Por Mário Maestri, janeiro de 2005

Como consumidor assíduo da grande imprensa, acompanho há mais de três décadas a transformação da ação de informar em ato de formar, através da manipulação da notícia. Também desde há muito sou leitor assíduo da Folha de São Paulo, que se destaca com reconhecida galhardia nesse e em tantos outros campos da informação. Digo isso para registrar que pouca coisa me surpreende nesse domínio, na grande mídia nacional e internacional.

Porém, na página internacional desta quinta-feira, 13 de janeiro,  chamou-me a atenção o importante parágrafo inicial – lide – de artigo sobre o Oriente Médio “Violência azeda clima amistoso entre Israel e palestinos”. Em verdade, a simetria quase artística com a qual o redator do artigo estupra o conteúdo da informação, através da manipulação da linguagem, transforma-o em uma quase pérola desse campo da narrativa.

Vejamos esse pequeno capolavoro da informação a serviço da formatação subliminar a que o leitor é habitualmente submetido: “Um terrorista palestino assassinou um colono judeu num assentamento da faixa de Gaza, enquanto soldados israelenses mataram, na Cisjordânia, dois integrantes do grupo terrorista Hamas.” [Os destaques são nossos.]

Os bons e os maus

Segundo o artigo, os palestinos, como agentes e pacientes da luta armada na região – ou seja, quando matam ou quando morrem – são invariavelmente assassinos, terroristas. Porém, os israelenses, como agentes, são simples “soldados” que “matam” “terroristas” e, como pacientes, “colonos” e “judeus” de um  “assentamento” “assassinados” por “terroristas”.

Fico quase enrubescido ao lembrar ao prezado Ombudsman o diferente peso semântico entre o verbo “assassinar” e “matar”. Matar pode até mesmo descrever ato natural de tirar a vida. O poste que cai sobre a rua pode matar o transeunte.  Assassinar é a morte produzida por ser humano com aleivosia. Porém,  não deixa de ser uma quase ironia da língua o uso desse termo pela Folha de São Paulo para anatematizar os palestinos. 

A palavra “assassino” chegou-nos do persa, de “hassasim”, designação de “seita” ou “tribo” “do norte do Irã”, que, quando das Cruzadas inebriavam-se de “cânhamo”, nossa maconha, antes “de atacar e matar líderes sunitas e cristãos”, segundo a definição também não muito santa do Aurelião. Já na época, esses guerreiros nacionalistas foram definidos pelas tropas invasoras como fanáticos e criminosos tomadores de haxixe/hashish [hashishiyyin, plural de hashishiyya].

 Simpáticos colonos

Sinto-me igualmente constrangido em remarcar a impropriedade do uso da palavra “colono”. Sobretudo em português do Brasil, colono enseja a associação imediata com a imagem de colonizador de território inexplorado. Não apenas aqui no sul do Brasil, colono foi sobretudo o esforçado camponês sem terra alemão, italiano, polonês, etc. chegado ao Brasil para explorar, com a família, um troço de terra florestal, em geral desabitada. 

Por outro lado, o uso da palavra assentamento aproxima as povoações militarizadas israelenses às pacíficas comunidades de trabalhadores rurais sem terras, assentados pelas autoridades públicas para explorar latifúndios reconhecidos pela lei como improdutivos. Ordeiras comunidades criadoras de riqueza que gozam justamente com a simpatia quase geral da população brasileira.

Folga igualmente destacar a impropriedade da descrição, como “judeu”, do “colono” “assassinado” pelos “terroristas”, o que lhe garante parte da inesgotável simpatia que merecem os milhões de judeus, esses sim assassinados por terroristas nazistas, em geral no próprio território nacional em que haviam nascido.

Terra e liberdade

A incorreção do uso do termo judeu acresce ainda mais na medida em que, comumente, “judeu” é tido em forma mais habitual como aquele que professa a fé judaica. Portanto, o correto uso do termo israelense manteria um mínimo de neutralidade, sobretudo porque o articulista não se refere jamais aos palestinos mortos como “muçulmanos”. 

Desnecessário dizer que, em momento algum, perde-se tempo no artigo explicando ou ao menos sugerindo as decorrências dos dois “incidentes” terem-se dado na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Ou seja, em territórios reconhecidos pela “comunidade internacional” como indiscutivelmente pertencentes aos palestinos, ainda que atualmente sob ocupação militar israelense. 

A localização do incidente torna os militares e os membros dos grupos para-militares de ocupação israelenses em território palestino invasores e portanto alvos legítimos da luta de libertação nacional palestina, segundo o direito dos povos, reconhecido pelas leis internacionais. Uma luta que se iguala à dos franceses, italianos, iugoslavos, etc., contra a ocupação nazista, ou à dos tupiniquins, tupinambás e brasileiros contra os colonos e aos militares lusitanos.

 O banquete do leão

Esta carta não constitui de modo algum recriminação ao prezado Ombudsman, já que compreendo a sua posição delicada. Ou seja, a de estipendiário da empresa para, em tese, controlar os excessos, erros, voracidade, interesses singulares, etc. da mesma empresa, garantindo, assim a qualidade e imparcialidade da informação, sempre em tese. 

Em verdade, já na primeira vez em que soube que inaugurariam essa prestigiosa função no Brasil, veio-me à mente a idéia confusa de um cristão, chamado para a arena para discutir a justiça do banquete, ou a mais extremada pelo leão faminto, ou a de defensor dos direitos humanos, nomeado pelos torturadores e exercendo seu trabalho na masmorra!

Ninguém pode, portanto, prezado Ombudsman, recriminar-lhe, nem de longe, o fato de que a notícia seja invariavelmente manipulada na maricota da linguagem para melhor servir ao banquete dos grandes interesses. Portanto, minha carta tem apenas o objetivo de pedir que lembre aos seus diletos, capazes e disciplinados colegas de redação que não abusem na dose, pois, como dizem os franceses: “Trop c´est trop”!
 

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Mário Maestri, 56, gaúcho, é historiador, publicou, entre outros, com Florence Carboni A linguagem e

scravizada [São Paulo: Expressão Popular, 2002.] E-mail: maestri@via-rs.net