A maior parte da burguesia nacional, que combatíamos nos anos rebeldes, foi à bancarrota e uma outra parte vive hoje dos rendimentos de aplicações do capital obtido com a venda de seus negócios a grupos empresariais estrangeiros.
“Abaixo a burguesia! Queremos pão e poesia!”. Essa palavra de ordem ainda ecoam minha memória. Era das minhas prediletas. Diferenciava-se das demais, também honestas e justas, porém pobres e repetitivas como a singela e eterna “O povo, unido, jamais será vencido!”. Vivíamos o começo dos anos 70 e víamos no empresariado um inimigo, que hoje percebemos quixotesco.
Lutávamos, sobretudo, por justiça social, democracia e por um Estado de Direito – o que, em absoluto, não é pouco. Ainda lembro do cheiro sufocante de fumaça e gás lacrimogêneo, a insuportável ardência nos olhos. Ainda lembro do som cadenciado das botas do pelotão de choque marchando no asfalto. Lembro, com pavor presente, do amigo Celso, ao meu lado, cuspindo sangue e alguns dentes: um cassetete da polícia acertara em cheio a sua boca. Sinto ainda profunda tristeza e ausência quando lembro dos amigos que “desapareceram”. Assim tentamos, e seguimos tentando, mudar as coisas. O país e o mundo eram bem diferentes, tínhamos a energia e a vontade da mocidade. Agora, mais maduros, temos a razão. A paixão, no entanto, se perdeu.
Sem dúvida, experimentamos hoje o exercício da (ainda não plena) democracia. Espalha-se – contaminada por forte ranço autoritário, é bem verdade – a melodia maledicente de que nos dias de hoje “até” a polícia faz greve. A polícia, por sua vez, segue atuando como braço armado do Estado. Continua descendo o cassetete (e por vezes tiros) nas manifestações antiglobalização, nos sem-terra, nos sem-teto, nos trabalhadores grevistas, nos marginais. Os menores infratores e os pobres também seguem levando porrada. Quando teremos uma polícia cidadã?
É curioso lembrar aquela época, quando estudantes e trabalhadores ainda lutavam unidos por uma causa e os “inimigos” aparentes eram o capital estrangeiro, a burguesia nacional e os militares. Os inimigos já não são os mesmos e as aparências já não enganam mais. Hoje, os militares estão em seu devido lugar (nos quartéis), a burguesia nacional está em extinção e o capital estrangeiro monopoliza e “sustenta” a economia. O prestigiado acadêmico que teorizava sobre a dependência das economias periféricas é hoje o presidente do país. Triste ironia. Tristes trópicos.
À revelia dos arroubos intelectuais do presidente sociólogo, o receituário econômico prescrito pelo Consenso de Washington, adotado à risca pelo governo, torna a economia brasileira de tal forma dependente do capital externo que se tornou absolutamente temerário e extemporâneo fazer qualquer discurso, que viesse a “pôr em risco” esse pilar do capitalismo financeiro globalitário. Será mesmo? As palavras e as idéias podem mesmo corroer os alicerces da nova ordem mundial? O pensamento único, tal qual os dogmas religiosos, funciona como um espantalho das idéias. O termo protecionismo tornou-se grave palavrão e ofensa, exceto, é claro, quando flagrado em cláusulas pétreas da política externa dos países líderes do mercado globalizado, reunidos no G7. Nesses países, subsídios e protecionismos comerciais são armas legítimas do Estado na preservação de seus mercados. Nos países pobres, os chamados “nacionalistas” devem deixar a barba de molho. Ou talvez fosse melhor fazer a barba, cabelo e bigode. No reinado dos yuppies, a estética rebelde pode soar passadista.
Não se sabe se por perplexidade ou servilismo estabeleceu-se cúmplice e compungido silêncio na mídia nacional diante da progressiva (e quase completa) desnacionalização da economia brasileira. Grupos estrangeiros já compraram o “filé” das empresas estatais, as indústrias e as empresas comerciais brasileiras – quase sempre com incentivos governamentais, leia-se subsídios, diretos ou indiretos, financiamentos e deságios generosos. A agricultura e agroindústria, que alguns já chamam de agrobusiness, se esforça em preservar competitivas, e nativas, suas commodities. A maior parte da burguesia nacional, que combatíamos nos anos rebeldes, foi à bancarrota e uma outra parte vive hoje dos rendimentos de aplicações do capital obtido com a venda de seus negócios a grupos empresariais estrangeiros. Vítima “inocente” dos juros estratosféricos e do dólar sobrevalorizado, o câmbio aprisiona o país numa situação de iminente insolvência graças a uma impagável dívida pública, que já não é assim tão pública. O green gold encanta a eterna colônia com seu brilho tentador.
A imprensa se omite diante de matérias de interesse nacional. As empresas de comunicação (TVs, rádios, jornais, revistas etc.), protegidas da pilhagem estrangeira por norma constitucional (art. 222), seguem céleres para o balcão de negócios do capitalismo globalitário. Já saiu do forno de negociatas e lobbies dos salões e gabinetes do Congresso Nacional, aprovadíssima em dois turnos, uma proposta de emenda à Constituição que prevê a participação de capital estrangeiro nos grupos de mídia. Era o que faltava. Onde irão parar a cultura, a soberania e a identidade nacionais? Berlusconi será o novo magnata da nossa mídia?
Não se trata de xenofobia ou nacionalismo. Creio ser necessário, pelo menos, propiciar um amplo e maduro debate nacional, antes de “entregar o ouro ao bandido” – e pensar que outrora expulsamos com fúria cívica os portugueses e holandeses invasores. Qual é o mot
ivo dessa urgência em dilapidar o patrimônio nacional? É necessário capitalizar a economia nacional, dirão alguns. Precisamos de tecnologia de ponta – a TV digital vem aí! – dirão outros. Essa é a sanha e a senha da voraz e estúpida globalização: o homem a serviço do capital. Será que é mesmo necessário vendermos nossas empresas? O empresariado nacional não tem condições ou competência para desenvolver suas empresas e produtos? Não devemos nos preocupar em preservar nosso mercado da sanha e da pilhagem globalitária? Reflitamos sobre essas questões. Ou, como diria o bom e velho Raul Seixas, ídolo autêntico daquela geração que deu seu sangue e suor por um Brasil melhor nos idos de 70: “A solução pro nosso povo eu vou dar / Negócio bom assim ninguém nunca viu/ tá tudo pronto é só vim pegar/ a solução é alugar o Brasil! Nós não vamos pagar nada. Dá lugar pros gringo entrar/ esse imóvel tá pra alugar. A Amazônia é o jardim do quintal e o dólar deles paga o nosso mingau. Uau!”. Negócio bom assim ninguém nunca viu…
Lula Miranda é economista e escritor. É também secretário de Formação e Cidadania do SEEL – Sindicato dos Trabalhadores em Editoras de Livros de SP.