Por Marcos Dantas

Quando surge, na década de 1920, a radiodifusão é uma tecnologia a procura de uma utilidade econômica. Seu principal problema era financiamento. Alguns empreendimentos pioneiros, entre eles a British Broadcasting Corporation – BBC, criada por um consórcio de fabricantes de sistemas de radiotransmissão – imaginavam poder sobreviver e lucrar cobrando assinatura aos possíveis radio-ouvintes. A óbvia dificuldade técnica para controlar a adimplência dos assinantes levou esses projetos ao fracasso.


Então, entrou o Estado. Devido à pequena extensão territorial da maioria dos países capitalistas avançados da época, com reflexos diretos na ocupação e gestão das escassas radiofreqüências; às crises sociais e políticas que então abalavam o mundo; e ao permanente clima de guerra entre as grandes potências que acabaria desembocando no grande conflito de 1939, a radiodifusão era vista como um importantíssimo instrumento de propaganda político-ideológica, mobilização nacional e manutenção da coesão social.

Nos anos 1920 e 1930, quando a radiodifusão se consolidou como meio de informação, de cultura e de entretenimento, a democracia representativa liberal era uma exceção, não uma regra. Japão, Alemanha, Itália, os países do Leste europeu eram todos nazi-fascistas. Na jovem União Soviética, o Partido Comunista assumira o controle absoluto de todas as dimensões da vida pública. Ou seja, Estado e Governo tendiam a ser uma coisa só. O Judiciário, as Forças Armadas, a escola, a imprensa, sem falar do Legislativo que, em muitos casos, ainda funcionava formalmente, eram colocados a serviço de um projeto político, e de seu partido ou homens representativos, como se formassem um único, monolítico e poderoso bloco estatal de poder.

Não seria possível fazer-se, exceto para efeitos rituais, a clássica distinção entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, a partir da qual outras instituições do Estado ou a ele relacionadas podem também se organizar  autonomamente, em função de suas finalidades, arranjos político-sociais e cultura profissional.  Numa tal situação, seria natural que a radiodifusão também se tornasse instrumento não apenas do Estado, mas do Governo que controlava esse Estado.

Notáveis exceções à época eram os Estados Unidos e o Reino Unido. Lá, a radiodifusão viria a ter um desenvolvimento comercial tipicamente capitalista, financiando-se através da publicidade. Iria servir ao mercado.

No Reino Unido, o fracasso comercial da primeira BBC e os demais aspectos técnicos ou políticos que estavam levando à estatização da radiodifusão em todo o mundo acabariam conduzindo a uma intervenção governamental na emissora. Mas as condições políticas eram muito especiais. Explicitamente, o Reino Unido não desejava adotar um modelo similar ao que vinha se consolidando na Alemanha, na Itália ou na União Soviética. Numa democracia parlamentarista, onde os partidos se revezam no poder, o Judiciário é um ente independente, e a imprensa goza de ampla liberdade, a radiodifusão poderia vir a ser do Estado, mas nunca do Governo.

A BBC não foi constituída para servir ao primeiro-ministro de plantão. Por isto, gozava de grande autonomia política e administrativa. Porém, de dez em dez anos, o Parlamento aprova o seu programa de trabalho para a década seguinte, junto com as verbas necessárias: o orçamento depende diretamente de um imposto cobrado a todo cidadão britânico que possua um aparelho de TV. Atualmente, esta taxa é, mais ou menos, de R$ 50 por mês.

Assim, a cada década, o jogo político democrático determina o lugar da BBC no Estado e na sociedade. Logo, sua independência tem limites. Seu conselho administrativo é de livre nomeação pela Coroa, mas dificilmente os nomes indicados não terão sido levados ao rei ou rainha, pelas forças políticas hegemônicas em cada oportunidade. A BBC tornou-se uma instituição a serviço dos interesses imperiais britânicos, tanto quanto a Rádio de Berlim servia à Alemanha nazista, ou a Rádio de Moscou, ao movimento comunista internacional. Sua relativa autonomia, por outro lado, permitiu que fosse dirigida, durante 16 anos seguidos, por um super-burocrata, John Reith, que imprimiu-lhe sua marca e deixou-a dotada com uma forte burocracia weberiana, muito ciosa dos seus interesses e do seu espaço dentro do conjunto estatal. Tudo isso permitiu a consolidação desse modelo ímpar ao qual deu-se o conveniente nome de “radiodifusão pública”.

Somente depois da Segunda Guerra, o modelo chegou ao Japão (NHK), à Alemanha (ARD) e outros países, todos eles democracias parlamentares, onde o Poder Executivo é fraco, pois radica diretamente no legislativo. Os sistemas não-comerciais de radiodifusão tornaram-se assim uma outra instância do Estado a serviço do público, e não de interesses políticos circunstanciais, assim como também o são a escola, a Justiça ou as Forças Armadas.

A partir dos anos 1980, essa radiodifusão estatal entrou em crise. A “sociedade do espetáculo”, na feliz expressão de Guy Débord, desejava consumir uma televisão bem diferente daquela que lhe ofereciam as emissoras ditas públicas. As condições técnicas ou políticas que presidiram a fundação dessas emissoras, nos anos 1920, haviam ficado para trás. As condições políticas e culturais do mundo capitalista hoje em dia, apoiadas nas tecnologias digitais, na TV digital inclusive em terminais móveis, na difusão por cabo ou satélite e, sobretudo, na internet com todas as suas potencialidades (webrádio, IPTV, YouTube etc), modificaram completamente o cenário que um dia moldou a radiodifusão estatal.

Já desde os anos 50 do século passado, em todos os países, inclusive no Reino Unido, o mercado da radiodifusão (rádio e TV) veio sendo aberto a emissoras comerciais. Os Estados Unidos deixaram de ser os únicos a ostentar um sistema mercantil de rádio e TV.

Com a expansão dos sistemas de TV por assinatura, via cabo ou satélite, os velhos monopólios, e mesmo toda a radiodifusão atmosférica (ou “terrestre”), viram sua audiência ser erodida por centenas de novos canais comerciais dedicados a filmes, esportes, notícias, shows etc. Já são mais de 800 na Europa, transmitidos por cabo, satélite ou freqüências hertzianas, contra apenas 36 estatais, transmitidos ainda basicamente pela atmosfera. Nos maiores países europeus, a audiência da TV “pública” já caiu à metade, ou menos. Em muitos dos menores, já praticamente desapareceu. A pluralidade e a diversi

dade estão encontrando caminhos para se expressar que, para falar a verdade, inexistiam nos áureos tempos da velha radiodifusão estatal.

No Brasil, nos anos 1930, graças ao pioneirismo visionário de Edgard Roquette-Pinto, também se pensou em criar uma rádio em moldes públicos, sustentada pela assinatura dos radio-ouvintes. Fracassou, como nos demais lugares. Vindo a ditadura Vargas, o Governo constituiu uma poderosa emissora de rádio (a Rádio Nacional) que, durante duas décadas, viria a cumprir papel fundamental na construção da unidade nacional e na consolidação de uma cultura brasileira. A Rádio Nacional, ao contrário de suas equivalentes em outros países, não detinha nenhum monopólio.

A partir dos anos 1950, junto com o advento da televisão, o sistema brasileiro de radiodifusão tornou-se definitivamente comercial, primeiro sob a liderança da Rede Tupi e, depois, da Rede Globo. O Governo limitou-se a controlar as suas próprias emissoras que, por todos esses anos, sobreviveram desimportantes no cenário radiodifusor brasileiro. O Estado (não confundir com Governo) delegou à iniciativa privada, assim como nos Estados Unidos, o papel de principal protagonista da radiodifusão.

Agora, com 80 anos de atraso, o Governo resolveu anunciar a criação da TV Brasil, que seria uma BBC brasileira. Estaria, para isso, baseando-se numa suposta distinção entre “emissora estatal” e “emissora pública” que, em momento de pouca reflexão, a Constituinte de 1988 introduziu em nossa Carta Magna, como se qualquer instância estatal, sobretudo numa democracia, não fosse, por definição, pública.

Mas essa TV Brasil não será uma emissora sustentada por impostos cobrados diretamente ao público, como o são, até hoje, a britânica, a japonesa, a alemã etc – e isso faz muita diferença. Não herdará a tradição e influência política, educacional e cultural de uma BBC, NHK ou RTF, até poucos anos atrás detentoras quase exclusivas das audiências televisivas em seus respectivos países. Não integrará um Estado weberiano. E nem contará, à sua retaguarda, com o equilíbrio do jogo político parlamentarista, mas antes, num sistema presidencialista imperial, dificilmente deixará de ser, com o tempo, mais uma instância do Estado a serviço do Executivo.

A TV Brasil será pública e democrática se e quando o Estado brasileiro for, de fato, público e democrático. Mas mesmo nessa hipótese, considerando os dias de hoje, talvez fosse mais produtivo para a agenda democrática discutir e construir uma política e legislação que impulsionassem a universalização de sistemas interativos de comunicação social (tecnologias WiFi; amplas faixas de espectro aberto; universalização da banda-larga sobre uma infra-estrutura público-estatal etc.), no lugar de um sistema unidirecional de comunicação, como o é esta radiodifusão moldada nos tempos passados de centralização política.

Não vai demorar a muitos perceberem que a vontade, mesmo generosa, não tem consonância com o real. Uma vez disse o crítico Roberto Schwartz que, no Brasil, as “idéias estão fora do lugar”. Esqueceu de acrescentar: e do tempo.