Por Daniel Bensaïd *

 

O capitalismo? “É compreensível que as pessoas não acreditem mais nele”, confessa Tony Blair em pessoa (1). Quando se deixa de acreditar no inacreditável, uma crise de legitimidade, ideológica e moral se soma à crise social, e acaba por estremecer a ordem política. A crise atual não é uma crise a mais, equiparável a dos mercados asiáticos ou a da bolha da Internet.

Uma crise de fé

Trata-se, na realidade, de uma crise histórica – econômica, social, ecológica – da lei do valor, uma crise de medição e de excesso. A medição de tudo através do tempo de trabalho abstrato passou a ser – como anunciava Marx nos Manuscritos de 1857 – uma forma “miserável” de medir as relações sociais. “As crises econômica e planetária têm um ponto em comum”, constata Nicholas Stern, autor em 2008 de um informe sobre a economia das mudanças climáticas. “Ambas são conseqüência de um sistema que não considera os riscos que seu funcionamento gera, que não leva em conta o fato de que pode conduzir a uma destruição superior ao benefício imediato que procura, e que subestima a interdependência entre os atores” (2). A lógica da corrida atrás do lucro, pelo “benefício imediato” é, com efeito, uma lógica a curto prazo, E a “concorrência não falsificada”, por sua parte, é cega à “interdependência” sistemática. Um novo Brenton Woods? Um sistema de governo mundial?

O problema é que a União Européia nem sequer tem sido capaz de criar uma agência de controle dos mercados financeiros em escala continental, ou de promover uma definição comum de paraísos fiscais! Desde outubro de 2008, Laurence Parisot tem se encarregado de deixar claro que o estado deve desempenhar seu papel nos socorro das finanças, mas que deve retirar-se, quando os negócios recuperem seu curso lucrativo. Dito de maneira mais direta: que deve socializar as perdas para logo reprivatizar os lucros. Por trás de ter admitido que o Estado é o único capaz, de forma imediata, de “salvar a economia e os bancos”, Jean-Marie Messier, ressuscitado do purgatório, não se esquece de explicar que “o guarda-chuva deverá fechar uma vez que a tempestade tenha passado”. O Estado não deveria, assim, ser mais do que “um passageiro em meio à chuva” (3).

O plano de recuperação governamental descarrega o custo sobre os trabalhadores e os contribuintes. Por detrás do congresso de Reims, Martine Aubry pretendia descobrir que “torna-se inoperante atacar aos que se utilizaram do sistema, sem atacar o próprio sistema” (4). Contudo, o Partido Socialista se contenta em oferecer um contra-plano “equilibrado”, de medidas supostamente sociais, mas em nenhum momento radicais, no sentido de que suponham uma nova redistribuição de riquezas em benefício do trabalho. Nada se falou sobre a nacionalização do sistema bancário e a criação de um serviço público para tratar do crédito, nada sobre uma reforma fiscal radical, nada sobre a necessidade de reorientar a construção européia. “Atacar o próprio sistema” seria atacar o poder

absoluto do mercado, a propriedade dos grandes meios de produção e troca, a concorrência de todos contra todos. Até o liberal Nicolas Baverez define a banca como um “bem público da mundialização”: “pelas suas características, tem a natureza de um bem público” (5). Seria de esperar, na verdade, que dada esta “natureza”, este bem público fosse submetido a gestão pública sob o controle público. Para Baverez, pelo contrário, o Estado deveria assegurar aos bancos uma “imunidade ilimitada” por suas perdas, e assumir os riscos ligados a seus lucros.

Atacar o coração do sistema suporia adotar-se uma blindagem social que proteja os trabalhadores das conseqüências da crise. Para isso, dever-se-ia romper os grilhões dos critérios de Maastricht e do Pacto da Estabilidade, restabelecer os controles políticos sobre o Banco Central europeu, abolir o Tratado de Lisboa, reorientar de maneira radical a construção européia, começando pela harmonização social e fiscal, e iniciar um processo constituinte de verdade. No mínimo, exigir a revogação do artigo 56 do Tratado de Lisboa que proíbe qualquer restrição aos movimentos do capital financeiro, assim como da “liberdade de estabelecimento”, reconhecida no artigo 48, uma liberdade que permite ao capital mudar de lugar, para aonde as condições lhe sejam mais favoráveis, e às instituições financeiras encontrar asilo onde lhes agrade.

Uma crise duradoura

Porque se trata de uma crise sistêmica,que anuncia o fim de um modo de acumulação, as medidas de recuperação conjuntural terão um efeito limitado. Uma saída para a crise que conduza à emergência de uma nova ordem produtiva e de um novo regime de acumulação, não depende somente da economia. Exige uma nova correlação de forças, novas relações geopolíticas, novos dispositivos institucionais e políticos.

Se a crise de 1929 foi a da “emergência estadunidense”, que emergência prefigura a crise atual? A chinesa? A de uma organização multipolar de espaços continentais? A de um sistema de governo mundial?

Em um tempo em que se invocam a necessidade de uma nova ordem monetária internacional e respostas globais, o próprio Giscard d’Estaing reconhece que “a gestão econômica da crise se tornou, na Europa, mais nacional durante a crise do que antes do seu início”, e que “os instrumentos de intervenção são essencialmente nacionais” (6). A crise agudiza, na verdade, as diferenças nacionais e libera tendências centrífugas. Em nome de uma “correspondência necessária entre os espaços econômicos e sociais”, Emmanuel Todd se arvora em paladino de um “protecionismo europeu” (7) que crie “as condições para a recuperação dos salários” e uma oferta que gere sua própria demanda. A questão não é doutrinária ou de princípios. Proteger? Sim, mas quem, contra quem e como? Se a Europa começasse em adotar critérios sociais de convergência em matéria de emprego, renda, proteção social, direito do trabalho e harmonização fiscal, poderia, legitimamente, adotar medidas de proteção, não as dos interesses egoístas de seus empresários e financistas, mas a dos direitos e conquistas sociais. Poderia fazê-lo de maneira seletiva e pontual, adotando como contrapartida acordos de desenvolvimento solidário com os países do Sul em questões migratórias, de cooperação técnica, de comércio equitativo, sem ceder a um protecionismo de ricos, cujo efeito principal fosse disseminar os estragos da crise entre os países mais pobres.

Imaginar que uma medida de proteção alfandegária implicaria de forma mecânica em melhora nas condições sociais européias, como se pudesse ser tecnicamente neutra no contexto de uma luta de classes exacerbada pela crise, é uma enorme ingenuidade. Os trabalhadores acabariam afetados pelas travas burocráticas e fronteiriças, sem obter as respectivas vantagens sociais. Um protecionismo desta índole não resistiria muito tempo em razão de sua impopularidade, ou não tardaria em derivar para uma “preferência nacional” (ou européia) de corte chauvinista.

Refundar o capitalismo ou combatê-lo

Todos os governantes, de ontem e de hoje, de direita e de esquerda, acabaram por denunciar a loucura sistêmica dos mercados. Contudo, sua desregulação não tem sido fruto da famosa mão invisível, mas de decisões políticas e de medidas legislativas concretas. Foi a partir de 1985, quando era ministro da Economia o socialista Pierre Bérégovoy, que se concebeu a grande desregulamentação dos mercados financeiros e da bolsa de valores na França. Foi um governo socialista que, em 1989, liberalizou os movimentos do capital, antecipando-se a uma decisão européia. Foi o governo de Jospin que, ao privatizar mais do que os governos de Balladur e Juppé juntos, assentou as bases para que o capitalismo francês pudesse acolher fundos de investimentos especulativos. Foi um ministro das finanças socialista, Dominique Strauss-Khan, que propôs uma forte “desfiscalização” das célebres stock-options, e foi outro ministro socialista, Laurent Fabius, quem a pôs em prática. Foi um Conselho Europeu com maioria social-democrata, que decidiu em 2002, em Barcelona, liberalizar o mercado de energia e o conjunto de serviços públicos, aumentar em 5 anos a idade de aposentadoria e sustentar os fundos de pensão. Foi a maioria do Partido Socialista que aprovou a sacralização da concorrência gravada no projeto do Tratado constitucional europeu de 2005. Foi seu voto, uma vez mais, que permitiu a adoção do Tratado de Lisboa, confirmando assim a lógica liberal da construção européia.

Para os salvadores do Titanic capitalista, a tarefa se anuncia dura. Um novo New Deal? Um retorno ao Estado social? Seria esquecer muito rápido que a desregulação liberal não foi um capricho doutrinário de Thatcher ou de Reagan. Foi a resposta à baixa das taxas de lucros, provocada pelas conquistas sociais do pós-guerra. Depois de 1973, “a incapacidade das políticas keynesianas para recuperar a atividade produtiva deixa o campo aberto a uma surpreendente contra-revolução conservadora”, recorda Robert Boyer (8). Voltar ao ponto de partida seria reencontrar-se com as mesmas contradições. Como comenta ironicamente Jean-Marie Harribey: “regular sem transformar não é regular”.

Por trás da crise de 1929, para redistribuir as cartas da riqueza e do poder e para anunciar uma nova onda expansiva, fez-se necessário nada menos do que uma guerra mundial. A colocação em marcha de um novo modelo de acumulação, e o, eventual, impulso de uma nova grande

onda de crescimento, envolverão o surgimento de novas hierarquias planetárias de dominação, uma re-acomodação de nações e continentes, novas condições para a valorização do capital, uma transição da matriz energética. Tal mudança não pode ser resolvida através da amabilidade diplomática, nos tapetes verdes das chancelarias, mas no campo de batalha, através de lutas sociais. A crise, como bem escreveu Marx, supõe “o estabelecimento por força da unidade entre momentos (produção e consumo) impulsionados de forma autônoma”.

Na realidade, não é mais do que um começo

“A crise financeira – insistia Nicolás Sarkozy em seu discurso de Toulon – não é a crise do capitalismo. É a crise de um sistema afastado dos valores fundamentais do capitalismo, dos que – de certo modo – o traíram. Quero deixar claro aos franceses: o anticapitalismo não oferece nenhuma solução para a crise atual”.  A mensagem é clara: o inimigo não é o capitalismo, mas o anticapitalismo.

O presidente retornou à questão na sua intervenção no colóquio sobre a refundação do capitalismo, organizado, por sua iniciativa, em 8 de janeiro de 2009, pela Secretaria de Estado: “A crise do capitalismo financeiro não supõe a do capitalismo como tal. Não é um chamamento a sua destruição, o que seria uma catástrofe, mas a sua moralização”. Suas palavras receberam um vigoroso respaldo de Michel Rocard: “Devemos começar por aí: nosso propósito é salvar o capitalismo”. Estas declarações de guerra social traçam uma linha forte entre dois campos. É preciso eleger: ou discutir com os proprietários como refundar, reinventar, moralizar o capitalismo, ou lutar junto com os explorados e despossuídos para derrotá-lo.

Ninguém poderia predizer como serão as revoluções futuras. O que temos, unicamente, é um fio condutor. Trata-se de duas lógicas de classe que se enfrentam. A do lucro a qualquer preço, do cálculo egoísta, da propriedade privada, da desigualdade, da concorrência de todos contra todos, e a do serviço público, dos bens comuns da humanidade, da apropriação social, da igualdade e da solidariedade.

Notas:

(1) Le Journal du Dimanche, 14 de dezembro de 2008.
(2) Le Monde, 15 de dezembro de 2008.
(3) La Tribune, 15 de janeiro de 2009.
(4) Journal du Dimanche, 5 de outubro de 2008.
(5) Le Monde, 26 de novembro de 2008.
(6) Le Monde, 13 de janeiro de 2008.
(7) Emmanuel Todd, Après la démocratie, París, Gallimard, 2008.
(8) Libération, 29 de dezembro de 2008.

* Professor de filosofia na Universidade de Paris VIII