Por Marcos Dantas *
Se o conhecido “efeito Orloff” se aplica ao Brasil, as coisas por aqui acontecem com dois, cinco, no máximo dez anos de atraso em relação ao que se passa nos países centrais. Se quisermos olhar o futuro das comunicações, no Brasil, talvez seja um bom exercício de futurologia, com razoável margem de possível acerto, examinar o que já é presente em países como Estados Unidos, Reino Unido, Japão, Coréia, França etc. Em todos esses (e outros) países, é fato que a radiodifusão aberta e seu modelo de negócios são um sistema decadente. Trata-se de um modelo criado, nos Estados Unidos, há quase 70 anos (quando ainda nem existia a televisão, só o rádio), e que chegou ao seu apogeu, já na era da TV, nos anos 1960 a 1980. Desde então, um amplo conjunto de transformações econômicas e culturais nas sociedades mais desenvolvidas, com fortes reflexos nos bolsões endinheirados dos países periféricos, veio corroendo esse modelo, substituindo-o por outro, denominado convergente. A esta altura, a convergência já se confirma como o modelo do futuro, isto é, dos próximos 10, 20, talvez 30 ou mais anos. Então vamos falar do modelo do futuro.
O modelo do passado dividia as comunicações em dois segmentos bem distintos, tanto econômica, quanto culturalmente, daí também normativamente: telecomunicações e radiodifusão. O modelo do presente e do futuro apaga essa distinção: será necessário falar apenas em comunicações. Basta fazer-nos a seguinte pergunta: uma operadora de telefonia celular que, hoje em dia, oferece agressivamente acesso à internet; recepção pela rede de vídeos e músicas; notícia atualizada a cada instante; canais de TV; práticas de tirar, remeter ou receber fotos; e muito mais, além de comunicação de voz ponto-a-ponto, essa operadora pode ainda ser definida como uma empresa de telecomunicações? Claro que não (sem trocadilho…). Mas, também, não será uma empresa de radiodifusão. E a internet ? E, com ela, qualquer operadora de banda-larga?
Cabe pois uma segunda pergunta, dando possível razão aos radiodifusores: a todo esse mundo das comunicações convergentes não se aplicaria todo o disposto no Capítulo V do Título VIII da Constituição brasileira? É claro que, quando a Constituição foi elaborada em 1988, os princípios estabelecidos pelo constituinte para a Comunicação Social somente poderiam se aplicar à radiodifusão, pois somente por ela era possível produzir e transmitir conteúdos relacionados ao entretenimento, à cultura, à educação, à informação. Hoje já não o é, e cada vez mais, no futuro, não será mais assim.
Se eu sou você amanhã, é altamente provável que, dentro de alguns poucos anos, talvez ao final da próxima década, grande parte da população brasileira e a quase totalidade da população de renda mais alta (classes “A” e “B”), isto é, de melhor poder aquisitivo e maior atratividade publicitária, estará preferindo assistir a canais de TV paga, ou navegando na internet banda larga, ou usando os cada vez mais poderosos recursos incorporados aos terminais móveis, sem falar, também, do que nos promete a própria TV digital. Hoje, nos Estados Unidos, apenas 10% dos lares ainda não assinam um serviço de TV a cabo ou satélite. Em muitos países, como o Japão e a Holanda, todas as residências já assinam serviços de televisão. Em outros, como o Reino Unido ou a França, os serviços pagos atingem metade dos domicílios e essa penetração deverá seguir crescendo. Neste aspecto, o Brasil ainda está atrasado: só 10% de nossas residências aderiram à TV paga, ignorando-se, claro, o “gatonet”. Mas ninguém deve duvidar de que essa taxa logo duplicará ou triplicará, com PL-29 ou sem PL-29…
Evidentemente, nesse processo, a publicidade vem migrando para os novos meios e, mesmo, vem sendo obrigada a se modificar. A publicidade linear típica da TV aberta, tende a dar lugar a novos formatos interativos, ao marketing viral, ou mesmo a um novo modelo inspirado na lógica de leilão, como o exitosamente introduzido pelo Google. Segundo o Idate, notório centro de pesquisas sobre comunicações, a publicidade na rede está crescendo 25% ao ano e já captura, no mundo, 9% da verba publicitária total. Nos terminais móveis, cresceu, em cinco anos, de USD 1,5 bilhão para USD 4,7 bilhão, já representando 1% do mercado publicitário total.
Falar do futuro, pois, implica discutir um novo modelo político-normativo que possa dar conta dessas mudanças em todo o campo das comunicações, mudanças essas que vão fazendo da radiodifusão coisa do passado. Esse novo modelo necessita considerar as características econômicas básicas do modelo emergente, ao mesmo tempo considerando as necessidades, as condições, as expectativas, os rumos da sociedade brasileira, agora e nos próximos anos.
Uma das mais importantes características do modelo emergente, talvez a mais importante, se encontra no fato de os gigantes dessas comunicações convergentes não serem, necessariamente, detentores dos meios de transmissão. Conglomerados como Time Warner, Disney, Vivendi, Yahoo, Google e tantos outros nossos bem conhecidos não precisam de “concessões” ou “autorizações” para chegar nos terminais de TV ou celular de milhões de pessoas em todo o mundo, inclusive no Brasil. Inversamente, os detentores dos meios de transmissão não são, necessariamente, produtores e programadores de conteúdos: Comcast, Crown Castle, Verizon etc. As novas regulamentações que começam a ser adotadas em diferentes países centrais tendem a separar as duas atividades. Isto é, não se trata mais de separar “telecomunicações” de “radiodifusão”, mas conteúdo de infra-estrutura. Na maioria dos países europeus, inclusive, essa nova visão atingiu até a antiga radiodifusão, aliás com benefícios para ela: sem mais deter o controle das freqüências hertzianas, transferido para operadores de rede especializados, os antigos programadores em regime aberto foram liberados para multiplicar a oferta de canais por uma mesma faixa hertziana, assim fortalecendo as suas condições de competir com a diversificada oferta de canais disponível nos cabos e satélites das redes fechadas (pagas).
O que parece estar sendo proposto nesse debate da Confecom, seria uma espécie de Tratado de Tordesilhas, separando a radiodifusão em VHF ou UHF, unidirecional, generalista e dirigida ao “povão”, de algo que continuaria sendo erroneamente entendido por “telecomunicações”, pelo qual seguiriam sendo difundidos dezenas ou centenas de canais pagos ou de portais (muito bem remunerados) de internet. Sabemos que o Tratado de Tordesilhas até funcionou por algum tempo, mas não por todo o tempo…
A discussão, conforme está posta, impede, mascara ou até, talvez mais corretamente, falseia uma outra discussão bem mais estratégica, já que falamos de futuro. A radiodifusão, como sabemos, é um serviço público, operado por concessão do Estado e submetido a princípios constitucionais embora jamais regulados numa devida lei. Entre esses princípios, encontra-se a defesa e promoção da cultura brasileira. As telecomunicações não são necessariamente serviços submetidos ao regime público, a exceção da também decadente telefonia fixa. As telecomunicações são regidas e orientadas pelas regras aéticas e apátridas do mercado. Na medida em que a convergência se expanda no Brasil, essas regras prevalecerão e a nossa importante indústria cultural, sem falar de muitas outras múltiplas dimensões felizmente ainda não mercantilizadas de nossa cultura, ver-se-ão esmagadas por uma autêntica invasão estrangeira. Aliás, isso já está ocorrendo. Nas classes altas e médias conectadas à TV por assinatura ou à inter
net, está-se esgarçando mais e mais a relação de pertencimento ao nosso povo e ao nosso país. Quem aqui escreve e assina é professor universitário, sabe, no contato diário com jovens bem nutridos, o que está dizendo.
A defesa da cultura brasileira, nos termos do discurso das lideranças dos radiodifusores, só poderia ser levada a sério se estivesse acompanhada de uma real proposta para estender a todo o campo das também antigas telecomunicações os princípios da Constituição – junto com a devida legislação que os aplique. Em troca, pois é dando que se recebe, seria necessário reconhecer a clara distinção, nas novas comunicações convergentes, entre conteúdo e infra-estrutura. Esta, inclusive no espectro atmosférico, precisa ser neutra em relação ao que transporta. Aquele, por seu turno, precisa ser regulamentado de modo a assegurar a maior igualdade de oportunidade possível para a manifestação da diversidade, da pluralidade, logo, para a expressão democrática da sociedade, reafirmando-se nisto, por todos os meios práticos-normativos necessários, a defesa e promoção da cultura brasileira, comercial ou não. O projeto argentino para o audiovisual, neste aspecto, nos oferece boas sugestões.
Pelo muito pouco que se lê na imprensa sobre os debates da Confecom (e nada se vê ou ouve no “Jornal Nacional”…), tem gente falando do futuro sem querer discutir o presente e, segundo estes, tem gente que estaria falando do passado mas, se isto for certo, também, ao que parece, sem discutir o presente. Se essa leitura estiver correta, uns e outros estão, ambos, de fato, discutindo o passado, ignorando o que vem pela frente. Querer engessar o debate nos problemas da radiodifusão – o que os dois grupos politicamente mais mobilizados fazem, embora com sinais trocados –, apenas deixa alegremente livre para continuar se expandindo à margem de qualquer regra política maior, aquele que será, de fato, o grande setor das comunicações brasileiras nos próximos anos: é este comandado pela Fox, pela Disney, pela CNN, pelo Yahoo, pelo Google, pela Microsoft, pela Warner, pela Sony, pela HBO… a lista é grande e sobre esta lista não se imporá nem as regras do tão querido artigo 221, nem outras que se queiram estabelecer em nome de um desejado “controle social da mídia”, de uma ansiada “renovação de concessões”, ou coisa que o valha. Simplesmente, não haverá controles, nem serão necessárias concessões para os canais e portais, quase todos estadunidenses, dos meios convergentes.
Discutir o futuro é entender o presente. Entender o presente é definir as regras que orientarão os avanços futuros. Trata-se de saber se o futuro evoluirá num rumo mais democrático e culturalmente inclusivo, conforme definido por um projeto de país, ou no rumo da hegemonia cultural anglo-saxã e de uma conseqüentemente renovada apartação social e cultural distinguindo uma elite com acesso livre, pois poderá pagar, aos conteúdos para cá enviados diretamente do exterior, e uma grande massa subeducada para a qual se concederá seguir assistindo (dizem que de graça) a algum tedioso programa de domingo a tarde. Para o primeiro rumo, haverá que se reafirmar e ampliar os princípios de regime público, em especial os expressos na Constituição, para o conjunto das comunicações convergentes. Para o segundo rumo, bastará seguir discutindo o passado, conforme parece que não é, mas é, a pauta dos radiodifusores, e entregar o futuro ao mercado. Simples assim.
Marcos Dantas é professor da Escola de Comunicação da UFRJ, doutor em Engenharia de Produção pela COPPE-UFRJ, ex integrante do Conselho Consultivo da Anatel, ex-secretário de Educação a Distância do MEC.
E-mail: mdantas@inventhar.com.br