(Sérgio Domingues)
As enormes manifestações pela paz no mundo todo mostram que o maior problema da guerra são os Estados Unidos. Mais precisamente, seu presidente. Mas como é a sociedade que Bush governa? É mais do que hora de olharmos para dentro do Império, porque o Império já está olhando para dentro de nós.
Edward Saïd é professor de Literatura comparada na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e autor, entre outros livros, de Culture et impérialisme. Um seu artigo, muito interessante, está na página brasileira do Le Monde Diplomatique. Trata-se de O outro lado dos Estados Unidos. Nele, Saïd levanta vários aspectos importantes da sociedade norte-americana. Vejamos alguns deles:
“Os Estados Unidos são o país que reivindica mais explicitamente a condição religiosa. As referências a Deus impregnam a vida da nação – das moedas e das repartições públicas às expressões de linguagem como In God we trust, God’s country, God Bless América etc.”
Recentemente um tal Jason Goodwin, lançou o livro Greenback, em que discute o papel do dólar na cultura americana. Segundo ele,
“a teologia americana foi uma teologia secular. Ela se centrou no dinheiro e na liberdade, na promessa e no retorno, no lucro e no prejuízo. Ela se centrou, de fato, no milagre do dinheiro.”
Talvez, o fato de o tele-evangelismo ter nascido nos Estados Unidos possa ser resultado da junção dessa religiosidade de país eleito com o pragmatismo da busca do lucro.
Sobre a noção de história entre os norte-americanos Saïd diz:
“Nos Estados Unidos, a História foi expulsa do discurso público; a própria palavra é sinônimo de insignificância, de desprezo, como na expressão tipicamente norte-americana you’re history (“você já era”). Quando solicitada, a História é aquela em que as pessoas supostamente devem acreditar sobre seu país (e não sobre o resto do mundo, que é “velho” e, de uma maneira geral, atrasado e, portanto, irrelevante), sem espírito crítico, fielmente, sem referências históricas.”
Lembro-me de assistir desenhos animados do Pernalonga em que a história norte-americana era satirizada. Mas não de forma a denunciar o caráter apontado acima por Saïd. Ao contrário, a sensação que ficava era a de um país épico. Ora, se era essa a sensação que chegava a mim, um garoto da periferia de um periférico país latino-americano, o que dizer dos próprios espectadores mirins estadunidenses? O artigo comentado aqui tem mais a nos falar sobre isso:
“Dez anos atrás foi desencadeada uma grande batalha intelectual para saber qual a versão da História que deveria ser ensinada nas escolas. Prevaleceu o ponto de vista que defendia uma história dos Estados Unidos sob a forma de uma narrativa heróica e unificada, devendo refletir apenas ressonâncias positivas nos espíritos dos jovens; o estudo da História não tinha por objetivo exclusivo o conhecimento da verdade, mas a justeza ideológica de representações que pudessem tornar os estudantes pessoas dóceis, predispostas a aderir a um determinado número de temas imutáveis, como o das relações dos Estados Unidos consigo próprios e com o resto do mundo.”
Saïd diz que mais tarde alguns historiadores reverteram a situação e conseguiram fazer prevalecer o ponto de vista mais crítico da história norte-americana. Mas o fato de que havia a disposição de defender o ensino de história como narrativa heróica é assustador. Assustador e suficientemente esclarecedor quanto ao cinema norte-americano. Afinal, o que mais são os filmes de bang-bang, de guerra, até mesmo as comédias e tramas policiais? São remontagens da história norte-americana segundo uma auto-imagem épica e gloriosa.
Continuando nossa discussão sobre o artigo, vamos ao que o autor chama de narratema. Narratemas seriam instrumentos que estruturam, moldam e controlam qualquer discussão, apesar de uma aparência de variedade e diversidade. Por exemplo:
“Um deles é o ‘nós’ coletivo, uma identidade nacional encarnada – aparentemente, sem qualquer problema – pelo nosso presidente, o nosso secretário de Estado, nossas forças armadas no deserto e nossos interesses, normalmente apresentados sob a rubrica de legítima defesa, desprovidos de motivos escusos e, de uma maneira geral, inocentes.”
É incrível como mesmo personalidades que falam contra a guerra assumem a primeira pessoa do plural. “Nós não deveríamos estar atacando o Iraque”, por exemplo. No Brasil, diríamos o governo não deveria estar atacando o Iraque. Essa identificação é impositiva. Tanto que numa manifestação contra a guerra em Washington, uma faixa dizia “O que nosso petróleo está fazendo sob a areia deles?”
“Um outro narratema: a irrelevância da História e a ilegitimidade de citar antecedentes delicados, tais como o apoio norte-americano a Saddam Hussein e Osama bin Laden, ou o fato de que a guerra do Vietnã (raramente mencionada) e a forma particularmente devastadora que a acompanhou foi “ruim” para os Estados Unidos.”
Entre os “antecedentes delicados” ignorados, Saïd chama a atenção para a escravidão negra e o massacre dos povos indígenas.
“Terceiro exemplo: a convicção cega de que qualquer tipo de oposição à nossa política é ‘ ‘antiamericana’ e baseada na inveja. Invejam a “nossa” democracia (liberdade, riqueza, poder…)”.
A este exemplo podemos adicionar o mais recente: pessoas sendo presas por usarem camisetas pela paz.
Finalmente, o autor cita:
“…o narratema da sabedoria moral que encarnariam, de facto, figuras com autoridade oficial (como Henry Kissinger ou David Rockefeller, mas também todos os responsáveis pelo atual governo), repetido de forma constante e sem grandes mudanças. A recente nomeação, para cargos de importância, de duas pessoas condenadas pela Justiça por ocasião do escândalo de Watergate, nos tempos de Nixon (Elliott Abrams e John Poindexter), suscita poucos comentários, muito menos críticas.”
A partir daí, o autor passa a discutir os “componentes da resistência à guerra” na sociedade estadunidense. Observa que desde a 2a Guerra, não há nada que se possa chamar de esquerda socialista no sentido que ela assume em outros países. A fragilidade da esquerda socialista norte-americana é obviamente óbvia. As razões para isso não podem ser devidas apenas à repressão que se abate sobre quaisquer alternativas socialistas em conjunturas como o macarthismo do pós-guerra, a era Reagan e o momento atual.
O fato de que a Revolução Americana tenha ocorrido antes da Revolução Francesa pode ter deixado a idéia de que os pais da independência dos Estados Unidos também são os responsáveis pelos desdobramentos posteriores passando pela França revolucionária e outras revoluções. Washington, Jefferson, Payne seriam os pioneiros da liberdade e, como tais, deixaram para seus filhos o segredo da democracia plena. Diante disso, para que falar em socialismo? A América, terra de todas as oportunidades, estaria além do socialismo. Um cenário certamente difícil para a propaganda comunista.
Há outros elementos no artigo, mas esses já nos bastam para alertar sobre a necessidade de entender o Império. Principalmente, porque cada um desses aspectos chega a nós de forma adaptada a nossa realidade. É cada vez mais flagrante a imposição de costumes, hábitos, crenças e convicções estadunidenses entre nós.
Por exemplo, no filme Gilda, cuja história se passa na Argentina, a personagem de Rita Hayworth diz a um argentino que se casou na América. O argentino responde “mas aqui é a América”. Há muito tempo, nos referimos aos estadunidenses como “americanos”. Há aí três implicações. Uma, a de que os legítimos americanos são eles. A segunda, a de que, cedo ou tarde, todos seremos americanos sob ordens daqueles do norte. A terceira implicação é o próprio uso que fiz de um filme “americano” para abordar essa questão. Assumimos tão completamente esse estado de coisas que até os que queremos ser críticos usamos as referências deles.
Mas não será abandonando tais referências que mudaremos a situação. Afinal, trata-se de dominação hegemônica, em que os elementos culturais são centrais. E contra tais elementos não adiantam apenas discursos. Espero que o artigo de Saïd incentive a que façamos esse esforço.
Março de 2003