Por André Cintra
Publicado no Portal Vermelho
22/04/2009
A grande mídia vive uma era de desolação. Ao mesmo tempo em que a audiência e o prestígio da toda-poderosa TV Globo não param de despencar, a Folha de S.Paulo atravessa a maior crise de credibilidade de sua história. Para o jornalista Rodrigo Vianna, da TV Record e do blog Escrevinhador, não é o caso de falar em “ilusões perdidas”. Errado mesmo, diz ele, é pensar em nutrir expectativas com os grandes veículos de comunicação.
“Historicamente, desde pelo menos a Revolução Francesa, os jornais são partidários — e, na verdade, nunca deixaram de estar acima das facções. Por que, então, cobrar que a mídia não seja aquilo que ela nasceu para ser?”, questionou ele, sábado passado (18), no Memorial da Resistência, em São Paulo. Ao lado do jornalista Alípio Freire e da historiadora Beatriz Kushnir, Vianna debateu o tema “O papel da mídia na democracia e durante a ditadura militar”.
À frente deles, num auditório lotado, cerca de 150 participantes acompanhavam o evento, promovido pelo Memorial em parceria com o Fórum de Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo. Estavam lá, em maior número, vítimas do regime militar (1964-1985) e familiares, bem como jornalistas e artistas que combateram a ditadura. Mas também havia muitos jovens — em geral estudantes e jornalistas da novíssima geração. “Num sábado de feriado prolongado, eu jamais esperaria tanta gente”, admitiu Rodrigo Vianna ao público.
Na introdução ao debate, Alípio Freire, editor do Brasil de Fato, disse que a origem colonial do país determinou a falta de democratização da mídia. “A Coroa portuguesa impôs não só o monopólio da terra, do comércio — mas também o monopólio das comunicações. A voz do trono — a voz do poder — era a que podia se pronunciar, e quem ousasse imprimir à margem disso poderia ser preso”. Em 201 anos de imprensa no Brasil, “nunca houve mídia popular capaz de concorrer com a mídia comercial”.
Segundo Alípio, a mesma mídia que se diz democrática e pluralista disputa a hegemonia até no interior do PT, abrindo espaço a petistas “menos danosos”, que concordem em fazer acordos. O custo dessa aproximação foi alto, sobretudo para políticos que ganharam mais visibilidade durante o governo Lula, como os ex-ministros José Dirceu e Antonio Palocci. “Destruíram duas lideranças do PT que poderiam acenar a ser sucessores do Lula”, diz Alípio. “É tolice achar que a mídia destruiu o Palocci e o Dirceu por razões éticas e morais. Foi assassinato.”
Apoio e colaboração
As relações entre grande mídia e ditadura militar foram dissecadas por Beatriz Kushnir, autora do arrasador Cães de Guarda — Jornalistas e Censores do AI-5 à Constituição de 1989. Beatriz usa frases curtas e reveladoras: “A maioria da grande imprensa colaborou com o regime”; “Quando digo ‘colaborou’, quero dizer que foi mais que um pacto. Eles se engajaram mesmo”. “A Folha apoiou em 1964 e colaborou a partir de 1968”.
De acordo com a historiadora, cada órgão da grande mídia lidou com a censura à sua maneira. “Dos anos 50 a 1988, o Brasil teve no máximo uns 220 censores, que precisavam percorrer o país inteiro e checar jornais, revistas, as artes, a propaganda. Como não foi possível dar conta de tudo, veio a autocensura”. Amedrontada com a propaganda anticomunista, parte da sociedade mandava cartas ao Ministério da Justiça para cobrar mais rigor na censura.
O Jornal do Brasil, no esquema “corte você”, orientava os repórteres a se adiantarem ao risco de censura. A Globo contratou censores aposentados, que passaram a instruir os profissionais da rede. A Abril foi mais longe: seus funcionários iam a Brasília e davam aulas de jornalismo aos censores. Data desse período uma extensa troca de correspondências entre o diretor-fundador da Abril, Victor Civita, e a diretoria da Polícia Federal.
Nenhum exemplo de cooptação se equipara ao colaborionismo do Grupo Folha — a empresa administrada, à época, por Octávio Frias de Oliveira e Carlos Caldeira. Até 1969, a redação da Folha da Tarde, sob o comando de Jorge Miranda Jordão, ex-Última Hora, era dominada por jornalistas ligados à Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighela. De jornal à esquerda — que concorreu brevemente com o Jornal da Tarde, do Grupo Estado —, a FT se transforma no “diário oficial da Operação Bandeirasntes”, a então recém-criada Oban. O periódico tinha como editor-chefe Antônio Aggio Jr., indicado por Caldeira e especializado em jornalismo policial.
“Aggio veio de Santos e trouxe dois companheiros — um deles com forte influência nas forças de repressão”, afirma Beatriz. O diário da família Frias estava tomado de policiais. Um jornalista da editoria de “Mundo” trabalhava de manhã no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) e à tarde no jornal. Muitos andavam armados na redação, segundo a autora de Cães de Guarda. “O Aggio mesmo circulava com uma maleta em forma de violino. Era uma carabina turca.” Com acesso privilegiado ao poder, a Folha da Tarde dava “as notas mais bem escritas e detalhadas sobre mortes” nos porões do regime.
A manchete “Morto o assassino do industrial Boilesen”, de 17 de abril de 1971, é exemplo de cooperação. O metalúrgico Joaquim Alencar de Seixas, conhecido como Roque, foi morto primeiro na capa da FT e apenas horas depois no DOI-Codi. O jornal, tal como o conjunto da grande imprensa, ainda chancelou a mentira de que Roque fora vítima de uma troca de tiros na Avenida do Cursino.
Das dez pessoas que pediram a palavra durante o debate no Memorial da Resistência, três disseram ter sido conduzidas à tortura em peruas do Grupo Folha. O jornalista e ex-preso político Rui Veiga apresentou uma denúncia ainda mais grave: “Um repórter da Folha acompanhou meu transporte da Oban até o Dops e me aconselhou a não esconder nada — a colaborar com o regime”.
O pós-ditadura
Para Rodrigo Vianna, qualquer veículo com um passado desses não merece créditos de confiança. O jornalista leu ao público manchetes e editoriais publicados na grande mídia logo após o golpe de 64. Mais que apoio, houve festa. O Estado de S.Paulo saudou “a incontável legião de brasileiros que anseiam por demonstrar definitivamente ao caudilho (o presidente João Goulart) que a nação jamais se vergará às suas imposições”. Na concepção de O Globo, “a Revolução democrática antecedeu em um mês a revolução comunista”.
Foi apenas no período pós-ditadura que a grande imprensa tentou se apresentar aos leitores sem as paixões e preferências da luta política. “Minha geração cresce sob a égide de que a imprensa é neutra, independente e plural”, explica Rodrigo. “A Folha liderou a transição, o momento da virado, dando espaço a colunistas de orientações diferentes, como Florestan Fernandes e Fernando Hen
rique Cardoso. O Globo, que era antibrizolista, corre atrás depois, na gestão do Evandro (Carlos de Andrade, diretor responsável da Central Globo de Jornalismo de 1995 até sua morte, em 2001)”.
Rodrigo lembra que o sociólogo e professor universitário Emir Sader, colunista da Carta Maior, chegou a ser comentarista da Globo News. Da mesma forma, o jornalista e atual ministro da Comunicação Social, Franklin Martins, tinha amplo espaço no Jornal Nacional e no Jornal da Globo, apesar de ser um progressista inserido numa rede conservadora. A “aparência democrática” começou a cair nesta década, a ponto de a Folha propor em editorial a expressão “ditabranda” e o diretor-executivo de jornalismo da Globo, Ali Kamel, escrever um livro que nega o racismo no Brasil.
“Sem querer, eles pautaram bem a sociedade. Falaram besteiras e alertaram as pessoas para temas sérios”, diz Rodrigo. Se a Veja incorpora a ideia de que “não se pode ter vergonha de ser direita”, a Globo lidera campanhas impopulares — contra o programa Bolsa-Família, por exemplo. “É aí que a internet desponta como alternativa de resistência”, afirma o comandante do blog Escrevinhador.
Rodrigo recorda a célebre reportagem “Os Fatos Ocultos”, que o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira escreveu para a CartaCapital em outubro de 2006. A matéria explicava como “a mídia, em especial a Globo, omitiu informações cruciais na divulgação” do “Dossiê Vedoin” e, assim, “contribuiu para levar” a eleição presidencial para o 2º turno. “Eu estava na Globo nessa época, e o Ali Kamel disse: ‘Só vou responder por causa da repercussão na internet’.” A força da web ficou igualmente clara na manifestação contra a “ditabranda”, promovida pelo Movimento dos Sem-Mídia em 7 de março, à frente do prédio da Folha. Toda a convocação para o ato foi feita pela internet.
“Conseguiram levar 500 pessoas, e a manifestação foi noticiada até em agências internacionais. Creio que, há 20 anos, não haveria repercussão nenhuma”, analisa Rodrigo. Ele encerra sua participação no debate deixando uma dúvida sobre sua categoria profissional: “O que houve com os jornalistas? Parece que eles não precisam mais de patrão — já acham que são sócios da empresa”.
Não é por mera casualidade que o jornalista Ricardo Kotscho deixou impressões parecidas numa palestra que proferiu apenas cinco dias antes na Universidade São Judas. “A imprensa era”, segundo Kotscho, “chamada de quarto poder. Mas, nos últimos tempos, alguns jornalistas e alguns veículos parecem ter-se promovido por conta própria ao primeiro poder — primeiro e único”. Não convém ter ilusões.