[Por revista retrato do BRASIL]Em visita a terreiros e em conversas com pais-de-santo e intelectuais, RB foi ver como, ao completar cem anos, a primeira religião brasileira, que introduziu nos cultos as figuras do povo pobre, ainda enfrenta preconceitos e prossegue em sua contínua adaptação aos tempos atuais | Tânia Caliari
É sexta-feira de manhã. A “casa” está aberta. Toda azul, lembra uma igrejinha, com pequena torre, nave, altar ao fundo, imagens de santos. Mas é uma tenda de umbanda, construída há 58 anos no bairro de Pinheiros. É uma das mais tradicionais de São Paulo. O pai-de-santo fundador continua a comandar a “casa”. Pai Jamil Rachid, homem de tez muito branca e olhos azuis esbugalhados, é o médium que recebe o preto velho Pai Benedito e outras várias entidades. Leva adiante a ação de cultivar e propagar a umbanda por meio da “caridade”, que, nessa crença, significa dar a oportunidade aos humanos de se comunicarem com espíritos evoluídos que, como acreditam os fiéis, descem de Aruanda com toda sua sabedoria sobre a verdade divina e orientam os que sofrem e pedem ajuda.
A maioria dos que chegam ao templo tira os sapatos, recebe um passe, escuta um conselho, faz uma oração e vai embora. Elisabete foi buscar mais que isso. Foi se filiar à União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil, uma das maiores federações umbandistas do estado de São Paulo, com 4,5 mil terreiros afiliados e que tem sede no templo. Elisabete quer obter o reconhecimento oficial de seu terreiro como entidade religiosa e garantir seu funcionamento.O terreiro de Elisabete fica na Chácara Santana, no Jardim Ângela, na zona sul da cidade.
Freqüentadora da umbanda desde os 18 anos, Elisabete incorporou pela primeira vez uma entidade há 27 anos, quando estava num supermercado. Exu “desceu” para lhe avisar que tomasse cuidado naquele dia, pois seu marido poderia ser assassinado. Elisabete preveniu o marido e, à noite, o suposto assassino foi morto na porta de sua casa, alvejado por um desconhecido. Desde então, ela aprimorou sua mediunidade e, anos mais tarde, abriu o seu próprio terreiro.
Na umbanda é assim. Uma vez que são desenvolvidos por um pai-de-santo, os médiuns de um templo podem, sob orientação dos espíritos que os guiam, fundar novas tendas. Isso faz da umbanda uma religião de pequenos grupos que se reúnem em torno de uma mãe ou pai-de-santo, em terreiros autônomos, que não seguem doutrina única nem são subordinados a ninguém. O que resultou numa religião com variadas formas de expressão.
Na noite de sábado, primeiro dia de novembro, não há muito movimento nas ruas pobres da Chácara Santana. O vaivém da rua José Sedenho se concentra apenas numa pequena LAN house e na Tenda de Umbanda Iemanjá, Oxosi e Caboclo Sete Flechas, comandada por Elisabete. As pessoas se acomodam no salão onde um dia funcionou uma pizzaria. Os antigos fornos agora abrigam velas acesas e imagens de pretos velhos. Por toda parte há imagens de santos católicos – São Jorge, São Sebastião, Cosme e Damião –, de caboclos de umbanda e até uma foto do padre Marcelo Rossi, líder católico carismático. No altar, estão Oxalá, orixá representado numa imagem de Jesus Cristo, além de Iemanjá e Nossa Senhora Aparecida.
A “ESQUERDA”, DOS EXUS
Nesta noite, o culto é da “esquerda”, termo usado na umbanda para designar os rituais dedicados aos exus e pombajiras que, diferentemente do divulgado por alguns grupos cristãos, não são demônios, mas espíritos elevados e ambíguos, que tanto podem agir para o bem como para o mal. Mas não ali, diz Elisabete. Ela afirma que sua tenda não acolhe pedidos de maldades.
De joelhos, testa ao chão, Elisabete evoca Deus, pede pelas almas, lê uma oração, cita Moisés e puxa uma ave-maria e um pai-nosso. Durante os cantos que se seguem, ritmados pelos atabaques, os orixás são saudados um a um. Elisabete solta os cabelos e dança incorporando Iemanjá, o orixá que rege sua cabeça e é sua mãe no culto umbandista. Na seqüência, desce Vovó Maria, preta velha que faz Elizabete andar pesadamente curva e resmungar. Com a partida da preta, é a vez de incorporar uma cabocla, uma índia na tradição umbandista. Ela pula, grita, e bate no peito no meio da jira, área diante do altar onde os médiuns podem “girar” e dançar ao incorporar os espíritos.
As entidades continuam sendo saudadas pelas canções. O ponto agora é para Exu Tiriri. “Exu Tiriri é muito bão, toma conta da casa e do portão”. É nessa hora que uma médium incorpora um exu. Seus dedos se curvam como garras, que ela arrasta no chão. Depois, a moça incorpora uma baiana, figura debochada e bonachona, que faz questão de cumprimentar o público, que assiste a tudo passivamente. Outra médium incorpora mais um exu e, finalmente, Elisabete recebe outro, soltando gargalhadas. Na sala, estão agora presentes Exu Capa Preta, Exu da Cruz e a baiana, prontos para falar com o povo.
Uma mulher tira de um saco uma roupinha azul, de criança, com escritos num papel para apresentar a exu. “Isso aqui é minha obrigação, meu particular”, diz, se furtando a dar detalhes. Outra quer falar com a baiana, queixa-se de dor nas costas. Veio agradecer o emprego que pediu e conseguiu. Um rapaz avisa: “quero passar com o Seu Capa”. Uma moça copia o nome de um juiz de uma carta de intimação do Tribunal de Justiça paulista e se dirige à jira.
À jornalista de Retrato do Brasil, Exu da Cruz garante o sucesso desta reportagem, uma pequena investigação sobre a umbanda, religião brasileira que comemora cem anos de fundação neste ano. Essa religião se caracteriza pela diversidade, que encontramos em diversos rituais nas zonas norte, sul e oeste de São Paulo, e que se reflete nas variadas explicações sobre como funciona a umbanda. Num ponto, os entrevistados concordam: todos dizem que a missão da umbanda é ajudar na evolução dos espíritos encarnados na Terra, provendo a intermediação, por meio dosmédiuns, entre as pessoas e os guias, espíritos elevados.
Essa definição vai ao encontro do que teria proclamado em 1908 o espírito fundador da umbanda. Consta que o Caboclo das Sete Encruzilhadas, espírito de um índio que se incorporou num jovem médium na cidade de Niterói, definiu a umbanda como “a manifestação do espírito para a caridade”. Considerada desde então uma religião brasileira, a umbanda é uma crença composta de ritos, divindades e mitologia herdados de várias religiões, sobretudo do espiritismo kardecista e do catolicismo cristãos, do candomblé, de origem africana, e dos rituais indígenas, genericamente chamados de pajelança.
Há várias interpretações para a palavra umbanda, como a arte de curar, colhida do idioma banto, e “Conjunto das Leis de Deus”, que se baseia na interpretação do vocábulo aumbhandha, tido por alguns teóricos da religião como originário do adâmico, um alfabeto primitivo.
A idéia da busca pela evolução virtuosa dos espíritos vem do espiritismo, doutrina nacionalista cristã sistematizada em meados do século XIX na Europa pelo pedagogo e médium francês Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), popularmente conhecido como Allan Kardec. Dele, a umbanda herdou também a idéia evolutiva da reencarnação, que faz parte de várias outras religiões como o hinduísmo e o budismo.
INTERAÇÃO ESPIRITUAL
A umbanda, no entanto, afasta-se de Kardec ao adotar como guias espirituais entidades de origem negra e índia. Esses guias, que incluem ainda entidades variadas, como crianças, boiadeiros, africanos, baianos, marinheiros, orientais, ciganos e outros, são lideranças de inúmeras entidades que militam pela evolução espiritual sob sete diferentes linhas de orixás, divindades tomadas da tradição africana.
A mediunidade, um dom que, segundo as religiões espiritualistas, nasce com a pessoa, manifesta-se, sobretudo, pela possessão – há, entre outras formas de manifestação, a psicografia, a audição, a vidência e a pintura. A mediunidade é considerada um instrumento para que se possa interagir com os espíritos, o que, geralmente, ocorre nos rituais de consulta nos terreiros.
Apesar de cultuar os orixás, os umbandistas não titubeiam em afirmar o caráter monoteísta de sua religião. Zambi, ou Olorum, é o seu deus supremo, criador do universo.
O sociólogo Reginaldo Prandi, veterano pesquisador do universo mitológico afro-brasileiro, alerta que mesmo as religiões politeístas têm um deus superior, um deus criador do mundo e dos outros deuses. “Ao mesmo tempo em que a umbanda se abastece na tradição politeísta incorporando os orixás, ela tem uma orientação monoteísta, quando confunde Olorum com o Deus judaico-cristão-muçulmano, pois considera que é dele que tudo emana e que ele tem uma ação total sobre a humanidade”. Prandi explica que no candomblé não é assim. O deus criador não se mete com os homens, que são relegados aos orixás, que, por sua vez, também são deuses. “Ninguém reza para ele, porque ele é inacessível”, explica.
Outro distanciamento da umbanda em relação ao candomblé se dá ao lidar com os conceitos de bem e mal. Nas várias culturas africanas e no candomblé não há a idéia do bem separado do mal. Tudo é bom e tudo é mau. “A umbanda se forma entre duas visões de mundo: de um lado, há o kardecismo, que segue a visão judaico-cristã do bem e do mal em eterno conflito. E, de outro lado, você tem a idéia de que essa luta não adianta nada, porque uma coisa não existe sem a outra”, explica Prandi. Segundo ele, essa questão foi amplamente desenvolvida por seu colega acadêmico Lísias Negrão, em Entre a cruz e a encruzilhada (Edusp, 1996), livro em que afirma que, para resolver essa contradição, a umbanda adotou a idéia de que seus guias são todos voltados para o bem. E conservou em separado e escondido, na chamada quimbanda, a presença do mal, que não pôde ser desprezada, por ser fundamental.
Assim, durante muito tempo, a umbanda foi feita apenas com guias da “direita”, os caboclos, pretos velhos e crianças. Os rituais para exu e pombajira eram realizados à parte. “Muito recentemente, quando a própria sociedade se torna mais flexível em relação às diferenças, essa divisão total foi perdendo o sentido e hoje o exu é aceito”, diz Prandi.
Essa assunção do ente do “mal”, no entanto, teria feito da umbanda um dos alvos preferenciais da intolerância religiosa, contribuindo para a diminuição do número de seus seguidores no País, que, nos últimos 30 anos, tornou-se menos católico, menos afro-brasileiro e mais evangélico.
Prandi, que nos anos 1970 trabalhou num dos primeiros mapeamentos de religiões feitos no Brasil, diz que, atualmente, é difícil dimensionar o número preciso de adeptos da umbanda. Segundo os dados de 2000 do Censo Demográfico, último levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) a contemplar as religiões, os seguidores das religiões afro-brasileiras, a umbanda e o candomblé, somavam apenas 0,34% da população brasileira, ou pouco mais de 571 mil pessoas. Os umbandistas eram a grande maioria, 75%.
O número de seguidores dessas religiões, além de ser relativamente pequeno, caiu nas duas últimas décadas do século XX. Em 1980, equivalia a 0,57% da população e, em
PENTECOSTAIS SÃO CONTRA
Esse fenômeno é atribuído por estudiosos ao crescimento das religiões cristãs pentecostais, que combatem explicitamente os cultos afro-brasileiros, apesar de terem absorvido alguns de seus elementos, como o chamado “descarrego”. Além de usar seus pastores e fiéis no dia-a-dia desse combate, determinadas igrejas usam poderosos meios de comunicação de massa, incluindo uma rede de televisão, na disputa pelo mercado religioso. É a etapa mais recente da discriminação às religiões baseadas na cultura africana, que sobreviveram à perseguição do Estado (só em 1964, o registro dos terreiros de umbanda na polícia deixou de ser obrigatório) e às campanhas da Igreja Católica (sobretudo atéos anos 1970).
Analisando as narrativas do mito fundador da umbanda, pode-se afirmar que o que houve em 1908 foi uma “invasão” de uma sessão espírita kardecista por espíritos que já vinham se manifestando há tempos nos diferentes rituais religiosos populares – candomblés de caboclo, macumbas, cabulas –, sobretudo no Rio de Janeiro. A então capital federal recebera, no fim do século XIX, levas de imigrantes de outros estados, que se juntavam à multidão de ex-escravos, africanos ou descendentes, recém-libertos.
Segundo os relatos consolidados pelos seguidores da umbanda, em 15 de novembro de 1908, na federação espírita de Niterói, um jovem branco de 17 anos, Zélio Fernandino de Moraes, filho de militar, foi levado a participar de uma mesa branca, como são chamadas popularmente as sessões de recebimento de espíritos, por apresentar um comportamento fora do comum. Ele falava resmungando em línguas estranhas, andava curvado ou apresentava trejeitos de felino. Na mesa kardecista, presidida por um militar, Zélio se encontrava entre os membros do estrato social ao qual pertencia. Ao serem iniciados os trabalhos, entretanto, espíritos que se identificaram como Caboclo das Sete Encruzilhadas e Pai Antônio se manifestaram
“O que houve foi uma invasão de território espiritual”, diz Prandi, que avalia, da mesma forma que a socióloga Patrícia Briman, em estudo feito nos anos 1980, que, naquele momento, houve uma mudança na concepção de poder, a grande novidade trazida pela umbanda. Se até ali os espíritos iluminados que baixavam nas mesas do kardecismo eram de pessoas bem-sucedidas e conceituadas em vida, como médicos, jornalistas, escritores e advogados, na nova religião a idéia era de que o poder não vinha mais pela posição social ou escolaridade, mas pela vivência. “O poder agora reside na origem escrava, índia, subalterna, mas digna. É o grande guerreiro indígena, o velho negro sábio, que apanha a vida toda, mas é conhecedor dos segredos da vida”, diz Prandi.
Apesar de ter recebido caboclos e pretos velhos, Zélio praticou uma umbanda cristã, com doutrina baseada no Evangelho e rituais sem atabaques ou adereços afros. Fora dali, porém, as manifestações religiosas populares não tardariam a influenciar a umbanda, à qual foram incorporados esses e outros elementos.
IRMÃ DO SAMBA
Nessa época, havia uma grande convivência da população carioca com o chamado candomblé de caboclo, de origem banto, vindo da Bahia. “Esse é o um tipo de manifestação cultural que vai dar origem também ao samba, às escolas de samba”, diz Prandi. “Os pais do samba são todos ligados às chamadas casas de baianas e à macumba. Macumba é uma expressão carioca da tradição de candomblé de caboclo, que também contemplava entidades indígenas”.
Segundo o sociólogo, grandes nomes, como Pixinguinha, João da Baiana e outros, ou eram de terreiros ou ligados a eles, por serem parentes das m] ]>