Conquista – Por que você optou por trabalhar com os movimentos sociais?

Fernanda Vieira – Já era militante política. Uma amiga da Renap me convidou eu fui, me apaixonei e fiquei. No Rio de Janeiro, a expressão da construção da Rede é o professor Baldez que é um brilhante marxista e uma figura histórica na luta pela democracia e pelo acesso à terra. Ele reuniu em torno de si, advogados, estudantes e militantes que acabaram tendo uma relação mais orgânica ao MST.

C – O que significa uma relação orgânica com o MST

Fernanda Vieira – Tira um pouco da sedução que está sendo dada à sociedade, até mesmo por setores de esquerda, de que é possível se obter grandes ganhos do Judiciário. A Rede do Rio de Janeiro não caiu nesta sedução.

C – Não entendi.

Fernanda – Há autores que dizem que o Executivo e o Legislativo estão em crise e que o Judiciário é a instituição na qual se pode entrar e ganhar. Isso reforça a visão de um Judiciário neutro, acima dos conflitos, que não tem perfil de classe, que é um mecanismo de democratização.

C – Você não acredita nisso?

Fernanda – A Renap aqui no Rio de Janeiro acredita que o Judiciário é um instrumental importante para se reduzir o grau de violência contra setores que são criminalizados pela mídia, pelos órgãos de segurança e pela própria sociedade. Um exemplo é que a promotora que analisou o caso dos 22 camelôs concluiu que eles não poderiam ser enquadrados por formação de quadrilha. Uma pessoa séria. Mas não temos a visão de que a luta dentro Judiciário seja um fim em si mesma. É um processo dentro de uma luta muito maior que se faz no espaço público.

C – E por que você, advogada do MST está aqui na CUT, defendendo os camelôs?

Fernanda – Porque ambos apanham da Polícia. Tanto o MST quanto os camelôs atingem um direito clássico da burguesia, a propriedade privada. A repressão ao camelô visa reprimir o questionamento do direito de propriedade. Eles pegam uma mercadoria de um proprietário que tem uma marca sacramentada, que ganha lucros exorbitantes, vai para a praça pública e vende. Sem perceber, o camelô questiona a propriedade privada.

C – Você espera que o Movimento dos Camelôs coloque isso em discussão?

Fernanda – Espero que eles amadureçam e percebam que a luta que eles estão travando é mais que a luta pelo trabalho.

C – O sistema penal é classista.

Fernanda – Ultra classista. Ele sabe quem ele pega. Para a cadeia vão jovens, negros, pardos, primeiro grau incompleto. É um sistema seletivo. Ele atinge um determinado setor, é violento e reprodutor de violência. Para Zafferoni, o grau de barbárie do sistema penal se mede pelo cheiro da prisão. Quanto mais fétida, mais degradante. Você só rompe com esse modelo de degradação se começar a ter outro olhar sobre quem pratica o crime. A sociedade vê assim: nós, cidadão; eles, bandidos. E quer ampliação de penas, diminuição da idade penal, endurecimento.

C – Como é esse outro olhar?

Fernanda – Qualquer solução para o sistema penal é uma solução complexa e difícil. O modelo atual não é um modelo ressocializador e está longe de ser um mecanismo de inserção do indivíduo na sociedade. Lòic Wacquant que é um sociólogo francês diz que a prisão hoje é um depósito dos indesejáveis, daqueles que o capitalismo neoliberal não quer. E o capitalismo neoliberal não quer muita gente. A crise estrutural do trabalho empurra cada vez mais milhares para miséria e para exclusão. Milhares que não vão ter o Estado que olhe para eles, mas vão ter o sistema penal, como alternativa. Então, qual o objetivo hoje da prisão? É só retirar da visibilidade e distencionar os centros urbanos. Isso é limpeza social. O que o César Maia faz no Rio é limpeza social.

C – O que ele faz?

Fernanda – Pega os pobres e joga fora, coloca longe, tira da visibilidade. De um modo geral as pessoas olham para quem comete um ilícito como um ser do ser mal, lixo humano, escória da sociedade. É um olhar hipócrita de uma sociedade absolutamente excludente em que uns se apoderam de tudo e outros não têm direitos nem a sonhar. E ao mesmo tempo é uma sociedade que cada vez mais insufla os anseios consumistas. A sociedade capitalista empurra para essa massa desejos cada vez mais de consumo e não permite que ela consuma. O ser humano é avaliado pela sua potência de consumidor e simplesmente degredado se não tem essa potência de consumo. Então quando se fala que é preciso ter uma outra ética para pensar o sistema penal isso significa romper com essa ética moralista em que eu sou o bom, eu sou o cidadão honesto e você é o criminoso. E o cidadão honesto tem que perceber que quem cometeu o ilícito está envolvido num circulo vicioso imposto pelo próprio sistema, que, inclusive, precisa da ilicitude para justificar as suas regras de controle social. O sistema produz seu próprio criminoso.

C – Como você vê a atuação da mídia, neste caso específico do conflito do Rio, dos vinte e dois presos?

Fernanda – Criar demônios. A mídia pega o calor do conflito e joga para a sociedade dizendo: o caos, a desordem, a guerra civil. Ela constrói essa imagem e a pessoas que estão em casa pensam: é o caos. E qual a alternativa para o caos? O pulso forte. Então além dos sentimentos do demônio, cria-se a imagem do camelô como fachada do crime organizado.

C – Vocês libertaram os 22 camelôs, como foi isso?

Fernanda – Não fomos nós. Os camelôs me surpreenderam porque mesmo tendo um movimento ainda insipiente, sem muita organização, apresentaram uma capacidade de mobilização invejável. Eles conseguiram produzir um ato na porta do judiciário com 70 camelôs numa rapidez impressionante. Isso foi fundamental para que a gente pudesse romper com o discurso midiático de que eram bandidos e portanto deveriam ser criminalizados. Um outro fator muito significativo foi o apoio dos movimentos sociais aos camelôs: a CUT, MST, a Federação dos Movimentos Sociais. Isso dá seriedade e mostra que eles embora não tenha a tão exigida carteira de trabalho, não são criminosos e nem estão sozinhos. O Estado não garante o trabalho e reprime porque eles não têm trabalho. Se forem presos a primeira pergunta que ouvem é “cadê sua carteira de trabalho?”. Se não tem, é bandido.

C – Monstruosa essa idéia. Se você não tem emprego, logo não tem carteira de trabalho, se não tem carteira de trabalho é bandido. Indo por esse raciocínio, o desempregado é bandido.

Fernanda – Quando comecei a conversar para ver se a gente conseguia a liberdade provisória, dizendo que eles eram trabalhadores, o promotor de Justiça falou: “tá bom doutora, se a senhora trouxer a identidade, o CPF e a carteira de trabalho eu posso analisar”. Eu falei: “O senhor sabe que nenhum deles tem carteira de trabalho, são todos informais”. Então ele sorriu para mim e disse: “Então doutora, pode trazer a carteira sem nenhuma anotação”. O poder é construído na lógica do direito social de que é cidadão quem está inserido e quem não está inserido é nada.