Boletim NPC – Como foi concebido o Carabina M2?

Carlos Pronzato – O tema do Che sempre esteve presente em todos os meus outros trabalhos, digamos, pairando. Sobre qualquer tema militante-social que eu fizesse sempre estava o Che, porque de alguma maneira ele sempre representa todas as lutas. Eu aproveitei toda a década de 80 para ficar fazendo minhas descobertas latino-americanas entre o México, Chile, Argentina. Fiquei anos, viajando bastante, conhecendo a cultura, trabalhando nesses outros países em milhões de coisas menos no que faço agora. Eu já vinha trabalhando na Bolívia. No ano de 2003 eu fiz a Guerra do Gás. A Guerra da Água eu fiz posteriormente. Depois fiz o filme da ascensão do Evo Morales no final de 2005 e início de 2006. Aí eu começo a coletar entrevistas, começo a pesquisa a todo vapor para chegar aos 40 anos da morte do Che, em outubro de 2007, com o filme. Entre as pessoas que fui conhecendo, descobri essa senhora que tinha a arma com a qual mataram o Che, ela é a viúva do tenente Carlos Gutierrez. Então fui à casa dela em La Paz, ela abriu a porta da casa pela primeira vez para mostrar a arma publicamente, nunca tinha sido mostrada, e isso gerou um curta com o mesmo título do longa. Depois eu voltei a Bolívia para coletar mais informações no início de 2007 e aí conformei um filme. Tentei desvendar o itinerário do Che na Bolívia entre novembro de 66 e outubro de 67, a partir do Diário, a partir de entrevistas e depoimentos de pessoas que o conheceram, de estudiosos, jornalistas.

 

Boletim NPC – Qual você acredita ser a melhor forma de difundir os pensamentos do Che?

Carlos Pronzato – Olha, na luta prática, na ação direta, no dia a dia. O Che não era apenas um guerrilheiro como a direita e pessoas que não têm muito interesse em revelar os outros âmbitos da figura dele, o perfil humanista dele, dizem. Che era alguém interessado pela poesia, pela filosofia, era um escritor de mão cheia, sempre escreveu seus diários, teve o interesse de explicar o mundo através da escrita. Então eu acho que a melhor forma de difundir o pensamento dele é em todas essas lutas que estão sendo travadas hoje, na defesa do meio ambiente, por exemplo, que se está dando como luta política, eu acho que é um espaço de referência que o Che também estaria inserido com certeza nessas lutas. Então, há toda uma revalorização daquele período dos anos 60 e 70, parece que nem a direita, nem os militares conseguiram enterrar de vez esse período. A vigência da mensagem do Che continua cada vez mais forte, porque você vê que as modificações que foram sendo promovidas através da social democracia não tiveram muito resultado. Houve outros períodos históricos, mas transformação mesmo como se deu em Cuba, em 1959, com uma revolução armada, não se deu em nenhum outro lugar, talvez em Chiapas, mas é um território, não um país, e um setor de um país com um perfil originário, da luta camponesa. Então, eu acho que tem que ter muitos outros espaços de luta e os mais apropriados são essas lutas constantes, as lutas de todos os segmentos por um mundo diferente pelo qual ele lutava.

 

Boletim NPC – Você quis passar alguma mensagem específica com o filme sobre o Che ou sobre outro aspecto?

Carlos Pronzato – Como eu te falava, eu sempre tive interesse pelas viagens do Che, e essa justamente foi a viagem definitiva, foi a última. Mas ao mesmo tempo na Bolívia é onde ele começa a abrir os olhos para a questão social. Em 1953, ele passa pela Bolívia, na primeira viagem ele não chega a Cuba, só na segunda. Então eu acho que meu interesse básico era colocar luzes em um período da vida do Che pouco conhecido. Talvez mais conhecido do que o período do Congo é claro, mas muito menos conhecido do que o período de Cuba e até o da viagem mostrada em Diários de Motocicleta e todos os outros períodos que ele teve. Há muita controvérsia sobre a morte dele, como foi, como foi a chegada, porque ele escolheu Bolívia, há muitos interrogantes, porque deflagrar a luta armada na Bolívia, como se deu esse processo, o abandono do Partido Comunista Boliviano na época, se isso incidiu ou não. É na Bolívia que ele faz sua primeira tentativa de semear uma mensagem revolucionária. Essa mensagem de semear um, dois, três Vietnam é a consigna, eu acho que está totalmente vigente, o império está muito mais agressivo e destruidor do que nos anos 60 ou 70. Hoje os mecanismos de destruição, além dos militares que continuam muito efetivos, tem os econômicos, tem as cooptações através da ALCA [Área de Livre Comércio das Américas] aqui no nosso continente, do Nafta [Tratado Norte Americano de Livre Comércio], com o hemisfério norte. Então, eu acho que temos que continuar atentos à luta internacionalista como ele pregava tão bem. Tudo isso é difícil né? Porque temos poucas mídias assim como essa, espaços onde podemos colocar esses tipos de questões. Há circuitos, claro, que conhecemos, mas quem não conhece, o pessoal que está o dia todo preso no mel da TV, da novela, do jornal, é difícil ter esse tipo de informações e por aí é que eu acho que a luta do Che tem que seguir, com a descentralização da informação, com a  guerrilha informativa. A guerrilha não é somente no campo militar, no campo ideológico também. Um pouco o que a gente faz é isso, não deixa de ser uma guerrilha, e todos aqueles que se embrenham na mata da informação no mundo capitalista tem que ser um pouco guerrilheiro.

 

Boletim NPC – Você acha que essa é uma forma de militância?

Carlos Pronzato – Eu acho que é fundamental, e fundamental não abandoná-la. Eu vejo muito jovem que entra na faculdade com muito estímulo e depois sai da faculdade e vai se acomodando nos ambientes de trabalho, e também eu vejo isso com pessoas da comunicação. É preciso tratar que as pessoas que estão na comunicação não sejam cooptadas por veículos que não tem nada a ver com aquilo que elas pensam.

 

Boletim NPC – O Che pelo que você falou concebia a comunicação como algo muito importante…

Carlos Pronzato – Total. O Che tem muito a ver com a informação, ele fundou a Rádio Rebelde na Sierra Maestra, um jornal durante a guerrilha. Ele sabia muito o bem o que era a comunicação. Ele funda a Prensa Latina, nos primeiros dias da revolução e chama jornalistas latino-americanos importantíssimos para fundar essa imprensa que seria hoje uma Telesul, um Núcleo Piratininga, espaços de difusão de idéias que se opõem à globalização da informação. No período da tragédia boliviana que ele viveu com seus companheiros ele fez cinco comunicados, dos quais só se conheceu o inicial, os outros comunicados se perderam. Foi fundamental a falta de comunicação, porque esses comunicados não puderam chegar não houve uma preparação muito profunda politicamente na Bolívia para que o Che difundisse suas idéias, isso foi uma das questões que fizeram com que a guerrilha fosse descoberta e não tivesse apoio. A falta de comunicação naquele âmbito militar que eles estavam vivendo, a falta de contato com os quadros urbanos, com o campesinato da região da guerrilha fez com que eles fossem isolados. Eles sabiam muito bem o que é a comunicação. Imagine o Che com um notebook na selva, no Japão estariam sabendo o que estava acontecendo, coisa que o subcomandante Marcos aproveita muito bem.

 

Boletim NPC – Você disse que são muitas dúvidas sobre esse período do Che na Bolívia, você chegou a alguma conclusão?

Carlos Pronzato – Eu acho que estou cumprindo o que quando a gente fazia teatro tentava fazer que é semear mais dúvidas no público, não dar nada mastigado. Estou completamente satisfeito nesse sentido porque não há nenhuma certeza de alguém sair dali e dizer: “bom, agora conheço a história do Che”.

 

Não me interessa isso, me interessa que a pessoa saia com evidência de que a história é complexa e que depende dela conhecer a história e não de quem dá a informação.

 

Ninguém vai poder dizer realmente como foi porque os discursos podem ser criados, a história se pode tergiversar, mas não se pode tergiversar, nem diluir, nem quebrar o discurso prático que o Che teve.

 

Então, que ele morreu por um exército que cumpre um programa de uma sociedade estruturada a partir de uma elite, isso é claríssimo, e que essa ordem foi cumprida, veio de um órgão superior ao próprio governo da Bolívia está muito claro, isso não me cabe dúvidas. Essa é talvez a única das poucas certezas que estão claríssimas no filme. E a arma também está ali, é um objeto, mas não é o sentido final do filme, é apenas o que marca o filme, o que menos se cita é a arma, o que mais se cita é o percurso e porque o Che foi à Bolívia, porque desenvolveu essa luta e a partir desse porquê se chega a uma definição do que aconteceu.

 

Então, tem gente que diz que o retrato que se vê a partir do filme não é o de um mito, mas o de uma pessoa de carne e osso, mas nada impede que um mito tenha carne e tenha ossos, melhor ainda porque é um mito que tem uma sustentação. Não é uma criação como a revista Veja quis fazer, ou como outra revista disse “como se cria um mito?” Eu acredito que não foi criado pela esquerda, nem por uma foto que casualmente apareceu, se criou na luta, foi no boca a boca que se criou, por isso gera tanta história. As pessoas querem saber dessa personalidade mais completa do século XX, como disse Sartre, o guerrilheiro mais completo. Uma pessoa que escrevia, pensava, que criou tentativas de estudar a realidade através de textos políticos, tentou interferir na realidade política da época não somente com tiros, isso foi apenas a metodologia final e única com a qual ele achou que era possível modificar as coisas.

 

Boletim NPC – Que outros projetos você tem agora?

Carlos Pronzato – Em função do filme do Che, da toma violenta do poder, pelas armas, eu pensei sobre o tema de [Salvador] Allende, que foi outra maneira de acender ao poder, pela via pacífica, que foi a Via Chilena ao socialismo, através de eleições. Então isso me interessou, já estão feitas as entrevistas, estou em fase de pesquisa ainda de materiais para começar a conformar o filme para mostrar que também existe essa possibilidade ou existiu né? Hoje

eu não acredito que seja possível chegar a nenhum socialismo através de eleições, para mim é algo completamente descartado com eleições desse tipo, com eleições comerciais, showbusines. Se fossem eleições nas quais cada um diz porque vota, eu acreditaria, eu vou escutar porque a pessoa votou, não por uma camiseta, por um tijolo, por um posto de trabalho de um tio no gabinete, aí sim, esse tipo de eleições eu acreditaria, mas essas que vêm novamente agora, não. Com todo respeito a muita gente de muito valor que trabalha no parlamento, mas infelizmente está atrapalhado por esse sistema, muitos gostam e se perpetuam assim. E outro tema que estou trabalhando e acho muito mais complexo ainda, porque não se resume a um período, mas é uma questão que vem antes do povoamento pelos espanhóis e portugueses, são os Mapuches do Sul do Chile. É um conflito quase eterno com o Estado chileno, aí também ver como o Estado oprime ainda dentro de uma social democracia a seus habitantes originários que não estão de acordo que as mineradoras e as fábricas de celulose destruam o meio ambiente que é o habitat natural dos Mapuche, Mapu significa terra e Che significa ser, habitante. Então, essa destruição compete a todos, não só aos Mapuches, eles apenas estão na linha de frente, por essa luta, por essa resistência. Também esse é um outro projeto, mais complexo. E depois continuar pesquisando o Che, para tentar outro material em algum outro território na América Latina.

 

Boletim NPC – Há três anos eu conheci o seu livro Poesias Contra o Império. Eu gostaria que você fizesse uma reflexão sobre a luta contra o império, se ela continua atual, se ela avançou, e como seguir lutando contra o império…

Carlos Pronzato – Olha, esse livrinho foi escrito a partir da minha indignação quando o Afeganistão foi invadido, depois do ataque às torres [gêmeas]. E Bush disse “Ou estão comigo ou estão contra mim”, então, como eu estava contra ele, escrevi um livro contra ele. Mas não somente contra ele, qualquer governante, mesmo esses dois novos que estão em disputa, é a mesma coisa, não muda absolutamente nada. Mas as pessoas vendem essa notícia como se fosse ter alguma modificação entre republicanos e democratas. No fundo, o bi-partidismo norte-americano está muito aquém até da democracia cubana, onde inexiste campanha política paga, nenhum deputado e senador ganha pelo que faz, onde as pessoas escolhem em um final de semana, sem campanha prévia, e com um currículo e uma fotinha colados na parede, quem vai ser o representante no congresso. Eu pesquisei isso porque escrevi um cordel há pouco tempo que se chama A chave do Cofre, começou a corrida eleitoral. Quem ganha e chega primeiro abre o cofre do estado e reparte com os amigos, porque se trata disso, mas nós como cidadãos não chegamos nunca ao cofre.

 

Então, eu escrevi aquele livrinho [Poesias Contra o Império] em função do período da invasão ao Afeganistão, aí veio a reeleição de Bush e ele citou a palavra liberdade 27 vezes no discurso, então, eu acho que se ele repete 27 vezes a palavra liberdade que é justamente a palavra básica daquele livrinho, eu tenho que redobrar 27 vezes meu trabalho.

 

Império também eu me refiro aos países satélites espalhados no mundo, não só os Estados Unidos, são os governos títeres e as oligarquias que defendem esse modelo de vida. Como aqui na esquina, aqui no prédio, há cinco metros daqui, em qualquer lugar, na rua, a gente vê o império caminhando, não? Em uma 4X4, entendeu? Anda por todos os lados. Não é uma luta abstrata contra o império e os Estados Unidos, lá somente é a cabeça do monstro, mas sustentáculos estão espalhados por todo o mundo, por isso que a luta é bem complexa. Então, essa luta tem que ser reafirmada constantemente, remultiplicada.

 

Se está avançando por exemplo, no mundo indígena, é uma coisa nova, no Chile com os Mapuches, na Bolívia com os Aymaras, as lutas em outros continentes. Mas isso não muda se a gente não muda nosso próprio entorno, a gente pode escrever livros e poesias contra o império, ou filmes contra o império, mas depende do nosso encontro, nossa relação com as pessoas que não tem moradia, por exemplo, são focos de luta, de resistência, que tem que ser colocados em movimento.

 

Temos que dar estímulos a esses espaços e não estímulos a campanha eleitoral. Por mim a campanha eleitoral seria dissolvida, se utilizaria os recursos da campanha eleitoral em outras coisas e a gente trabalhava de outra maneira, definiríamos espaços, assembléias populares. Mas quem vai concordar com isso? Então, como lutar contra o império com essas eleições a cada quatro anos, que é um freio a qualquer modificação que a gente queira fazer porque parece que qualquer avanço social tem que terminar na eleição de um deputado, um senador, um vereador.

 

Porque não termina na eleição de um grupo de pessoas que trabalhe pela sociedade sem ganhar nem um tostão por isso? Dedicando um dia da semana, dedicando alguma hora fora do trabalho, entendeu? É um tema complexo.E não é somente que a gente fala de um ponto de vista que pode ser considerado anarquista, um socialismo radical, um socialismo utópico, mas eu acho que há novos condicionantes que fazem com que se possa pensar de outra maneira o mundo.

 

Modelos vão sendo modificados e vão caindo ao longo da história. Os modelos que estão surgindo na Bolívia são modelos novos, nunca aconteceu, na Venezuela nunca tinha acontecido e está aí, claro que todas as contradiçõ

es. Eu acho que tem muitos elementos para pensarmos que há possibilidade de transformação, mas tudo isso vai depender de nossa inserção nessa mudança, se a gente vai continuar nesse modelo eleitoral eu acho que não vamos a lado nenhum. Deveria ser mudado o itinerário da função organizativa, quem deveria estar atrelado ao movimento popular é o movimento partidário e não vice-e versa, mas essas insurgências acabam sendo cooptadas pelo movimento político-partidário e utilizadas ao bel prazer pelo partido de turno, e isso é um grande impedimento para o avanço. O suor, as lágrimas do povo estão sendo apropriadas constantemente dentro dos veículos eleitorais, que fazem com que o estado continue sendo o grande opressor, por mais que haja políticas públicas, editais, relações amigáveis que há agora e não havia em outro governo. Um estado nessas condições não existe, um estado onde todo mundo participe para a sua criação, onde eu saiba para onde vai cada centavo do meu imposto aí eu participo e não um estado invadido por empresas que vendem celular, companhias de energia estrangeiras que tratam minha água e luz. Eu acho que essas empresas deveriam estar na mão do povo, não do estado, em nossa mão, do povo.