A revista CartaCapital (nº 71, dezembro de 2005) trouxe uma excelente reportagem chamada “De Bonner para Homer”. Ela dá pistas sobre os mecanismos que o mais assistido telejornal do país utiliza. Entre eles, explicar para esconder e transformar o negativo em positivo.

A matéria foi escrita pelo sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP, Laurindo Lalo Leal Filho. Relata a visita de um grupo de professores da USP a uma reunião de pauta do Jornal Nacional, em 23 de novembro. A reunião foi coordenada por William Bonner, que além de ser o apresentador do programa, também é seu editor-chefe.

Durante a reunião, Bonner diz que uma pesquisa realizada pela Globo identificou o perfil do telespectador médio do Jornal Nacional. Seria um sujeito preguiçoso, burro e que adora ficar no sofá, assistindo TV, comendo rosquinhas e bebendo cerveja. Ou seja, alguém parecido com Homer, o famoso personagem da série Os Simpsons.

Até aí, sem mistério. Um telespectador com um perfil como este não é exclusividade do Brasil. É uma característica da era da televisão. Luis Fernando Verissimo disse, certa vez, que a fogueira deve ter sido a TV do homem das cavernas. O sujeito devia ficar ali, olhando hipnotizado para o fogo, como fazemos hoje em nossas salas de estar, quando assistimos à TV. A diferença é que, talvez, naquela época, o espectador do fogo, podia até pensar em algo. Até filosofar, quem sabe. Algo muito difícil, quase impossível, pode ocorrer com o ser humano moderno e sua colorida televisão.

Identificar um fenômeno assim não tem nada demais. O problema é o que fazer com isso. No caso do JN, seus realizadores sabem muito bem o que fazer. Querem continuar a ter o lerdo e desmiolado Homer Simpson como seu telespectador médio.

As provas disso estão na reportagem de Leal Filho. Bonner recusa, por exemplo, uma notícia sobre a venda de óleo para aquecimento residencial a baixo custo para famílias pobres do estado de Massachusetts, nos Estados Unidos. O motivo? A oferta foi feita por uma empresa de petróleo da Venezuela. Bonner afirma que “considera a notícia imprópria para o jornal”.

Outro exemplo é o tratamento dado ao caso do juiz que mandou soltar presos por falta de condições carcerárias, em Contagem, Minas Gerais. “Esse juiz é um louco”, sentenciou o editor-chefe do JN. Vincular as razões que levaram o juiz a sua decisão, diz a reportagem, nem sequer foi cogitado.

Faça o que eu digo…

Mas o negócio é mais complexo. Acontece no próprio nível da comunicação. Claro que trata-se, em primeiro lugar, de utilizar a linguagem mais simples possível. Mas, vamos com calma. Segundo a matéria publicada em CartaCapital, por exemplo, Bonner teria afirmado que o perfil do telespectador médio do Jornal Nacional representa alguém que “tem muita dificuldade para entender notícias complexas e pouca familiaridade com siglas como BNDES, por exemplo”. Mas, na edição de 25 de novembro deste ano, ao se referir a uma queda do dólar, aparece a seguinte notícia: 

“Pela manhã, num seminário no Rio, o presidente do BNDES, Guido Mantega, disse que os juros altos resultaram em valorização do real, o que já estaria afetando as exportações. À tarde, o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, defendeu a política de compra de dólares para recompor as reservas internacionais. No mercado financeiro, o dólar caiu para R$ 2,233. A Bovespa fechou em ligeira queda”.

Em primeiro lugar, a tal sigla que Homer não entenderia está aí: BNDES. Em segundo lugar, vem a frase “os juros altos resultaram em valorização do real, o que já estaria afetando as exportações”. Somente um pedaço muito pequeno da população brasileira saberia fazer essa ligação direta entre juros altos, valorização do real e prejuízo para as exportações. E talvez somente o mesmo número de pessoas saberia explicar o que significa comprar dólares para “recompor as reservas”.

Outra matéria, de 28 de novembro de 2005, tem como manchete “Superávit bate recorde”. O locutor diz: 

“Em dez meses, o superávit primário foi recorde: R$ 95 bilhões, o equivalente a 5,97% do Produto Interno Bruto, toda a riqueza que o Brasil produz. E bem acima da meta prevista para este ano, que é de 4,25%. Uma economia que só pode ser usada para pagar os juros da dívida pública”.

A linguagem está boa. Melhor que muitos jornais sindicais. Explica que o superávit primário é “uma economia que só pode ser usada para pagar os juros da dívida pública”. Diz que Produto Interno Bruto é “toda a riqueza que o Brasil produz”. Mas claro que não explica que essa tal economia implica cortes em verbas sociais. Menos saúde, educação, previdência social, moradia, transporte etc. Aí está a grande jogada. Economizar é bom. Todo mundo que é responsável pelo sustento de uma família sabe disso. É o contrário de esbanjar. O que os chefes de família não ficam sabendo é que os tais R$ 95 bilhões de reais economizados vão para os bolsos de banqueiros e especuladores. E que isso é que é esbanjar!

A mesma lógica é usada para anunciar o pagamento de uma parcela da dívida externa. No dia 13 de dezembro, o Jornal Nacional anunciou “Ministério da Fazenda diz que vai quitar antecipadamente dívida com o FMI”. Segundo a matéria: 

“O Ministério da Fazenda anunciou que até o fim do ano vai quitar antecipadamente uma dívida de US$ 15,5 bilhões com o FMI – o Fundo Monetário Internacional. O vencimento era no ano que vem e em 2007”.

Didatismo torto

Qual é a tendência do público médio do Jornal Nacional? Um público que representa realmente a maioria dos brasileiros? A tendência esmagadora é a de considerar a notícia de modo muito positivo. Quitar dívidas, livrar-se delas, limpar o nome. Isso é ótimo, claro. Pena que signifique entrar ainda mais pelo caminho da submissão do País ao que o FMI, os banqueiros, os especuladores querem e exigem.

Portanto, a linguagem utilizada pelo Jornal Nacional tem um didatismo torto. Ela fala simples mantendo os mistérios. Palavras como “PIB”, “superávit primário” são explicadas, mas continuam escondendo seu real significado. E decisões negativas para a grande maioria das pessoas, aparecem com um tom positivo. É de uma inteligência maligna.

Este é o Jornal Nacional, nu e cru. Fazendo novos “Homers Simpsons” em escala industrial.
 

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Sérgio Domingues é sociólogo, assessor sindical e conselheiro do Núcleo Piratininga de Comunicação e escreve no Mídia Vigiada. Artigo publicado também no Observatório de Imprensa.