Por Adriana Facina (OICult/UFF)
Eu queria agradecer ao convite dos meus manos, diretores do documentário As muitas faces de uma cidade, com quem tenho aprendido tanto e vivido tantas experiências significativas, como as do Curso de Formação de Agentes Culturais Populares e do Festival Cultural Fala Favela, ambos realizados na UFF. Acho o Mano Zeu um dos artistas mais talentosos que conheço, mais um daqueles poetas primorosos que surgem nos becos e vielas das periferias brasileiras. Em Danilo Georges percebo o brilho de quem encontrou uma função para o ofício do historiador que me faz lembrar Marc Bloch, o historiador ativista que morreu combatendo o fascismo e que acreditava que a missão da História era compreender o passado para modificar o presente.
Quando vi o documentário pela primeira vez na semana passada, na cópia que eles me enviaram pelo correio, eu estava sem luz em casa, ilhada, mas ainda sem saber exatamente o que havia acontecido em minha cidade, Niterói. A bateria do computador acabou antes do fim do filme e tive de esperar até o dia seguinte para terminar de assisti-lo. Quando a luz voltou, enquanto eu ouvia as notícias sobre os mortos e desabrigados na televisão, via na tela do computador o trecho em que eram mostradas as enchentes e as pessoas que perdiam tudo nas periferias de Foz do Iguaçu. As mesmas histórias em cenários diferentes. Um desespero me invadiu a princípio, um sentimento de revolta impotente, uma raiva. Mas, após desespero, me veio uma ponta de esperança de que essas semelhanças possam ser a raiz para a construção de um novo mundo a ser erguido pelos oprimidos, pelos pobres, pretos, favelados, com sua força de sempre resistir e reconstruir, sua cultura, sua fé na vida. Aliás, se tem uma coisa que é tipicamente favelada é a fé na vida, que vem daquela certeza que se adquire quando se sobrevive a um sofrimento muito grande: eu sobrevivo, “já passei por quase tudo nessa vida”, como diria Zeca Pagodinho e, por isso, não tenho medo de “deixar a vida me levar”.
No Rio, a reação imediata das autoridades públicas foi culpabilizar os pobres. Usando a desgraça alheia para impor a agenda das remoções almejadas pela especulação imobiliária, o prefeito Eduardo Paes lançou decreto permitindo o uso de força policial para remover moradores de áreas de risco, o que abrange quase toda a cidade. Anunciou ainda a remoção imediata de uma das favelas mais tradicionais da cidade, o Morro dos Prazeres, localizado em região de grande valor imobiliário, e de mais uma dezena de outras a curto prazo. O governador Sérgio Cabral, o mesmo que acusou as mães da favela da Rocinha de serem fábricas de marginais, disse que as pessoas tem de se convencer a não construir moradias nas encostas e ainda culpou aqueles que foram contra os muros que ele mandou erguer para cercar as favelas e impedir sua expansão. Na minha cidade, onde até o momento foram encontrados mais de 150 corpos e há milhares de desabrigados, o prefeito e seu secretário de obras, fiéis escudeiros de uma especulação imobiliária irrefreada que há anos vem depredando a cidade, também apontaram seus dedos em direção daqueles que morreram ou perderam tudo: suas casas, seus documentos, seus entes queridos, sua história.
Talvez o impacto dessa reação daqueles que deveriam ser os primeiros a demonstrarem sua solidariedade às vítimas seja tão profundo e de longo prazo quanto as mortes e toda a devastação que suas sucessivas administrações causaram. Isso porque suas declarações explicitaram e legitimaram algo que vinha se impondo na surdina e sem alarde e, agora, com a máscara de um cinismo que há muito não se via: a imposição de um modelo de cidade que não considera a favela como território cidadão. Mal a ser extirpado ou empurrado para fora do mapa das áreas interessantes para a especulação imobiliária, a favela volta a ser alvo das antigas políticas de remoção que desconsideram algo que o documentário afirma, bem como a cultura que brota desses territórios: Favela é cidade!
Como diz a música do Rappa, o Rio de Janeiro todo é uma favela. Podemos dizer que o Brasil todo é uma favela e, em breve tempo, na visão de Mike Davis, autor do livro Planeta Favela, a maior parte da população mundial será formada por favelados.
Além de um crime contra os direitos humanos, um absurdo constitucional, um abuso de poder político e econômico, a remoção é também um atentado cultural. Como o documentário prova, as favelas e perferias são, e não é de hoje, os locais de onde surgem manifestações culturais potentes e que traduzem na forma de arte experiências coletivas de vida, de resistência, de formas de organização social, de valores como a solidariedade (que se expressa, por ex., nos mutirões. Agora mesmo na tragédia, os bombeiros reconhecem que a atuação dos moradores na remoção das vítimas dos deslizamentos de terra foi fundamental). Da favela nasce o samba, o hip hop, o funk, o grafite, o reggae, o break. Na favela se abrigou o jongo, bem como todos os batuques negros perseguidos secularmente e que assim chegaram ao século XXI. As favelas pulsam, fervilham, cheias de vida gerada por aqueles que vivem todo o tempo sob ameaça: seja da polícia, do descaso dos governantes, de políticas públicas que vêm essas áreas como laboratórios para o urbanismo, para a segurança pública etc. Favela é cultura!
Por isso, considero que uma das partes mais importantes do documentário é justamente a que fala da cultura da favela. A violência, as tragédias, o sofrimento são avidamente consumidos pela mídia corporativa e pela indústria cultural para alimentar o voyerismo das elites e das camadas médias e geralmente são apresentados de modo descontextualizado, estetizado e naturalizado. Esses temas não devem desaparecer do mapa e a produção cultural popular, periférica tem encontrado diversas maneiras de representá-los de modo alternativo, mais contundente, politizando a denúncia das condições de vida dos debaixo. Mas é urgente também tornar visíveis a cultura e a sociabilidade própria das favelas e das periferias e defender que a cidade só tem a ganhar ao assumir esse lado B como sua parte integrante. Quanto mais guetificada a periferia, maior o medo. Quanto maior o medo, maior a barbárie. Quanto maior a bábarie, maior a violência. E mais
medo.
O que seria do Rio sem suas favelas? Onde nasceram as escolas de samba? Os craques do futebol? Os artistas populares? A nossa linguagem cotidiana, tão urbana e cheia de gírias? Nasceu lá onde a chapa é quente, o papo é reto, demorô já é, tá ligado?
O que seria o Rio sem a Barra da Tijuca? Ainda seria o Rio, pois aquele local, arquitetado, construído, gerido, depredado sob a batuta da especulação imobiliária, da mercantilização do território urbano é um deserto cultural. Não tem esquinas, nem sociabilidade em locais públicos, sendo os inúmeros shoppings o centro de sua vida social, vida privatizada nas “grades do condomínio que são pra trazer proteção, mas que também trazem a dúvida se é você quem está nessa prisão”. Compare com uma das maiores favelas vizinhas ao bairro, a Cidade de Deus, berço do funk, do hip hop carioca, de exímios bboys, de blocos carnavalescos e escolas de samba, de festejos e muita arte, e também de artes de viver e sobreviver.
E é toda essa riqueza que está ameaçada pela lógica cotidiana do extermínio e também pelas propostas de remoções.
Espero que, na contramão do Rio, onde os governantes, incitados como cães raivosos pela mídia burguesa, hoje se voltam violentamente contra o povo favelado e buscam demitir as favelas da sua função de criadoras de uma cultura urbana, Foz do Iguaçu possa encontrar o caminho para a periferia e se reconstruir como um modelo feliz de cidade. Que parem o assassinato de jovens! Que subam as pipas no céu das favelas! No Rio, é só nelas que as crianças ainda tem a liberdade de soltar pipas.
Obrigada e parabéns, meus Manos queridos. Que vocês se aprimorem cada vez mais nas linguagens artísticas, que sejam criativos, que expressem o que se passa em seus corações e mentes,que construam caminhos para as vozes da periferias possam soar alto nos dessa gente que está surda e insensível. Nossa indignação agradece!