Por Guilherme Marques Soninho, 31 de março de 2004

Escrevo este curto texto para demonstrar minha decepção com os debates sobre os 40 anos do golpe que têm sido relatados nos jornais. Não me causa surpresa, por exemplo, que O Globo, em seu editorial de 28/03, afirme que se “foi um golpe ou contra-golpe tornou-se um tema de apaixonadas discussões políticas e de longos debates acadêmicos”. É natural essa posição da Globo, afinal as organizações Globo apoiaram o golpe, a ditadura, boicotaram o movimento pelas Diretas Já, etc.

Minha decepção porém não é com O Globo. É com alguns professores de História, Ciência Política e Ciências Sociais das principais universidades do país. Parece que um espacinho nos jornais os fez perder totalmente o rigor acadêmico. Afinal, os jornais relataram, por exemplo, o debate sobre a chamada “resistência democrática”, em que alguns desses professores diziam que aqueles que lutavam contra a ditadura não podiam ser chamados de democráticos. Ora, para se fazer seriamente essa discussão é necessário que se caracterize bem o que está se chamando de democracia. Um desses professores, por exemplo, disse ao O Globo (29/03): “Não se resistiu pela democracia, pela retomada do status quo pré-golpe”. Outro diz: “Houve grupos que planejavam a ação armada ainda antes do golpe de 1964, caso das Ligas Camponesas. Depois de 1964, buscavam não só derrubar a ditadura, mas também caminhar decisivamente rumo ao socialismo”.

É, realmente, se defender a democracia quer dizer manutenção do status quo, se lutar pela democracia quer dizer defender o capitalismo, a resistência ao golpe não era democrática. Mas podemos dizer que estes argumentos são sérios? Acho que não. Afinal quem deu o golpe (contra a democracia) foram os defensores do capitalismo para manter o status quo, e não os socialistas.

Mas o mais decepcionante é ver esses professores julgarem quem era ou não democrático sem dizer o que é democracia, sem perguntar “democracia para quem?”. Podemos dizer que o Estado pré-1964 era democrático? Era democrático, por exemplo, que os trabalhadores rurais não tivessem direitos trabalhistas, de previdência, e nem mesmo de se organizarem? Mas acusam de anti-democráticas as Ligas Camponesas, que lutavam por reforma agrária no país de maior concentração de terras do mundo. Podemos dizer que hoje vivemos numa democracia quando o Secretário de Segurança do Estado do Rio de Janeiro, Garotinho, decide que aqueles que participarem de manifestações contra a sua política, se forem pobres, moradores de favelas, serão presos e enquadrados por associação para o tráfico só por se manifestarem?

É muita pobreza acadêmica aceitar o senso comum sobre o que é democracia, construído pela mídia. Por essa visão (na qual democracia é uma formalidade, sem vida) democracia são os EUA, onde um presidente com menos votos populares é eleito num colégio eleitoral. Onde manifestantes são reprimidos ou presos (mais de 3.000 presos só em São Francisco) por se oporem à invasão do Iraque. Onde a mídia privada, chamada pelos ideólogos liberais de livre, praticam uma auto-censura criticada até pela Globo.

É democrático aceitar diferentes visões sobre o que é democracia, apesar desses professores esquecerem disso. O mínimo que se poderia dizer é que esse é um conceito há muitos anos em disputa. Na Revolução Francesa, democracia era sinônimo de liberdade, igualdade, fraternidade. Na Comuna de Paris, discutia-se e aplicava-se formas de democracia direta, com o povo participando das decisões do Estado cotidianamente. A Constituição Brasileira de 1988 diz que democracia é o governo do povo para o povo. Para os neoliberais, democracia é sinônimo de livre mercado. Qual dessas visões é a mais correta?

Certamente para o Capital é a visão neoliberal. Agora, para os trabalhadores, a democracia é muito mais do que uma formalidade. Assim, lutar pela transformação social, contra o status quo, ou pelo socialismo pode ser uma luta pela democracia, mesmo que não seja a democracia na perspectiva do capital e desses nossos “sábios” professores. A luta de classes se desdobra em luta pelo “poder simbólico”, e assim em diferentes visões sobre o que é democracia, e isso deve ser obrigatoriamente levado em conta nesta discussão sobre a “resistência democrática”, o que não parece ter ocorrido.

Por último, gostaria ainda de dizer que não podemos analisar a história do que não ocorreu, a história que não é história. Dizer que a esquerda pré-1964 era contra a democracia porque defendia em teoria idéias que na concepção desses professores eram anti-democráticas, não quer dizer que a esquerda pré-1964 lutasse contra a democracia. Se para a esquerda a democracia era apenas uma tática, isso não muda o fato dela lutar pela democracia. Ou alguém dirá que as idéias de transição pacífica dirigida pela burguesia nacional rumo a uma democracia popular e realizada através das Reformas de Base está fora do âmbito do que pode ser chamado de democracia? Pois essa era a política de quase 100% da esquerda pré-1964.

Por outro lado, sabemos que a UDN de Lacerda, junto com os americanos do Consulado, vinha planejando, pelo menos desde 1954, o golpe militar. Assim, aceitar que o golpe possa ter sido um contra-golpe, não passa de uma manipulação grosseira da história, para absolver a direita e condenar a esquerda pela ditadura militar.

O golpe, a ditadura, a resistência são capítulos importantes demais para a nossa História. Neste sentido, devem ser tratados com rigor e cuidado de forma que algumas interpretações superficiais, baseadas no senso comum hegemônico ou em sentimentos de arrependimento de ex-militantes sejam evitadas. Não tenham dúvidas que esses “deslizes” serão utilizados pelos “donos do poder” na sua luta ideológica e que (Deus nos Livre!) um dia poderão ser usados para justificar novamente uma ditadura no Brasil.
 

Guilherme Marques Soninho é historiador e membro do NPC