Como você define o Dioclécio Luz? 

Eu me defino como, antes de tudo, um curioso, um aprendiz, um estudioso. Quero aprender sempre mais. Por exemplo, eu ouvi o MC Leonardo (um dos palestrantes do 14º Curso Anual do NPC) falar sobre o funk engajado, que eu particularmente não conheço, e eu fico querendo ler, ouvir, aprender mais sobre o tema para poder conversar mais, dialogar sobre o funk. É uma música que a princípio eu não gosto, mas ouvir falar me permitiu quebrar preconceitos.

E de onde vem a sua relação com as rádios comunitárias?

Oficialmente em 1996. Eu trabalhava no gabinete do deputado Fernando Ferro (PT-PE), e chegou a Brasília essa discussão sobre rádios comunitárias para discutir uma primeira proposta de regulamentação. Formamos um grupo, que se tornou um coletivo do PT para tratar do assunto. Em 1998, quando a lei foi aprovada, eu já sabia quais eram as dificuldades daquele momento.

Sua formação é em jornalismo?

 

Não. Minha formação acadêmica é em engenharia elétrica, eletrônica, nuclear. Mas desde a década de 1980 que eu trabalho com a comunicação, que eu escrevo jornal. Tenho também ligações com a literatura, com dois livros publicados de contos, tenho um romance publicado, já fiz teatro em São Paulo, já fiz vídeo… Quer dizer, uma salada, por gostar de aprender. Hoje sou colaborador da Rádio Cultura, em Brasília, onde faço um programa sobre música e cultura do Nordeste. Temos entrevistas sobre discos, bandas, desertificação na região, violência contra a mulher, fome… Falamos de tudo lá.  

Sobre rádios comunitárias, tenho dois livros publicados (“Trilha apaixonada e bem-humorada do que é e de como fazer rádios comunitárias, na intenção de mudar o mundo” e “A arte de pensar e fazer rádios comunitárias”). Para escrever o terceiro vi que precisava voltar para a academia. Quero trabalhar com o que é uma comunidade, para que serve a rádio comunitária, o que ela é enquanto movimento, já que fala para todo mundo, e não para uma classe específica. 

Você faz parte de alguma entidade de rádio, como, por exemplo, a Abraço (Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária)?

Não, mas eu já fiz parte da Abraço. Eu sou mais ligado à base, muitas pessoas nunca ouviram falar da Associação. Eu sempre estou disposto a aprender mais e com quem faz. Tanto que as melhores experiências de rádios comunitárias do Brasil hoje não passaram pela Abraço. Foram experiências autônomas, como a Novos Rumos, em São Gonçalo; a Rádio Valente, na Bahia; a Rádio Alto Falante, em Recife, e outros exemplos.  

Você acha importante a existência de uma entidade?

Claro que sim. É preciso organizar, articular o movimento, pensar em propostas e pensar na própria comunicação. Na minha palestra, por exemplo, eu fiquei constrangido em falar para as pessoas procurarem informações sobre a situação das rádios comunitárias no site do Ministério das Comunicações.  

Hoje você faz parte de alguma entidade?

Não, e a vantagem é que eu posso fazer críticas e colaborar. Estou sempre estudando e pesquisando sobre o as

sunto. A minha contribuição hoje é fazer parte de oficinas, de cursos, dar palestras, participar de debates, escrever textos e artigos sobre rádios comunitárias, e aprender muito também.


Você mostrou na sua apresentação um esquema de comunicação tradicional proposto por um engenheiro, como uma via de mão única, em que o emissor fala por um canal a um receptor. Como você acha que esse esquema clássico influencia em uma comunicação concentrada e antidemocrática?

Um dia desses o Pedro Cardoso, ator da Globo, falou que a TV não dialoga, e sim faz um monólogo, e quem está em casa só ouve. Essa é a comunicação padrão que está aí, que se ensina e aprende nas universidades, mas que eu acho precário. O pior é que não se questiona, e esse padrão a maioria das emissoras copiam. Por exemplo: a fala sem sotaques, as frases cortadas no meio, porque o formato tem que ser curto…  

Na verdade, a palavra comunicação tem a ver com compartilhar informações, e não apenas dar ou receber. Quando eu apresentei o esquema clássico, é porque é o padrão de distanciamento, em que o espectador não participa. Como criticar o William Bonner por uma notícia mentirosa no Jornal Nacional? Não tem como… Já o que eu penso para a rádio comunitária é colocar o gari fazendo programa, o pedreiro fazendo também, o jornaleiro, a dona-de-casa, até o latifundiário para fazer a discussão.  

Ou seja, dar espaço para todo mundo…

Isso, dar espaço para todo mundo. Por isso é que defendemos a existência de um conselho comunitário na rádio que deixe as regras bem claras, para que determinado grupo não tencione a rádio para fazer tudo aquilo que um grupo quer. Ou seja: para não repetir o que a grande mídia e o capital já fazem, que é um grande desastre para a humanidade.  

Você poderia comentar novamente sobre os aspectos da lei de radiodifusão comunitária, que mais atrapalham do que ajudam no funcionamento das rádios?

Bem, nós temos a lei 9.612, de 1998; temos o decreto 2.615, e a Norma Operacional 01/2004, ou seja, feita no Governo Lula. Há dez anos, com um Governo de direita, tínhamos duas saídas: ou fazíamos uma lei ruim para depois melhorar. Ou então continuaríamos sem lei, e o Estado continuaria dando porrada nas rádios. Resolvemos então fazer uma lei ruim, para tentar mudar depois. 


Fizeram a lei, mas a porrada continuou né?

Isso. E a porrada continuou. Era e ainda é difícil nos organizarmos. Naquela época, muitas rádios entraram nas comunidades sem discussão política. A garotada pensava só em colocar música… Mas mesmo assim incomoda. Lembro que um cara do interior do Ceará me ligou e disse: “A Polícia Federal fechou a nossa rádio, logo nós que somos pequenos e não fazemos mal a ninguém”. Eu disse a ele que não existe radiozinha, que toda rádio comunitária é grande e incomoda os caras, porque é uma pedra no meio do caminho daqueles que sempre mandaram e determinaram o que e como falar.


Voltando à lei de radiodifusão, fizemos uma lei ruim, e o decreto saiu pior ainda. Quais são hoje as limitações? Só é permitido um canal por município; o alcance máximo é de
1 km; não pode entrar em rede/cadeia; não pode ter patrocínio ou publicidade… As rádios acabam não tendo como se manter… Alguns policiais mentem dizendo que as rádios são envolvidas com tráfico. Nós mandamos um requerimento à Polícia Federal perguntando o número certo de rádios apreendidas por estarem envolvidas com o tráfico. E a resposta? Nenhuma. Essa e outras mentiras correm soltas, como a de que derruba avião, por exemplo.  

Hoje nós temos umas duzentas propostas que correm no Congresso para melhorar. Mas lá temos também dificuldades. A Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, que é a principal, é formada por donos de rádio e TV no Brasil. Claro que eles são contra as rádios comunitárias.  

No ano passado, tivemos duas grandes combatentes a nosso favor: a deputada Luiza Erundina (PSB/SP) e Maria do Carmo Lara (PT/MG). Elas conseguiram levantar o tema, mexer na norma de concessão, e a Maria do Carmo inclusive apresentou uma proposta de lei que junta todas as outras já feitas. Só que agora depende do Executivo. O Lula podia ter mudado a norma e o decreto, mas ele não fez isso.  

De onde parte isso? Do Ministério das Comunicações, de outros setores do Governo?

Parte de vários lugares. Da Casa Civil, por exemplo, que é frágil e se associa aos poderes imorais que dominam o país há anos, ao invés de ficar do lado do povo. E

o Hélio Costa? Ele é a grande contradição. Todos sabem os interesses que ele tem, as suas relações com a Rede Globo, eu sei que tenho muito pouco a negociar com ele. O responsável é o presidente Lula, que colocou ele lá no Ministério das Comunicações.   

Em 2006, o Governo criou um Grupo de Trabalho Interministerial para tratar de rádios comunitárias. Chamaram o Governo para participar: a Cultura, a Comunicação, a Casa Civil… A Abert, que é a Associação das Emissoras de Rádio e TV, começou a participar das reuniões. Nós brigamos, e o GT foi obrigado a ouvir 11 entidades que atuam com rádios comunitárias. Cada uma deu a sua visão. No final foi feito um relatório, dizendo tudo que estava acontecendo, mas uma vergonha em termos de proposta.


Qual foi a proposta?
Por exemplo. Tinha anistia a quem estava sendo punido, mas sem alterar a lei que pune. Ou seja: quem continusse trabalhando em rádios comunitárias voltaria a ser preso, então não adiantava nada. Outra proposta: permitir publicidade, mas em uma escala pequena, o que não adianta para as emissoras comunitárias. 

O que a lei permite é apoio cultural, não é isso?

Isso, mas não explica o que é apoio cultural. Então a norma especifica: a propaganda que é feita só para a divulgação do institucional. Mas o que é o institucional? A Anatel usa esse termo como justificativa para fechar as rádios comunitárias. Poderia estar mais claro. Definir, por exemplo, que é divulgar serviços, empresas, negócios de uma forma ética. Pronto, estaria resolvido.   

Você falou de dar voz a todos, mas a gente vive uma hegemonia de mídia há anos. De certa forma as pessoas já estão contaminadas por valores criados. Por exemplo: muitos que assistiram à palestra do MC Leo passaram a ter uma outra visão sobre o funk. Como trabalhar com pessoas que já passam há um tempo por um trabalho da mídia?

Primeiro, temos que considerar que a rádio comunitária não fala só para a gente, e sim para todo mundo. O que eu defendo é que temos que ter um modelo de jornalismo claro. Como fazer para quebrar a cultura da imprensa hegemônica? Aprendermos a fazer a crítica com pesquisas e estudo. Eu sempre falo para quem vai fazer rádio comunitária que tem que estudar, pesquisar… Rádio comunitária só para tocar música não precisa. Temos que ter informação de qualidade.


Como seria esse modelo de jornalismo comunitário, baseado em quê?

O conhecimento não vem só de um lugar. Quer dizer, não está
só na academia, nem só na experiência de rádio comunitária. Ele está na mistura de todas as coisas. Acho que esse modelo pode ter informações tanto da academia quanto de experiências de rádio, e da própria vida. 
 


Falar com todo mundo é um grande desafio. Qual seria a saída, em relação à linguagem, à falta de concordância. Isso não atrapalha na credibilidade?

Existe um livro chamado Preconceito Lingüístico, do Marcos Bagno, que esclarece muito isso. Já vi em emissoras comunitárias diretores falando que quem não sabia falar português não podia participar, o que é muito complicado Não podemos ter preconceito, pois o nosso objetivo maior é a comunicação. Temos que estimular todo mundo a dar sua opinião, porque a maioria não está acostumada a se expressar. Queremos que todos falem, e não só as autoridades.

Aí entra outra questão: como falar para todo mundo? Sempre é bom traduzir, chegar a um vocabulário mais simples, que todos possam entender. Mas não significa perder o sotaque, igual a Globo faz, e o Ariano Suassuna diz que é sotaque de aeroporto  

E os problemas de cooptação nas rádios? Dar voz a todos não pode estimular que os programadores sejam comprados, por exemplo, por fazendeiros no interior?

Claro que existe esse risco, e não precisa ser fazendeiro não. Há pouco tempo eu estive no interior de Goiás, em Minaçu, onde fica a fábrica de amianto no Brasil. Sabemos que o amianto é cancerígeno, proibido em 48 países, mas a fábrica domina a cidade. Então é difícil encontrar uma voz dissonante…  

É como lá em Brasília, onde os jornais, as TVs, as rádios locais não se manifestam contra o Governo Federal. Então não é preciso ir para o interior para ver que o coronelismo ainda existe no nosso país. Penso que a grande saída é dar voz a todos, e uma hora vai aparecer alguém que não concorda. Eu acredito que a força da comunicação é tão grande que dar essa possibilidade a todos e todas pode mudar alguma coisa.  

Na sua palestra, você falou sobre a incompatibilidade de uma religião se expressar em uma rádio comunitária. Como resolver esse problema, se ela for uma expressão da comunidade?

Eu digo que as religiões não podem entrar porque cai no risco de fazerem pregação. E as grandes religiões, como a igreja católica e evangélica, já possuem um grande latifúndio das comunicações. Acho que, se for tratar de religião em uma rádio comunitária, tem que vir com pesquisas, histórias, chamar para um debate, por exemplo.