em que surgiu o caso Casa Pia. Tais factos bastariam para justificar a análise serena e detalhada destes casos. Mas duas outras razões podem ser aduzidas, ambas respeitantes aos estereótipos sociais sobre o que é crime e quem é criminoso. A primeira é que os casos de Justiça dramática referem-se em geral a crimes (corrupção, crime organizado, pedofilia) muito diferentes daqueles que constituem a rotina do controle social e presidem à formação e ao preparo técnico dos investigadores (crime contra a vida, furto e roubo). A segunda é que os presumíveis criminosos são indivíduos ou organizações com muito poder social e político que, para além de fugirem ao estereótipo do criminoso, têm poder suficiente para virar o público contra o sistema judicial e para criar divisões profundas no seio deste.

A Justiça dramática levanta assim dois problemas: a vontade política para investigar, acusar e julgar e o preparo técnico para o fazer eficazmente. No caso Casa Pia está neste momento em causa a qualidade da investigação e da acusação. Estas, para serem de boa qualidade, têm de saber “armar-se” contra uma defesa que se adivinha forte. Têm que saber blindar o processo contra erros grosseiros de investigação e contra questões de ordem formal, obrigando a defesa a centrar as suas forças na discussão do mérito da causa (o réu cometeu ou não o crime?) e não nos formalismos processuais (foram ou não cumpridas todas as regras do processo?). Aliás, disto também beneficia a própria defesa, pois que, nestes casos, o réu absolvido por razões processuais é sempre um réu meio condenado perante a opinião pública.

O Estatuto do Ministério Público permite a constituição de equipes especiais para garantir a qualidade da investigação e da acusação em casos que particularmente o justifiquem. Foi o que se fez, por exemplo, no caso das FP25 [grupo político responsável por atentados em Portugal na década de 80]. Nessa altura, o MP constituiu uma forte equipe de magistrados que chegou a ser apelidada, nos meios forenses, de “equipe imbatível”, que imprimiu uma grande dinâmica e coesão a toda a atividade de investigação. O resultado foi um total sigilo e uma investigação célere e eficaz. Em breve saberemos se o caso Casa Pia é revelador da mesma vontade política e do mesmo preparo técnico que caracterizaram a investigação e a acusação no caso FP25.

Boaventura Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal)

Janeiro de 2003