Por Najla Passos
Todos os dias, a mídia convencional silencia o clamor por vida e dignidade que ecoa dos morros cariocas, dos assentamentos dos sem-terra, das aldeias indígenas da Amazônia, dos vários rincões de pobreza do país. Nas páginas dos jornais, nas telas da TV, pobreza e violência se confundem de forma visceral.
O fenômeno, batizado de “criminalização da pobreza”, é recente, conforme afirmou o coordenador da Rede de Comunidades Contra a Violência, Maurício Campos, na mesa Mídia e Criminalização da Pobreza e dos Movimentos Sociais, durante o 15º Curso Anual do NPC, no Rio de Janeiro, de
Entretanto, esse fenômeno faz parte de um processo tão antigo quanto a história da humanidade e, especialmente neste caso, do país. Fenômeno esse que desumaniza o outro, exclui o diferente, coisifica os de baixo e registra a história apenas do ponto de vista das classes hegemônicas. Sempre, é claro, com a ajuda definitiva dos aparelhos do Estado, incluindo aí o sistema educacional e, de forma cada vez mais definitiva e fundamental, a mídia.
Identidade nacional
Na mesa Cultura Brasileira e Identidade Nacional, o professor de Sociologia da Universidade de Campinas – Unicamp, Renato Ortiz, lembrou que a construção da identidade nacional é feita pelas ideias hegemônicas de cada época. Não por acaso, o negro foi tão silenciado na literatura brasileira que se propunha a dar significado ao surgimento da nação brasileira.
“No século 19, auge da Teoria Evolucionista (de Darwin), acreditava-se que a mistura de uma raça superior (Branca) com duas inferiores (Negra e Indígena) resultaria em um ser ainda mais inferior. Então, o pensamento hegemônico excluiu o índio da construção da identidade da nova nação”, ensinou Ortiz.
De fato, quando Euclides da Cunha, um pouco mais tarde, já na virada do século, se baseia nos pensamentos feitos hegemônicos na sua época para julgar os sertanejos que combateram na revolta de Canudos, ele chega a afirmar, no clássico Os Sertões, que a mestiçagem é um retrocesso e, o mestiço, quase sempre um desequilibrado.
“Como nas somas algébricas, as qualidades dos elementos que se justapõem, não se acrescentam, subtraem-se ou destroem-se segundo os caracteres positivos e negativos
Assim, o processo do ocultamento do negro só virá a ser revertido bem mais tarde, nos Anos 30, quando se tornou impossível ignorar sua presença na formação da brasilidade. Os intelectuais do pensamento hegemônico, na esteira do clássico “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freire, criam, então, o mito da democracia racial, que propõe que, no Brasil, à revelia de quaisquer evidências históricas, brancos, negros e índios vivem de forma equilibrada e harmônica.
Feridas abertas da nação
Para a professora de História da Universidade Cândido Mendes – UCAM, Beatriz Vieira, tudo o que é silenciado pela cultura acaba gerando traumas que podem perpassar muitas gerações. “A escravidão é, provavelmente, um dos momentos mais traumáticos da nossa história. E o seu término, em função da forma como foi concebido, deixando os negros abandonados e sem referência de pertencimento, gerou suicídios, exclusão social e uma onda de enorme repressão na virada do século”.
Ainda de acordo com a pesquisadora, em nome da “civilidade”, o escravo liberto era, por exemplo, proibido de circular no centro do Rio de Janeiro, a capital da recém instaurada República. “Os negros foram levados para subúrbios cada vez mais distantes. Chegou a ser editada uma lei que proibia os homens de andarem no centro do Rio sem terno. Um processo civilizatório equivocado, que tentava equiparar o Rio de Janeiro à Paris”.
Foi justamente nessa época que o Brasil foi palco de expressivas revoltas dos chamados excluídos. “Vacina, Canudos, Contestado, os movimentos cangaceiros e messiânicos são processos de tentativa de libertação de grupos que não podiam mais ser considerados mercadoria, em função do fim da escravidão, mas também não eram consumidores, não eram cidadãos”, lembra Beatriz.
Ela reforça que, após os Anos
A voz do morro
A professora de Antropologia da Universidade Federal Fluminense – UFF, Adriana Facina, reforça que a discussão sobre cultura, no mundo atual, é importantíssima, justamente porque é extremamente politizada. “A cultura não é algo descolado do mercado, dos conflitos. É o coração disso tudo, de um mundo em que os movimentos de massa perderam força, que não se consegue mais articulá-los pelos métodos tradicionais”.
Autora de estudos sobre o funk carioca, ela acrescenta que a construção da identidade nacional se deu com processos de exclusão, higienização e domesticação da cultura popular, abarcando, inclusive, construções de valores subjetivos, como, por exemplo, o que é considerado culturalmente feio, bonito, elevado ou lixo cultural.
“Criou-se normatizações para definir o que pode e o que não pode ser aceito. E o problema é que mesmo nós, intelectuais contra-hegemônicos, muitas vezes adotamos esses padrões de comportamento e deixamos de fora o que nos parece estranho, diferente. E isso pode gerar uma interpretação exclusivamente oficial do popular”, alerta.
Para Adriana, não há como pensar a cultura nacional sem considerar o fenômeno da diáspora africana. “São muitas as expressões desse processo diaspórico pelo mundo, como o blues, o soul, o samba, o funk… O discurso de defesa da cultura popular pode se tornar muito opressivo se não considerar esses fenômenos transnacionais, até porque ele faz com que se perca o diálogo com os potenciais agentes de transformação social da nossa sociedade: os excluídos, os favelados, os pobres”.
Criminalização e mídia
Retomando o pensamento de Maurício Campos, é preciso estar atento para o fato que, nesse processo de criminalização da pobreza e de construção do discurso opressor da defesa da cultura popular, a mídia exerce papel fundamental. Repeti-lo, portanto, é incorporar o pensamento hegemônico e silenciar as vozes que vêm dos excluídos, postando-se de costas para os tantos rincões miseráveis do país.
De acordo com ele, um dos mecanismos utilizado pela imprensa para convencer a população da necessidade de criminalizar os pobres e os movimentos sociais é identificá-los, individual e coletivamente, com atividades já socialmente definidas como criminosas: furtos, assaltos, seqüestros, tráfico de drogas.
Outra é a definição ideológica – e posteriormente criminal – de atividades características da população pobres como práticas criminosas: ocupação de terras e prédios públicos, trabalho ambulante, manifestações culturais como o funk, etc. Qualquer semelhança entre esses exemplos e as manchetes estampadas nos jornais não é mera coincidência.
Ainda conforme o coordenador da Rede de Comunidades Contra a Violência, a mídia se utiliza de vários artifícios para contribuir com a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais. E precisamos, sempre, estar atentos a eles.
O primeiro é a veiculação sistemática de notícias sobre crimes, associando-os exclusivamente às favelas, aos bairros pobres, aos assentamentos. Outro é privilegiar a versão oficial, normalmente da Polícia, em detrimento das demais.
“A mídia convencional não dá espaço para os pobres envolvidos se manifestarem. E como ensinaram os nazistas, a melhor forma de contar uma mentira e mostrar apenas um pedaço da verdade. Afinal, as drogas e as armas não são produzidas nas favelas, mas quando se fala em narcotráfico, é em favelas que todo mundo pensa automaticamente”, denuncia.
Por fim, Maurício Campos lembra que a banalização e naturalização dos casos de violência e violação dos direitos humanos dos pobres e negros também contribuem para esse contexto, tornando o público cada vez mais imune ao seu apelo humanístico.
* Najla Passos é jornalista em Brasília (DF), mestre