Cartunista denuncia violência policial

No dia 2 de outubro acordei às 5 da madruga com o telefone tocando.
Era o Latuff. Três coladores de cartazes acabavam de ir em cana
e ele era o autor da obra. Conheça os motivos que o levaram
a protestar contra a violência policial

Por Claudia Santiago

Conquista – Por que você decidiu colocar na Internet a página A Polícia Mata?
Latuff – Em protesto. O primeiro protesto foi por ocasião da divulgação daquele vídeo amador, em 97, que mostrava moradores da Cidade de Deus sendo espancados pela Polícia Militar. Eu fui até lá e grafitei o muro com a mensagem Violência Policial, não! . Era um desenho no qual aparecia um PM sorridente, com um cassetete na mão pronto para quebrar nas costas de um morador com as mãos encostadas na parede e olhos assustados.

Conquista –  E por que outro agora?
Latuff – Porque de lá para cá não houve melhora. Muito pelo contrário. Estatísticas publicadas pela revista Veja revelam que aumentou em 400% o número de crimes cometidos pela polícia. Então eu resolvi fazer a página A polícia mata. Lá estão registradas várias situações de violência praticada pela polícia, além do seu envolvimento com a criminalidade.

Conquista – Você e três rapazes foram presos por causa da página.
Latuff – A decisão de fazer a homepage resultou em um cartaz para sua divulgação.Eu queria fazer um out-door mas as empresas se recusaram a veiculá-lo. Então resolvi fazer cartazes anunciando a homepage. Produzi mil cartazes e eles estavam sendo colados, quando a Polícia Militar chegou e prendeu as três pessoas que estavam fazendo a colagem no Centro e Zona Sul.

Conquista – Pessoas contratadas?
Latuff – Sim. Eram pessoas contratadas. Foram levados para a 5ª DP, na Gomes Freire.

Conquista – E aí, o cartaz estava assinado? E os rapazes?
Latuff – Estava. Eles me ligaram apavorados eu fui até lá e assumi a autoria do cartaz e do site.

Conquista – Sofreram algum tipo de coação ou violência física?
Latuff – Não. Nem mesmo fomos autuados. O delegado disse, inclusive, que concordava com o meu protesto, só que achava que eu deveria fazê-lo de forma menos agressiva. Não é interessante para o sistema que haja este tipo de protesto. E o RJ-TV cumpriu a tarefa de porta voz do sistema.

Conquista – Como assim?
Latuff – Foi veiculada uma matéria no mesmo dia do episódio que, em tom grave, disse que eu estava sendo enquadrado pela polícia no artigo 14 da Lei de Imprensa. Disse que estaria incorrendo em uma destas três coisas: propaganda de guerra, subversão da ordem política e social ou discriminação de raça ou categoria profissional. Eu estaria discriminando a polícia. Esse tipo de coisa nos remete a uma idéia geral de que vivemos numa democracia mas não é verdade. Muitos cartunistas hoje não podem seguir a linha do antigo Pasquim porque há uma visão de que não há mais lugar para a linguagem utilizada nos tempos da ditadura porque hoje não se tem mais ditadura, não se tem mais repressão. Ela mudou de estilo, mas existe. Eu ainda corro o risco de ser autuado. A polícia pode decidir abrir inquérito.

Conquista – Qual a principal mensagem que você quer passar com a página?
Latuff – É uma crítica ao sistema policial. Ao sistema de recrutamento, seleção e treinamento de policiais. Eu quero discutir quem é este policial que as instituições policiais estão formando.

Conquista – Por que?
Latuff – É possível tirar todos os policiais bandidos e violentos da rua. O problema é que outros os sucederiam porque o sistema continua criando este tipo de policiais.

Conquista – O que tem de ser questionado?
Latuff – Os comandos que formam este tipo de policial. O crime é a ponta. O discurso é que é uma minoria de policiais que agem desta maneira. Não. Está errado. A maioria não é gente boa. O James Cavallaro, diretor da ONG Humans Right Watch no Brasil, declarou e eu assino embaixo, que não existe uma banda podre na policia, existe uma banda boa. A polícia em sua quase totalidade está comprometida com ideais outros que não são do combate ao crime e do respeito aos direitos humanos. Antigamente, em nome do combate ao comunismo e à subversão todos os tipos de crime eram cometidos. Hoje, em nome do combate ao crime tudo se faz, tudo é permitido. Tortura. Execuções extra-judiciais. Tiroteios com armas pesadas do Exército no meio da rua.

Conquista – Os baixos salários não contribuem?
Latuff – Se fosse assim, os piores crimes seriam cometidos pelos professores que recebem salários horrorosos. Podia justificar. “Matei porque sou professora”

Conquista – Essa eu gostei.
Latuff – O policial sai da Academia pronto para combater o vietcong. Lembro de uma ação da Polícia Civil em uma favela, quando um cara, sozinho, matou cinco. A declaração do cara, sorrindo, todo orgulhoso: “Me senti como se estivesse no Camboja”. O policial é treinado para isto. É um resquício da época da ditadura.O negócio dele é guerra.

Conquista – Como você acha que a sociedade deve agir neste debate?
Latuff – A sociedade precisa parar de alimentar a impunidade. Precisa se organizar e protestar. Por isto aquela matéria do RJ/TV foi daninha. Ela funcionou como um alerta. Olha, cidadão, tá vendo o que acontece quando você fala demais. Você pode pegar de um a quatro anos de cadeia.

Conquista – Você está acompanhando a política de segurança do governo estadual?
Latuff – Estou. Logo que assumiu tomou medidas que considero importantes, inclusive no que se refere à formação policial. Sinceramente, este problema é muito mais profundo. Nos meus 30 anos de vida ainda não vi nenhum governo que combatesse de fato esta questão. Este é um problema do sistema, não é o problema de um governo.

Conquista – Que sistema é este, o sistema capitalista?
Latuff – Exato. O sistema tem um conjunto de interesses que precisam ser mantidos. Ele tem representantes no empresariado, no governo. A polícia está a serviço do sistema, seja ele qual for. A Globo é mantenedora do sistema. O padre Marcelo faz parte. O Ratinho faz parte do sistema. Todo este conjunto mantém, conserva o direito da burguesia, o direito de quem tem o poder. A Polícia está a serviço do sistema.

Conquista – Se a repressão policial é tão violenta, por que há poucos protestos?
Latuff – As pessoas têm a idéia de que o policial que mata bandidos atravessa velhinhas nos sinais de trânsito. Isto não acontece. O policial que mata bandido é um policial brutal que mata gente inocente também. Somos obrigados a reconhecer que há uma boa parcela da população que quer a polícia assim.

Conquista – Quem protesta?
Latuff – A população mais pobre, que toma porrada, tiro, que tem o barraco invadido não quer essa polícia. Os que defendem esta polícia não percebem que a violência policial daqui a pouco vai atingir seus filhos. Já atinge através de seqüestros onde sempre há policiais envolvidos. A grita maior que a gente vê é quando filhos das famílias da classe média são atingidos.

Conquista – Você me disse uma vez que o Sistema precisa de um inimigo.
Latuff – O policial vê o sindicalista como inimigo. Nas manifestações é cassetete, bala de borracha, gás lacrimogêneo, cães. O sindicalista é o inimigo. O favelado é o inimigo. O sistema precisa de um inimigo. O inimigo é a população. O sistema precisa controlar a população com rédea curta. Qualquer manifestação que quebre a pasmaceira, a inércia que a Globo e o Padre Marcelo ajudam a criar, deve ser reprimida com rigor.