A escritora Lya Luft dedicou sua coluna na revista Veja, essa semana, para fazer um inventário de suas indignações. Intitulada “Descendo a lomba”, ela coloca no mesmo saco de “temas assustadores”, o caso da morte de um casal de jovens namorados em São Paulo, o da “jovem facínora da classe média paulistana, que com dois cúmplices trucidou os pais, uma “cartilha do MST usada por certas escolas elementares” que estaria “preparando novas gerações de contraventores” e “ilegalidades promovidas pelo governo (federal)”. Ao falar sobre os sem-terra, ela escreveu: “Outro dia foram dar seu apoio a um candidato a presidente. Disseram, entre outras coisas: ‘não queremos a volta da burguesia ao poder’. Gente, estamos em pleno século XXI! Enquanto isso, fazendas produtivas continuam tomadas ou cercadas por bandos ameaçadores, sustentados com nosso dinheiro”, bradou, indignada.
O que significa exatamente essa expressão “gente, estamos em pleno século XXI!”, no contexto citado? Há um sentido óbvio que associa a luta e o discurso dos sem-terra a algo atrasado e anacrônico. O “estar em pleno século XXI” significa estar num estágio da modernidade que não deveria mais conviver com tais anacronismos. No contexto do artigo em questão, afirmar que “fazendas produtivas continuam tomadas ou cercadas por bandos ameaçadores, sustentados com nosso dinheiro” significa dizer que os sem-terra são um bando de malfeitores que devem ser colocados na mesma categoria do “monstro que estuprou muitas vezes, retalhou e matou uma menina de 16 anos” e da “jovem facínora da classe média paulistana” que ajudou a matar os pais. E significa ainda, como a escritora faz explicitamente, associar todos esses fatos ao atual governo federal, à frouxidão das instituições e à “degringolada” geral da nação.
“Pessoas de cor e catiúchas”
A lista de indignações de Lya Luft não pára por aí. Ela manifesta espanto pelo fato de João Pedro Stédile ter sido convidado a dar uma palestra na Escola Superior de Guerra: “Um dos líderes máximos desses grupos – que desvirtuam a verdadeira figura do colono, do trabalhador no campo – recentemente foi convidado a dar (e deu!) uma palestra na Escola Superior de Guerra; não escrevo ‘pasmem’, pois a esta altura nada mais nos assombra”. Critica as cotas para “pessoas de cor” nas universidades: “As cotas para pessoas de cor entrarem em universidades, independentemente de sua capacidade, vão resolver a tragédia da educação brasileira, e o insensato estímulo ao racismo não parece importar”. “Mas consolemo-nos”, acrescenta, irônica: “a também confusa guerra está distante, podemos continuar alegrinhos, sem ‘catiúchas’ caindo em nossa alienada cabeça. Os roncos e estrondos lá fora, de madrugada, são apenas os rachas na minha rua”.
E fala, é claro, dos mensaleiros e dos políticos sanguessugas, que representariam a expressão política de todo esse cenário. “A frouxidão das instituições neste momento, os interesses políticos em época eleitoral e o exemplo da inaceitável absolvição dos mensaleiros não nos permitem grandes ilusões. Para começar, os sanguessugas não serão julgados tão cedo. Podem até continuar candidatos a cargos eletivos: a maioria deles realmente é. Se eleitos, terão imunidade. O que pensar de tudo isso?” – pergunta. Lya Luft diz que não consegue entender “como chegamos a tamanha decadência” e manifesta um desejo de sumir. “Começo a ter vontade de sumir – se não do Brasil, ao menos de aspectos de sua realidade que o insultam e o mancham. Como chegamos a tamanha decadência, não sei explicar. Ninguém me dá uma explicação satisfatória”. O que a escritora não parece perceber é que essa explicação aparece em seu próprio artigo.
“Sumir de aspectos da realidade”
Ela escreve que tem vontade de “sumir de aspectos da realidade que insultam e mancham” o Brasil. Seu artigo indica que já fez essa operação, típica de uma consciência alienada, ultra-conservadora e preconceituosa, que associa lutas sociais (com todas as contradições que elas envolvem) a atos de criminosos e facínoras, que iguala lideranças dessas lutas a criminosos, que se refere à população negra como “pessoas de cor”, e que fala da guerra no Líbano apenas dando graças a Deus pelo fato de que os “katiuchas” – foguetes usados pelo Hezbollah contra Israel – não estão caindo “em nossa alienada cabeça”. O fato de não ter feito menção aos imensamente mais poderosos “katiuchas” de Israel que estão caindo sobre a cabeça de homens, mulheres e crianças no Líbano é mais uma evidência de que ela já “sumiu de aspectos da realidade”. O fato de sua indignação seletiva deixar de lado alguns “aspectos da realidade” é uma explicitação dessa operação.
“Ninguém me dá uma explicação satisfatória” de “como chegamos a tamanha decadência”, escreve ainda. Bem, o fato de usar a expressão “gente, estamos em pleno século XXI” para qualificar certas práticas e discursos como anacrônicas desautoriza essa incompreensão em um duplo e ambíguo sentido. Desautoriza, em primeiro lugar, porque se atingimos um certo “grau evolutivo superior” incompatível com manifestações inferiores de um período anterior, essa superioridade acabará por prevalecer e não há, portanto, motivo para alarme e espanto. Os problemas serão equacionados pois “estamos em pleno século XXI”. E desautoriza, em segundo lugar, num sentido diferente deste, pelo fato de que, se chegamos ao século XXI com todos esses problemas, que causam tanta indignação (seletiva), talvez esse século não seja a expressão exatamente de um ápice da modernidade que seria incompatível com certas manifestações, como o discurso dos sem-terra, por exemplo.
A lição de Pontecorvo
Gillo Pontecorvo, judeu, italiano e cineasta, contou, certa vez, que quando era um jovem tenista na Itália de Mussollini, era proibido discutir política. Um dia, Pontecorvo foi para Paris e lá conheceu Sartre. Entendeu o que era o fascismo e decidiu resistir. Pontecorvo dirigiu um dos primeiros filmes sobre campos de concentração na Segunda Guerra Mundial. Esse filme se chama “Kapo”, um filme que trata da vertente fascista na Alemanha, o nazismo. Após contribuir para a derrota dos fascistas na Itália, Pontecorvo conheceu Saadi Yacef, ex-preso político argelino que lutou pela independência de seu país contra o colonialismo especialmente cruel dos franceses. Pontecorvo produziu e dirigiu uma das maiores obras-primas da história do cinema, A Batalha de Argel. O testemunho da trajetória de Pontecorvo guarda ensinamentos importantes para completar o quadro da realidade que a escritora insiste em subtrair, querendo se proteger.
Que ensinamentos? Não foi o fascismo que nos ensinou nem nos revelou os horrores do holocausto. Não foi o fascismo que nos ensinou sobre os horrores das ditaduras que fazem presos políticos e tratam como criminosos aqueles que se opõem politicamente à ordem estabelecida. Pontecorvo nos ensinou a estender a mão e a dar voz e expressão contra o fascismo. Foi assim que ele entendeu que o fascismo precisa subtrair aspectos da realidade, entre eles a política (ou sobretu
do ela), para que judeus estejam em campos de concentração, para que árabes-muçulmanos tenham seus territórios ocupados, para que camponeses não tenham terra para trabalhar e para que nenhum deles tenha o direito nem a dignidade de ter direitos. O jovem e belo tenista italiano resolveu abrir os olhos para o maior número de aspectos da realidade que ele pôde captar, que seu espírito permitiu, que sua generosidade lhe concedeu, que sua consciência o obrigou. Talvez esteja aí um bom caminho para entendermos como se desce a lomba. Para não descer mais.
Marco Aurélio Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior (correio eletrônico: gamarra@hotmail.com)