Por Marcelo Salles
Caros Amigos
Não restam dúvidas. Walter Lima Jr. é sujeito que tem história pra contar. Aos 71 anos, lembra com clareza de fatos ocorridos cinquenta anos atrás, como as gravações de Deus e o Diabo na Terra do Sol, filme em que trabalhou como assistente de direção de Glauber Rocha. Conversar com Walter é como dar um passeio pela história do cinema brasileiro, e também pela história de duas cidades: Niterói, onde nasceu e viu os primeiros filmes, e o Rio de Janeiro, que conheceu indo atrás dos filmes que não estavam em cartaz em Niterói e onde esbarrou com a turma com quem iria trabalhar: além de Glauber, Miguel Borges, Leon, Fernando Ferreira, Kaká, entre outros.
O passeio pelas ruas dessas cidades é o fio condutor para entender a história desse cineasta brasileiro, entusiasta da cultura cineclubista, que já realizou duas dezenas de filmes, entre eles o inovador A lira do delírio e o premiado A ostra e o vento, e que atualmente é professor da PUC-RJ e da Escola de Cinema Darcy Ribeiro – além de já ter dado aulas na Escola de Cinema de Cuba. A conversa-passeio é apenas entrecortada por críticas ao modelo televisivo brasileiro, que está “solapando nossas trincheiras culturais”, e pelas duras lembranças da ditadura civil-militar de 1964, que o deixou preso por 50 dias. Conversando com o professor Walter se aprende, com gosto, sobre cinema, história e política.
Caros Amigos – Onde você nasceu e foi criado?
Walter Lima Jr – Eu nasci em Niterói, sou de uma família nordestina que havia migrado para o Rio uns 10 ou 15 anos antes do meu nascimento. Minha mãe era alagoana, meu pai era baiano. O pai dela tinha uma gráfica em Maceió, era uma família toda de músicos e o meu avô era um cara que imprimia partituras, ele fazia uns trabalhos muito bonitos. A família do meu pai tem um colégio em Niterói que até hoje existe, chama Maria Thereza, agora virou faculdade. Eu vivi às custas de uma doença crônica da minha mãe, que era asmática. Ela achava que era por causa do bairro, então eu saí da Ponta D’Areia para morar no centro, depois do centro para Icaraí, depois para não sei onde. Enfim, nós moramos em Niterói inteira.
Como o cinema foi parar na sua vida?
Eu acho que começou desde a primeira vez que eu vi um filme. Eu me lembro que no momento que eu tomei conhecimento da ciência do cinema, era o cinema americano, era o cinema predominante que é até hoje. Eu estou falando da época da guerra, eu nasci em 1938.
Em pleno Estado Novo.
A minha família era uma família que tinha tido problemas com o Estado Novo, tinha tios que tinham sido presos. Desde garoto vivi na época da guerra. Me lembro de blackouts, me lembro da cidade toda escura em Niterói. Me lembro da minha mãe, de racionamento de trigo, eles faziam o pão em casa.
Mas você via filmes em casa? No cinema? Na rua?
Filme em casa é coisa de agora, via filme no cinema. Eu ia num cinema chamado Cine Rio Branco, que ficava na Rua da Praia [hoje chamada de Visconde de Rio Branco]. Mas o que eu gostava mesmo era ver filme de aventura. Filme de pirata e filme western eram os meus favoritos. Fazia cadernos, tomava nota, escolhia quem era o melhor, e no fim do ano eu dava um prêmio. O Rio de Janeiro eu vim a conhecer por causa de filme, indo atrás dos filmes que eu não tinha podido ver lá em Niterói. Eu ia aos cinemas, entrava em filme de 14 anos, mesmo com 12, 13 anos.
E o seus pais sabiam que você ia?
Deus me livre, se eles soubessem disso eu me ferrava. E ver duas vezes o mesmo filme podia, né? Hoje isso já não existe mais. Acabou, assim como acabaram os cinemas de rua em Niterói. É uma pena para quem ama o cinema, porque você pode ser arrebatado pelo filme. A pessoa pagou, ela tem o direito de ficar vendo o filme. Eu entro num museu e vou ver um quadro, tem mais 800 quadros, porra, imagina? Eu tô interessado nesse quadro, e ficava ali vendo aquele quadro. Agora, quem entra no cinema para comer pipoca e tomar refrigerante, isso é uma outra raça. Mas quem gosta… Eu já vi filmes de ver três vezes seguidas e fiquei parado, entendeu? Nas três vezes chorava sem parar vendo o filme, pela beleza do filme, ficava impressionado. Eu me lembro que eu fui ver o Milagre em Milão, do Vittorio De Sica, não conseguia sair do cinema. Eu fui ver Ladrões de bicicleta, eu não conseguia sair do cinema. Foi a primeira vez que eu senti isso fortemente, eu fiquei tão emocionado com aquilo, eu me senti tão inteligente com aquilo. Eu percebi tudo aquilo ali, o que era o desemprego, o que era a relação do pai com o filho, tudo aquilo que às vezes eu sentia falta dentro da minha casa, na minha própria relação com o meu pai.
Você contou como foi sua vida na frente da tela, agora eu quero saber como foi a passagem para detrás da tela.
Descobri no jornal que existia crítica de cinema, tinha uns malucos que também falavam sobre cinema. Em um determinado momento eu passei a freqüentar cineclubes, aí encontrei a minha turma. Essa mesma turma é com quem estou fazendo cinema. Conheci o Leon, conheci o David Neves, conheci o Kaká, no cineclube. Marcos Faria, Miguel Borges, daqui do Rio, né?
Qual cineclube você ia, algum específico?
Vários. Tinha um cineclube da UME, União Metropolitana de Estudantes, chamava Grupo de Estudos Cinematográficos, tinha um outro cineclube que chamava Museu de Arte Cinematográfica,
que foi onde conheci o Leon. Tinha um outro chamado CCC, Centro de Cultura Cinematográfica, onde conheci muita gente ligada à crítica. Tinha um aqui na Ebap, Escola Brasileira de dministraçãoPública, na Praia de Botafogo, onde conheci o Miguel Borges. Ali pela primeira vez eu vi o filme do David Lean, Desencanto, lindo. Existia o cineclube da Faculdade de Filosofia, aí já era uma coisa mais requintada, passava filme mudo, e tinha um cara que tinha um rolo do Limite. Ele estava sempre prometendo que um dia exibiria, ele era uma pessoa célebre, lá vem ele com o rolo do Limite. Ele tinha conseguido convencer o Mário Peixoto [realizador do filme] a tirar de baixo da cama o Limite, porque isso foi uma epopéia; o Mário Peixoto pegou o filme, que era nitrato, explosivo, e botou embaixo da cama. E foi morar lá numa ilha do Morcego, lá não sei onde em Angra dos Reis. E o Saulo Pereira de Melo, junto com o professor de física da escola, Plínio Sussekind Rocha, se aproximou do Mário, que era uma pessoa esquiva, e foi tirando um a um os rolos de baixo da cama do homem, até restaurarem o filme.
Para ler as reportagens completas e outras matérias confira a edição de junho da revista Caros Amigos.