Por Patricia Birman (*)
Publicado na página da Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência
29/03/2009

Há muitos anos, talvez mais do que a nossa memória queira registrar, começou no Rio o processo que hoje é designado como problema da violência, usualmente associado ao tráfico de drogas e ao domínio armado de traficantes em favelas. Os tratamentos que o governo do estado, a prefeitura e o governo federal têm dado a este problema têm sido, de modo geral, baseados em um modelo repressivo que insiste em ignorar os direitos dos moradores de favela.

Já ouvi, sim, um incontável número de vezes os argumentos que insistem em dizer que é preciso enfrentar com armas poderosas aqueles que estão armados até os dentes. Já ouvi também muita gente boa considerar que se mostrar solidário com as vítimas de ataques da polícia é escolher o “lado” errado, qual seja, o dos bandidos que continuariam à solta, atacando as “pessoas de bem”. Argumentos deste gênero não faltam.

Desenvolveu-se, a meu ver, uma percepção política no Rio de Janeiro que se baseia num suposto antagonismo: “defender” os bairros da cidade seria “atacar” as favelas, compreendidas como redutos do crime. Esta percepção tem impedido que se considere seriamente o direito à vida dos que moram nas favelas da cidade. Os direitos destes indivíduos ficam subordinados às garantias dadas à parcela da cidade que se vê atacada e são assim dependentes do que se passa nos seus lugares de moradia. De um lado se encontrariam os cidadãos que é preciso defender e, de outro, os “elementos” que não possuem direito a ter direitos. A versão mais extrema desta posição política sustenta que não se pode garantir direitos humanos para bandidos – exigindo, em conseqüência, medidas cada vez mais violentas para “defender” os que pertenceriam ao lado da cidade onde moram os ditos “homens de bem”.

Ano após ano, esta concepção política hegemônica é aplicada, cada vez com mais meios repressivos, com mais impaciência e violência, com mais armas e mais mortes, mais ameaças e mais barbárie, sem que um único fio – uma pequena vírgula que seja – nos indique que a cidade se encontra agora mais pacificada, com menos crimes e menos violência.

É, mais uma vez, hora de nos perguntarmos qual é o projeto de cidade e de democracia que queremos. É preciso fazer um balanço do que tem sido o resultado da produção sistemática de mortes e da uma segregação de uma parte da cidade considerada como lugar do crime e fonte da violência.

Já escutamos, como resposta dada àqueles que defendem “direitos humanos para favelados”, o argumento: então, o que fazer? Deixar os bandidos atacarem? Não responder aos tiros? Esta resposta, como aliás a política em que se baseia, compreende a cidade através de uma lógica de guerra. Embora a lógica de guerra, em momentos de grande comoção, nos seja apresentada como uma solução definitiva e imediata, é possível hoje perceber que entramos em um processo em que esta se transformou num meio permanente, cotidiano e banalizado de enfrentar conflitos sociais cada vez mais graves. E a sua permanência, em lugar de gerar “vitórias”, engendra, cada vez mais, antagonismos que circularmente justificam o uso da força e da violência armada. Este círculo vicioso parece hoje bem integrado ao nosso futuro.

Qual é a cidade que queremos? Qual é projeto de cidade que hoje se está construindo através desta política que aumenta os muros, as armas e as zonas de guerra? Será que é possível pensar em uma cidade democrática construída por estes meios? Já existem no mundo muitas cidades em que muros e grades dividem os habitantes, em que guardas cada vez mais armados, policiais em número cada vez maior, estabelecem supostas “zonas de segurança” que sistematicamente revidam os ataques, transformando a vida de todos os habitantes em um eterno pesadelo. Chora-se os mortos e aumenta-se as fronteiras, grita-se por vingança e organiza-se mais trincheiras. Não acho que este caminho deva permanecer no Rio de Janeiro.

É preciso reconhecer que estamos diante de um falso antagonismo que alimenta uma perspectiva política fascistizante e anti-democrática, além de corrupta, evidentemente. Será tão difícil reconhecer a centralidade da associação e a cumplicidade política entre criminosos situados em favelas e segmentos do Estado, empresários de segurança, contrabandistas de armas e de drogas, comandos militares, milícias e certos vereadores e deputados?

É no plano político que devemos identificar de que lado estamos – não será através das divisões territoriais, alimentadas pela violência policial, que poderemos ver onde estão os adversários da paz e da democracia. Estaremos do lado dos que bradam pela solução armada e aproveitam para formar sua pequena empresa de venda de vigilância? Estaremos do lado dos que desprezam as queixas das mães que perderam seus filhos assassinados para proteger a corporação policial que comandam?

Estaremos do lado dos que tratam os favelados como marginais e fazem conluios políticos com bandidos de colarinho branco, atacando os primeiros para defender os abusos dos segundos? Estaremos do lado da produção permanente, maciça e violenta de uma cidade baseada na segregação, na injustiça e em fronteiras que separam seus habitantes entre os “mal-protegidos” e os “sempre matáveis”? Estaremos do lado daqueles que acham que os criminosos de colarinho branco não precisam ser humilhados com o uso de algemas e que os negros das favelas podem ser amarrados, semi-nus, e postos em jaula e serem atacados e mortos pelo Caveirão? Que futuro terá esta cidade quando se silencia e se aprova esta política hoje dominante no Rio de Janeiro?

(*) Patricia Birman, antropóloga, professora titular do Departamento de Ciências Sociais da UERJ.