Por Dioclécio Luz, para o Observatório da Imprensa
O ano passado (2008) acabou para as rádios comunitárias com duas notícias, uma boa e uma ruim. A boa é que a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados, ninho dos parlamentares donos de emissoras comerciais, aprovou projeto substitutivo (PL nº 4549/98) do deputado Walter Pinheiro (PT-BA) anistiando os que foram punidos por colocar rádio no ar sem autorização. É o tipo de coisa que só acontece a cada cem anos. A notícia ruim é que o governo Lula encaminhou ao Congresso Nacional Projeto de Lei (nº 4573/08) que aumenta mais ainda a repressão sobre as rádios comunitárias. Isto é, quando todo mundo esperava que o governo do PT fosse apoiar a proposta avançada de Walter Pinheiro (companheiro de partido!), agora tramitando na última comissão da Câmara, ele manda uma outra absurdamente reacionária.
Por que o governo Lula encaminhou Projeto de Lei tão ruim para o Congresso Nacional poucos dias depois da Câmara aprovar o substitutivo de Walter Pinheiro? A intenção do governo era atrapalhar o processo ou impedir avanços? Estamos tratando de má-fé do governo para com as rádios comunitárias? Quem articulou politicamente este projeto? Alguma entidade colaborou com ele?
Má-fé e retrocesso
Dizem fontes seguras que a história desse projeto começou em setembro do ano passado, quando representantes de entidades de rádios comunitárias estiveram com o ministro da Justiça, Tarso Genro. Desse encontro, e de um acordo posteriormente firmado entre o Ministério da Justiça, Ministério das Comunicações e Casa Civil, teria brotado a proposta.
Antes de analisar o PL do governo, gostaria de recordar apenas dois pontos do que escrevi na época (25/09/08) NESTE Observatório (“O que fazer pelas rádios comunitárias“) sobre esse encontro com Tarso Genro. Fiz duas sugestões ao governo:
1. O Executivo deveria parar de continuar enrolando o movimento das rádios comunitárias.
2. O Executivo já sabe o que fazer. Não se admite mais que erre em questões primárias.
Está claro que esse PL não é um erro, mas uma opção política, um ato de má-fé e um retrocesso para a comunicação popular do país.
“Expor a perigo” a segurança
O que diz o PL 4573/08?
Ele começa mexendo numa velharia ainda viva contida no artigo 151 do Código Penal. A proposta elimina os incisos II, III e IV do parágrafo 1º do art. 151 do Código Penal (Decreto Lei nº 2448/40). Este fóssil jurídico, que ainda fala em coisas como “comunicação telegráfica ou radioelétrica” e em “aparelho radioelétrico”, até hoje é usado pela Polícia Federal como justificativa para reprimir rádios não autorizadas. Eis o texto completo. A parte em negrito é a que o Governo pretende subtrair:
“Art. 151 – Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem:
Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa.
§ 1º – Na mesma pena incorre:
I – quem se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada e, no todo ou em parte, a sonega ou destrói
;
II – quem indevidamente divulga, transmite a outrem ou utiliza abusivamente comunicação telegráfica ou radioelétrica dirigida a terceiro, ou conversação telefônica entre outras pessoas;
III – quem impede a comunicação ou a conversação referidas no número anterior;
IV – quem instala ou utiliza estação ou aparelho radioelétrico, sem observância de disposição legal”.
Com o fim destes incisos, fica tudo resolvido? Não é bem assim. Trata-se de um engodo, uma armadilha. Porque o PL 4573/08 também propõe mudanças no Parágrafo 1º do artigo 261 do Código Penal.
Diz o texto original do Código Penal em vigor:
“Art. 261 – Expor a perigo embarcação ou aeronave, própria ou alheia, ou praticar qualquer ato tendente a impedir ou dificultar navegação marítima, fluvial ou aérea:
Pena – reclusão, de dois a cinco anos.
Parágrafo 1º – Se do fato resulta naufrágio, submersão ou encalhe de embarcação ou a queda ou destruição de aeronave:
Pena – reclusão, de quatro a doze anos” (grifo nosso).
E agora a proposta do governo de como deve ficar este parágrafo 1º:
“Parágrafo 1º-A Na mesma pena do caput incorre quem, mediante operação de serviços de radiodifusão, expõe a perigo a segurança de serviços de telecomunicações de emergência, de segurança pública ou fins exclusivamente militares, ou, ainda, o funcionamento de equipamentos médico-hospitalares” (grifo nosso).
Politicamente esperto
Observe que originalmente havia uma punição para quem “expõe a perigo” e outra punição no caso de “naufrágio… queda ou destruição de aeronave”. Se o acidente acontecia, a punição era maior. Existe uma diferença muito grande nisso. O PL do governo diz que basta a pessoa expor a aeronave ao perigo (não precisa que ocorra o acidente) para que ela seja condenada à pena de reclusão de dois a cinco anos. Hoje, esse tipo de ameaça (reclusão) paira somente sobre aquelas emissoras sem autorização; se esse projeto for aprovado todas podem ser citadas.
Quanto aos riscos às aeronaves, como todo mundo sabe que rádio comunitária não derruba avião, os inimigos das rádios comunitárias nunca iriam ter um avião no chão que servisse de exemplo. Logo, estão tentando adequar o texto legal à ficção que criaram. Com isso, mudam um pouco a justificativa mitológica para repressão: a rádio não derruba avião, mas cria o perigo dele cair.
À parte os deslumbramentos de burocrata, tecnoburocrata ou carrapato do poder, que traz para os dias atuais expressões típicas dos tempos de Machado de Assis (“expõe a perigo”) e a vontade férrea de defender o poder (e seu emprego), a redação do PL é uma tentativa escancarada de legitimar os abusos hoje cometidos pelos órgãos de repressão. É sabido que os inimigos das rádios comunitárias usam exatamente esses argumentos (interferência no sistema de aviação, na segurança e nos serviços de saúde) para cobrar mais repressão do Estado. Se hoje os agentes do Estado cometem abusos usando tais bobagens como argumento para fechar rádio, se este PL for aprovado eles estarão dentro da lei para enquadrar e botar na cadeia aqueles que, na sua opinião, merecem punição.
É preciso reconhecer: quem bolou isso, embora tenha mofo no cérebro, foi muito esperto politicamente.
O argumento de “derrubar avião”
O mesmo Projeto revoga o Artigo 70 da Lei 4.117/62, mais um fóssil jurídico, este criado pela ditadura militar (Decreto 236/67) ainda hoje usado com pela Polícia Federal. E também estabelece que o artigo 183 da Lei 9472/97 (Lei Geral de Telecomunicações), muito usado pelos agentes da Anatel, não se aplica à radiodifusão.
Se as leis 4.117/62 e 9.472/97 não serão utilizadas para reprimir as emissoras comunitárias, imagina-se que agora se fará uso da legislação de rádios comunitárias, a Lei 9.612/98. Está errado quem pensou nisso. O óbvio não funciona na política. Ao invés de incluir na lei pertinente todas as punições de que o tema trata, o governo transforma o caso num crime de ordem penal.
Enfim, o que temos em resumo nessa primeira parte do projeto é:
1) O Código Penal – e não mais a Lei 4.117/62 ou a Lei 9472/97 – pode ser o instrumento central para reprimir as emissoras, autorizadas ou não.
2) Emissoras autorizadas ou não autorizadas podem ter seus equipamentos apreendidos e seus dirigentes podem ser submetidos ao processo penal. (Antes isso ocorria somente com as não-autorizadas).
3) No Código Penal substitui-se a pena de “detenção, de um a seis meses, ou multa (art. 151) por uma de “reclusão de dois a cinco anos” (art. 261). Trocou seis por meia dúzia mais um pouco.
4) A redação permite uma leitura subjetiva sobre a existência de crime. Um juiz, ou mesmo um desses agentes (!), pode achar que a emissora está provocando interferências em sistemas de segurança, equipamentos hospitalares (aparelho de tomografia?), telecomunicações e aeroviário e fechar a emissora. Hoje é assim. Fecha-se a rádio sob o argumento de que pode derrubar avião. Claro que há um lado otimista: juízes e agentes da Anatel de bom senso vão querer provas antes de fecharem a emissora.
“Apoio cultural”
Para as emissoras não-autorizadas no ar, não bastasse a incursão no Código Penal, o governo propõe um tratamento especial. Diz o texto do seu PL:
“Art. 21– A operação de estação de radiodifusão sem autorização do poder Concedente constitui infração gravíssima sancionada com a apreensão dos equipamentos, multa e a suspensão do processo de autorização de outorga ou a impossibilidade de se habilitar em novo certame até o pagamento da referida multa”.
A novidade é que antes o diretor da entidade era “apenas” indiciado em processo na Polícia Federal. Agora, além do indiciamento e da possibilidade de ser preso, e da apreensão dos equipamentos, ele e a entidade recebem uma outra punição: o processo da rádio ao qual está ligado fica paralisado até o pagamento da multa.
O PL propõe modificações no artigo 21 da Lei 9.612/98 (lei das rádios comunitárias), o que trata das infrações cometidas pelas rádios.
Com relação à publicidade, por exemplo, fica valendo o artigo 18, em vigor, que admite a propaganda apenas como “apoio cultural”. Mas o que é apoio cultural? A nova proposta do governo é medíocre porque não leva em conta que “apoio cultural” é um conceito sem definição. A norma operacional 01/04 (art. 19.6.1) diz que considera apoio cultural a “divulgação de mensagens institucionais”. Mas o que são “mensagens institucionais”? Isso só quem sabe é o agente repressor. O mesmo que aplica a multa quando acha que a rádio está descumprindo esse artigo.
Estado contra o povo
O Capítulo XI, do Decreto 2.615/98, que trata das infrações cometidas pelas rádios comunitárias, lista 29 motivos para punir. Mas não tem aí a questão da publicidade. Hoje, a Anatel multa, mas sem uma base legal. Portanto, esta mudança proposta pelo governo visa a atender aos interesses dos agentes repressores, que precisavam de uma base legal para fazer o que já fazem hoje.
Deve-se considerar que para uma comunidade pobre conseguir recursos para pagar a multa imposta pelo poder público não é fácil. Na falta de recursos, a cobrança vai para dívida pública e os projetos sociais ligados à entidade são vetados – e assim também a própria rádio. Centenas de rádio foram multadas por operarem sem autorização ou por colocarem no ar publicidade que, segundo os agentes, infringe a lei.
A multa é um instrumento de repressão política. Uma estratégia cruel: é criando dívidas que você aniquila o pobre. É o Estado contra o povo brasileiro. A serviço das elites econômicas (e não somente do campo da comunicação), o Estado faz uso desse instrumento.
Uma proposta ridícula
O destaque no projeto do governo é sua ênfase no combate ao proselitismo. Sua proposta estabelece como “infração gravíssima” a prática do proselitismo de qualquer natureza. Mas o que é “proselitismo”? A Lei 9.612/98, em pelo menos dois artigos (art. 4º, parágrafo 1º; art. 11), já faz o veto ao domínio das rádios comunitárias pelas igrejas e ao proselitismo que praticam. Mas, curiosamente, os agentes da Anatel e da PF nunca encontraram isso. Centenas de rádios são dominadas por padres e pastores e eles nada vêem. Em Copacabana, em Brasília, as antenas são maiores do que as torres das igrejas, se avistam a quilômetros, mas nem a PF nem a Anatel conseguem ver. São antenas invisíveis – talvez por razões espirituais. Ou seriam econômicas?
Estudo feito no ano passado pelo professor Venício Lima e pelo consultor legislativo Cristiano Lopes revela aquilo que todo mundo já sabia, mas não tinha provas: o Ministério das Comunicações distribui autorizações de rádios comunitárias para políticos, padres e pastores aliados. Por que o Ministério da Justiça não apura essas denúncias? Por que não descobre quais os servidores públicos envolvidos nesta indecência? Por que a Polícia Federal, a Abin, o FBI, sei lá, não investigam a participação do ministro Hélio Costa nesta distribuição de rádios? Por que a Polícia Federal não investiga como a Igreja Católica conseguiu autorização para mais de 200 rádios ditas comunitárias, se isto é ilegal, imoral, indecente? Por que o Ministério da Justiça não investiga o que ocorre dentro da Casa Civil, aonde montaram um balcão para distribuir rádios comunitárias para X e Y?
Fazer este tipo de coisa, depurar o setor, é muito mais do feitio do Ministério da Justiça e seria muito mais saudável para sociedade, do que fazer alianças com outros ministérios e apresentar esta proposta ridícula de projeto. A gente esperava mais de Tarso Genro e sua equipe.