Entrevista de Ana Rocha sobre 64 é aula de história do Brasil

A conspiração começou desde que Jango assumiu o poder


Ana Rocha foi editora do jornal A Classe Operária. 
Em l995 foi eleita presidente do PCdoB 
no Rio de Janeiro.
Integra o Comitê Central do PCdoB 

e sua Comissão Executiva Nacional.

Conquista > Onde você estava em 31 de março de l964?
Ana Rocha > Nasci no Piauí, mas nessa época estava em Salvador, para onde meu pai se transferiu com a família de 9 filhos. Cursava o ginásio e ainda não tinha a dimensão exata do significado nefasto de tal fato para o Brasil. Pouco a pouco, passei a conviver, através de minhas irmãs mais velhas, que eram dirigentes da Ação Popular (AP), com ações de resistência à ditadura. Por minha casa passaram os principais líderes estudantis daquela época que viviam na clandestinidade. Muitos foram perseguidos e torturados e outros assassinados pela ditadura como, Duda Colier e Ruy Frazão. Presenciei reuniões que varavam a madrugada e preparavam ações em terminais de ônibus, nas universidades e nas fábricas, manifestações contra o acordo MEC-USAID, contra o imperialismo americano.

C > Qual a lembrança dos tempos de Ditadura que mais te marcou?
Ana
>
A minha irmã mais velha foi presa no Congresso da UNE em Ibiúna e não me esqueço da cena de desespero de uma de minhas irmãs quando abriu o jornal e leu a manchete sobre as prisões dos estudantes em Ibiúna. E o sofrimento de meu pai de ir até à prisão para tentar tirar a filha presa. Essa minha irmã e outra que também era dirigente de AP entraram na clandestinidade e passaram cinco anos sem se comunicar com a família. Isso foi em l968, quando promulgado o Ato Institucional número 5, e o decreto 477que cassava o direito de cursar as universidades àqueles que lutavam contra a ditadura. A partir daí a repressão aumenta, assim como as prisões e a tortura. Cena que não me esqueço é quando da euforia da copa do mundo em 70, no auge da ditadura, os estudantes universitários iam comemorar a vitória de cada jogo em um bar chamado Braza, em Salvador. Lá tinha sempre uma estudante que, embora presente, não compartilhava da euforia geral. Aquilo me incomodava, até que fiquei sabendo que sua irmã estava sendo torturada nos porões da ditadura. A campanha Pra Frente Brasil, encobria para a maioria da população as atrocidades cometidas contra os que lutavam contra a ditadura e seu patrocinador, o imperialismo norte-americano. O sentimento antiimperialimo foi tão forte, a ponto de até usar calça jeans e tomar coca-cola ser um ato afrontoso para os jovens revolucionários da época.

C > Como começou sua militância?
Ana
>
No movimento estudantil universitário. Em 69 comecei a cursar Psicologia na Universidade Federal da Bahia. De 69 a 73, o período que fiquei na Universidade, foram os anos mais ferozes da ditadura. Filiei-me ao PCdoB em l973. Nesse ano casei-me com um dirigente da AP que depois ingressaria no PCdoB. Juntos passamos a integrar o Movimento Conjunto da Bahia, que era uma articulação de entidades progressistas que atuava em defesa da democracia. À medida que essa luta de resistência cresce, a ditadura reage com prisões e novas perseguições, que tem seus últimos estertores com a morte do jornalista Wladimir Herzog em l975, e a queda da Lapa em dezembro de l976, com o assassinato e prisão de vários dirigentes do PCdoB. É nesse contexto que, no final de l975, a direção do PCdoB propõe que meu companheiro e eu fôssemos para a Albânia, trabalhar na Rádio Tirana, transmitindo informações para o Brasil. Lá passamos cinco anos sem que nossos familiares e companheiros soubessem onde estávamos. Voltamos para o Brasil em l980, depois da anistia e formos atuar como dirigentes do PCdoB em Porto Alegre. Fui editora do jornal A Classe Operária e, em l995, fui eleita presidente do PCdoB no Rio de Janeiro.

C > Que interesses tinham as forças que deram o golpe militar?
Ana
>
Em 64 reinava um clima de liberdade e de avanço do movimento democrático e antiimperialista. Sob o falso pretexto de que João Goulart favorecia os comunistas, grupos militares e de civis iniciaram uma conspiração para derrubar o governo e deter o ascenso das lutas populares. Tudo com o patrocínio do imperialismo norte-americano. “A conspiração começou desde que Jango assumiu o poder”, disse abertamente o Mal. Dennys, em entrevista a O Cruzeiro, na época. Latifundiários armados realizavam violenta repressão aos camponeses. Setores reacionários do clero mobilizavam fiéis em passeatas e procissões. E, no comando, a embaixada dos EUA, que agia em todo o território nacional. Imperialistas e reacionários tramaram contra o povo, depuseram o presidente da República e instauraram uma ditadura militar a seu serviço. Governadores e prefeitos, eleitos pelo povo, foram substituídos arbitrariamente por militares ou seus prepostos. Nos sindicatos foi estabelecido o regime de intervenção ministerial. Estudantes e professores foram expulsos das universidades. Centenas de oficiais e sargentos viram-se reformados ou alijados das Forças Armadas. E, com a cassação dos mandatos, o Parlamento transformou-se em simples chancelaria do Poder Executivo. O Fundo Monetário Internacional passou a ditar a política econômico-financeira,
que sob o lema de combate a inflação, prejudicou o povo e freou o desenvolvimento econômico do país. O resultado foi o aumento da carestia, o desemprego, a escassez de alimentos e o arrocho salarial. A submissão aos interesses do imperialismo norte-americano aumentou com a aprovação do estabelecimento de missões militar e naval no Brasil, a permissão para que o governo americano atr

avés da USAF – United Air Force, realizasse levantamento aerofotogramétrico de extensas regiões do país.

C > Por que os trabalhadores inicialmente não reagiram ao golpe?
Ana
>
Naquele momento histórico, predominava no movimento democrático e antiimperialista (influenciado pelas teses difundidas pelos soviéticos), a idéia de que a revolução no Brasil se faria por meio do caminho pacífico, de reformas sucessivas, nos marcos do regime vigente, aperfeiçoando a máquina estatal, colocando homens nacionalistas em postos-chave. João Goulart confiava poder realizar algumas reformas e manter-se na Presidência apoiado no movimento sindical e nos comandos militares mais importantes. O golpe mostrou quão ilusória era a tese do caminho pacífico para grandes transformações sociais. O movimento democrático não foi capaz de organizar a luta para enfrentar os golpistas. Houve também a subestimação da atividade do imperialismo norte-americano no Brasil e de seus planos de guerra e de domínio mundial. Tornou-se público, que depois do grande comício da Central do Brasil de l3 de março de l964, os EUA puseram sua máquina em ação para derrubar João Goulart. Outro fator a considerar é que a direção do movimento democrático estava nas mãos da burguesia reformista e não nas mãos dos trabalhadores. Essa direção pretendia solucionar os cruciais problemas do país através de reformas, sem romper com o imperialismo e o latifúndio. A direção de Goulart revelava a vã tentativa de conciliar os interesses nacionais com a dominação dos monopólios norte-americanos e com a manutenção do sistema de propriedade da terra.

C > O que a Guerrilha do Araguaia. significa para o PCdoB?
Ana
>
Como afirmava João Amazonas, presidente do PCdoB, o Araguaia é mais um elo na longa cadeia de gloriosas lutas do povo brasileiro. A ditadura que se implantou no país se voltou contra o povo e o povo reagiu. Como na passeata dos cem mil em protesto contra a morte do estudante Edson Luis, no Rio de Janeiro. O regime militar recrudesceu com perseguições, prisões e torturas. As greves foram proibidas, os sindicatos interditados. O AI-5 impôs um regime de terror contra o povo. Foi nesse ambiente que surgiu a guerrilha do Araguaia, organizada e dirigida na clandestinidade pelo PCdoB. Destinava-se a organizar a resistência armada contra a ditadura, já que não havia espaço para outras formas de luta nas cidades. O seu objetivo político foi anunciado em um documento largamente distribuído entre a população do Sul do Pará, intitulado “União pela liberdade e pelos direitos do povo”. O Araguaia foi um movimento intimamente ligado à população camponesa pobre e sofrida da região. Resistiu por três anos. Foi uma luta de cem contra vinte mil. Apesar da tremenda desigualdade, os guerrilheiros e guerrilheiras demonstraram bravura para defender a causa do povo brasileiro, por liberdade e justiça social. A Guerrilha do Araguaia reflete não só a determinação dos comunistas, como a fibra do povo da região, capaz de dar a vida em defesa do ideal de liberdade. A repressão feroz derrotou a guerrilha, crimes bárbaros foram cometidos , degolaram guerrilheiros, expuseram corpos mutilados nas vilas e cidades para aterrorizar a população, torturaram e mataram prisioneiros indefesos, tentaram apagar os vestígios da guerrilha. O PCdo B continuou sua luta de resistência nas cidades, nos clubes de mães, no Movimento Contra a Carestia, na ampla mobilização pela anistia, pela constituinte, pelas diretas…etc. etc, etc. Foi essa resistência junto com o democratas e o povo brasileiro que levou à derrota da ditadura e à recuperação dos direitos democráticos, à eleição de Lula à Presidência da República. Hoje, o desafio é consolidar a democracia, a organização popular, a ampliação dos direitos dos trabalhadores, reforçar a soberania nacional, enfrentar as imposições do capital financeiro e colocar o Brasil no trilho do desenvolvimento, com geração de emprego e renda. Muita luta pela frente para continuar realizando o sonho daqueles que tombaram nas diversas trincheiras da resistência democrática.