Por Claudia de Abreu
Uma das iniciativas mais ousadas do início do governo Lula foi a instituição de um processo democrático para a digitalização da televisão brasileira, com a criação do SBTVD. O Sistema Brasileiro de Televisão Digital foi uma semente plantada para o desenvolvimento da tecnologia do setor em nosso país.

O decreto de criação do SBTVD (4901, de 26/09/03) previa: “a promoção da inclusão social”, o estímulo “à expansão do setor com a entrada de novas empresas”, a “expansão de tecnologias brasileiras e da indústria nacional” e “a criação de uma rede universal de educação à distância”, entre outros objetivos.

Durante cerca de dois anos os cientistas se debruçaram em pesquisas, organizados em 22 consórcios formados por universidades brasileiras e centros de pesquisa. Cerca de 1500 pesquisadores brasileiros desenvolveram e aperfeiçoaram tecnologias compatíveis com os sistemas digitais existentes. Mais de 80 possíveis patentes foram apresentadas no relatório do CPQD, Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações, que compilou as pesquisas.

A PUC/RS criou o Sorcer, um padrão de modulação de alta compressão que permite a transmissão para recepção móvel em alta definição dentro da banda eletromagnética reservada á radiodifusão e reduz os custos dos aparelhos receptores. A UFPB aperfeiçoou o middleware usado no sistema europeu e criou o FlexTV e a PUC-Rio criou o Maestro, depois fundidos em um só: o Ginga. Segundo pesquisadores, é o que de mais moderno existe no mundo em middleware

. Outras universidades criaram aplicativos em TV Digital em diversas áreas como saúde, educação e governo eletrônico. Esses aplicativos funcionam como uma página interativa na internet, só que disponível para todos que tiverem um aparelho de tv.

Apesar de realizado com verba pública – R$ 56 milhões, com recursos do Funttel, Fundo de Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações – o resultado das pesquisas não foi divulgado oficialmente pelo governo. O relatório foi entregue ao ministério das Comunicações em fevereiro de 2006 e até hoje não foi divulgado pelo governo. Sabe-se de seu conteúdo porque uma versão vazou para alguns meios de comunicação especializados, que o divulgaram pela internet.

Sem cumprir a lei – O decreto 4901, que instituiu o SBTVD, criou o Comitê Consultivo, formado por “representantes de entidades que desenvolvam atividades relacionadas à tecnologia de televisão digital” para “propor ações e diretrizes fundamentais relativas ao SBTVD”. Apesar de sua importância, foi totalmente esvaziado a partir da entrada de Hélio Costa no ministério das Comunicações.

Na última reunião do Conselho, realizada após a conclusão do relatório dos pesquisadores, o CPQD sequer foi chamado a expor o resultado das pesquisas. A apresentação ficou por conta do ministério das Comunicações que não falou sobre política industrial, nem em questões fundamentais para sociedade brasileira. Hélio Costa fez novamente o discurso de que o padrão japonês é o que mais se aproximaria dos interesses do Brasil.

Na verdade, o relatório não foi apresentado porque as pesquisas levam à conclusão de que o padrão japonês é o mais caro para o consumidor. O ministro declarou no dia da entrega do relatório, em entrevista a um grande diário paulista, que tinha opiniões divergentes das conclusões da Fundação e que o relatório apresentava “incoerências” e “imprecisões”.

O decreto da Tv Digital ( último de 29 de julho) já mostra sua intenção até pela data em que foi lançado: no meio da Copa, se aproveitando da natural desarticulação político-social de um momento em que o país só falava na conquista do hexacampeonato. O decreto instituiu o ISDB-T (japonês) como base do sistema de tv digital a ser implantado no Brasil.

O decreto é um retrocesso em relação ao anterior (4901) na medida em que não garante os objetivos sociais de formação do SBTVD. E para garantir preços acessíveis para as “caixinhas” – que o consumidor terá que comprar para ter acesso ao canal digital – será necessário investimento público. Ou seja, nosso impostos, mais uma vez, a serviço de privilégios de uma pequena elite que decidiu que o Brasil deveria escolher um modelo de seu interesse.

Apesar de citar as inovações brasileiras, o decreto não garante que serão incorporadas, apesar destas terem sido realizadas com investimento público. Dependendo das decisões do Fórum Técnico (previsto no artigo5º) os aplicativos criados aqui não terão como ser incorporados. Sequer o Instituto Mackenzie e o Inatel , que realizaram melhorias na modulação japonesa, não sabem que destino será dado a essas inovações.

“Não houve objetividade e visão do governo de como os estudos seriam aproveitados. Estavam previstos R$ 30 milhões para o CPqD construir uma estação base para a integração do sistema e esses recursos foram cortados sem qualquer explicação. E agora está totalmente obscuro quanto ao que de fato será aproveitado”, reclama Luciano Leonel, coordenador adjunto das pesquisas sobre TV digital do Inatel, em entrevista no dia do lançamento do decreto.

Boicote ao sistema brasileiro – O boicote ao resultado das pesquisas não se deu somente pelo esvaziamento do Conselho Consultivo e pela não divulgação do relatório do CPQD. O Congresso Nacional realizou dia 16 de maio um seminário com o objetivo de mostrar aos parlamentares os diversos modelos de tv digital e suas características. Todos os modelos existentes foram convidados para a exposição. No dia da realização do evento, que seria a primeira demonstração pública do sistema brasileiro e suas inovações, a autorização para os testes foi suspensa pela Anatel. Questionada, a Agência divulgou que o fizera a pedido do ministério as Comunicações. O ministro argumentou que nem todos os representantes estariam presentes e não seria justo. O modelo japonês era o único que não estava presente. Europeus e americanos também não puderam fazer suas demonstrações. (A China também se prepara para desenvolver um modelo e chegou a procurar o Brasil para uma parceria, mas as negociações não avançaram).

Mas por que tanto interesse em defender o padrão japonês?

“Uma das razões para que as emissoras queiram equipamentos de transmissão japoneses pode ser o fato de elas já utilizarem equipamentos de produção desses mesmos fornecedores”, aponta o relatório “Os caminhos da tv digital no Brasil” da consultoria legislativa da Câmara dos Deputados. Mas talvez a principal razão seja a de que pelo sistema japonês o transporte de sinais se realiza através da faixa de freqüência usada pelas empresas de radiodifusão. Já nos modelos europeu e americano a transmissão é feita pelas operadoras. E as emissoras não querem intermediários que possam atrapalhar seus lucros.

O sistema japonês (ISDB-T) é o mais caro para o consumidor e privilegia a alta definição em detrimento da interatividade. O ISDB-T só é usado em duas cidades do Japão. O Sistema europeu (DVB-T) está em funcionamento em todos os países europeus, incorporado ou não à União Européia, além da África do Sul, Índia, Rússia, Irã, Austrália, Nova Zelândia,Vietnã, Arábia Saudita, Cingapura,Tailândia e Israel. O sistema americano é usado nos Estados Unidos, Canadá, Coréia do Sul, México e Guatemala. < span>

Operador de rede garante democracia – Diversas entidades que compõem a Frente Nacional em Defesa de um Sistema Democrático de Ràdio e Tv Digital defendem a entrada de um novo ator no processo de exploração: o operador de rede, de caráter público.

Essa estrutura seria responsável pela gestão compartilhadas da infra-estrutura e a otimização da gestão do espectro. As empresas de radiodifusão não fariam o transporte do sinal até o consumidor final, mas até a central do operador de rede, que de forma isonômica entre todas as emissoras, faz chegar o sinal ao telespectador. Seu serviço é apenas transportar a programação.

As pequenas emissoras (públicas e comunitárias) estariam garantidas no processo digital, já que os custos do transporte são compartilhados entre as emissoras, baixando os custos.

Com a otimização do espectro, todas as eventuais sobras do espectro eletromagnético são ocupadas, gerando a possibilidade de ainda mais canais do que os já possíveis pela tecnologia digital. Os novos espaços desocupados no espectro eletromagnético podem gerar novas concessões.

Com o operador de rede qualquer pessoa poderá alugar um horário para mostrar suas produções, por exemplo. E poderia ser uma forma de acesso aos aplicativos de interesse social.

Porém, apesar dos ganhos incontestáveis desse que poderia garantir uma maior democratização dos meios eletrônicos, o decreto praticamente inviabiliza a criação do operador de rede.

Um canal ou 6 MhZ? – Os empresários de radiodifusão querem impedir a entrada de novos competidores no mercado. Para isso, tentam a todo custo permanecer com o espaço de 6MHz, concedidos para um canal de tv analógico. Ocorre que com a tecnologia digital não é mais necessário todo esse espaço do espectro eletromagnético para a transmissão de uma programação. Se permanecerem com esse espaço, os radiodifusores terão o privilégio de receber novos canais sem nenhum tipo de processo de concessão. Afinal, quando eles receberam os 6MHz era para exibir uma programação, em um canal.

O espaço a ser ocupado na tecnologia digital depende de diversas variáveis, principalmente o nível de definição de imagem a ser transmitido. Mas, em média, cabem quatro novos canais digitais dentro de um canal analógico.

O decreto da TV digital concedeu mais 6 MhZ para os atuais radiodifusores (artigo 7º). A omissão do decreto quanto ao uso dessa concessão pode permitir novos serviços e múltiplas programações pelos radiodifusores. Com todos os ganhos para os empresários. E sem sequer a contrapartida financeira exigida por lei a todos que ganham uma concessão de canal de rádio ou tv. Foi um presente em que a conta ficou para todos nós, brasileiros.

Nas ondas do Rádio, silêncio – Enquanto na TV digital, a polêmica – ainda que de forma deturpada – aparece na grande imprensa, sobre o rádio o silêncio da mídia é total. Tudo porque querem criar uma situação de fato consumado, pois não há polêmicas entre o empresariado sobre qual sistema eles querem adotar.

O Iboc, padrão de origem estadunidense, foi criado para permitir uma mudança do sistema analógico para o digital no rádio sem traumas para os radiodifusores. Com o padrão Iboc, o espaço necessário para a transmissão é aumentado, impedindo a entrada de novos canais. Além disso, tem características perversas sobre as emissoras de baixa potência, gerando interferências que as inviabilizam. O Iboc é uma forma de inviabilizar as rádios comunitárias a longo prazo.

Oficialmente, o ministério das Comunicações abriu a temporada de testes de sistemas de rádio digital. Até dezembro de 2006 as emissoras devem testar os sistemas existentes para depois se escolher o que deve ser adotado oficialmente pelo país. Mas todas as grandes redes estão testando o padrão Iboc, e somente a Radiobrás, emissora estatal, tomou a iniciativa de testar o padrão europeu. As empresas tiveram facilidade de financiamento para comprar os equipamentos dos EUA, com isenção de impostos, o que não irá acontecer com as demais, caso o sistema seja realmente oficializado. É um sistema de padrão proprietário e a Ibiquity, detentora da patente, cedeu a tecnologia para testes, mas irá cobrar de todas as rádios que entrarem depois desta fase.

Situação muito parecida com a dos transgênicos, que quando ainda estavam sendo testados extra-oficialmente pelos agricultores tinham suas sementes distribuídas gratuitamente. Depois que a Monsanto conseguiu legalizar os transgênicos, os agricultores passaram a saber quanto custavam as sementes.

As entidades que formam a Frente Nacional em Defesa de um Sistema Democrático de Rádio e TV Digital defendem a criação do SBRD, Sistema Brasileiro de Rádio Digital.

A proposta foi encaminhada, junto com diversas reivindicações sobre a digitalização das comunicações, para a ministra da Casa Civil Dilma Roussef, em audiência com representantes da Frente logo após sua criação, no início de abril de 2006. Na ocasião, os representantes da sociedade civil pediram mais transparência e o adiamento da decisão sobre o padrão.

A primeira iniciativa em defesa do SBRD foi realizada antes mesmo da formação da Frente, em 22 de fevereiro, no Rio de Janeiro, mais precisamente na Assembléia Legislativa. Em audiência pública com a presença de mais de quarenta entidades sociais de diferentes setores (ABI, MST, ComunicAtivistas, universidades, emissoras públicas e comunitárias, sindicalistas e estudantes) foi lançado o “Manifesto em defesa da participação da sociedade na implantação do rádio digital no Brasil”, e entregue ao representante do Ministério das Comunicações presente, Joanilson Ferreira.

Legislação truncada e marco regulatório – É inacreditável que o decreto que define o futuro da televisão brasileira seja instituído sem sequer um cronograma para uma definição sobre um marco regulatório para o setor. A legislação atual não regula os novos serviços digitais e as diversas leis surgidas em diferentes momentos são, muitas vezes, contraditórias. Até mesmo a Constituição propõe direitos na área da Comunicação Social ainda não regulamentados.

O padrão digital irá alterar todos os paradigmas da comunicação eletrônica, transformando a telefonia e a internet, com forte impacto sobre a indústria de eletrônicos. Portanto, deveria ser muito bem planejada e ter todas as suas variáveis estudadas. Uma decisão importante como essa não poderia ser tomada da maneira autoritária que foi.

É fundamental garantir a continuidade das pesquisas científicas e dos testes das inovações tecnológicas brasileiras para não desmantelar as atuais equipes e avançar no desenvolvimento das pesquisas do setor.

A sociedade brasileira aguarda, atenta, o desdobramento do processo. Mas sabe-se que o governo cometeu um erro histórico, que trará conseqüências para nossa comunicação eletrônica.