Por Sérgio Domingues, abril de 2004

Ensaio sobre a Lucidez mostra a escura combinação entre a democracia vazia inventada pela burguesia e o poder da grande mídia para manter a dominação. Mas, tal como o título indica, vê brechas por onde pode passar a luz da resistência popular.

Ensaio sobre a Lucidez tem uma ligação direta com Ensaio sobre a Cegueira, também de Saramago, publicado em 1995. Direta e oposta. Afinal, lucidez vem do latim lucidi, que tem a ver com luz, brilho, clareza. O que seria falta de visão e pessimismo no primeiro Ensaio de Saramago, neste último é otimismo e horizontes que se abrem. 

A cegueira do neoliberalismo

Saramago chegou a dizer, quando lançou o Ensaio sobre a Cegueira, que o livro revelava que não somos bons. E que era preciso enfrentar isso. A história de uma epidemia que atacou uma cidade inteira e cegou sua população é claramente uma metáfora dos tempos duros do neoliberalismo reinante nos anos 90. A população cega entrega-se à mais completa barbárie, com o poder sendo exercido pelos mais fortes. As autoridades só sabem responder a isso isolando os atingidos e os largando à sua própria sorte. 

A pequena brecha de luz nessa escuridão é a presença da única mulher que não foi atingida pelo mal. Ela guia seus seis companheiros para a salvação e os poupa do final terrível que acaba atingindo os outros, antes de a epidemia ir-se embora tão inexplicavelmente como chegara. 

O livro sobre a lucidez tem um tom otimista. Não, de um otimismo fácil, que num autor como Saramago, pareceria deslocado. É como se o século que se inicia desse ao autor de 81 anos novas esperanças, alimentadas pelo movimento anticapitalista na Europa e Estados Unidos e por vitórias eleitorais não muito ao gosto dos neoliberais. 

O livro começa abordando o ato de votar. Estamos em um certo dia de eleição para um certo parlamento em uma cidade imaginária. Mesários de uma junta eleitoral estão assustados com a possibilidade de haver enorme e inédita abstenção. Quase metade do dia já passou e os votantes são pouquíssimos. Mas, o espanto cede ao alivio quando os eleitores comparecem em massa no final do dia. 

A surpresa e o espanto ficam reservados para os resultados. Apenas 17% dos eleitores votaram em algum dos três partidos em disputa. Os outros 83% votaram em branco. Este sim um fenômeno inédito.

Direitos: há quem os mereça e quem não os mereça

As autoridades ficam em pânico. Dizem que a população não está sabendo usar seus direitos. Mais precisamente, dizem que “Se os votos estão aí é para que façamos um uso prudente deles”. “Os direitos não são abstrações (…), os direitos merecem ou não se merecem, e eles não o mereceram”. 

Palavras que lembram o raciocínio dos governos militares, popularizado por Pelé. O de que o povo brasileiro não sabe votar. Ou Kissinger, quando ajudou a derrubar Allende, no Chile: “Não vejo por que temos de ficar parados enquanto um país se torna comunista pela irresponsabilidade de seu povo”. 

Esta é a essência da democracia que a burguesia inventou. A de não ter essência. De ser oca, vazia. Para chegar ao poder pelo voto há que se passar por vários filtros. Depurar-se de sujeiras subversivas. Se isso não acontece, a população não soube merecer seus direitos. É golpe! Como em 1964, no Brasil e em 1973, no Chile. 

É assim que os poderosos fazem no livro. Reagem à votação estranha da população impondo um Estado de Sítio. E o autor faz um personagem notar que este é um Estado de Sítio muito particular. O inimigo não está fora, “é dentro que está”. É a vontade popular que se manifesta de um modo que os dominadores não podem administrar. Tanto é que abandonam a cidade. 

Repetição da Comuna?

Parece uma repetição da Comuna de Paris, em 1871. Só que em Paris, Thiers e seus canalhas abandonaram o povo para serem massacrados pelos exército da Prússia. Na cidade do voto em branco, as autoridades abandonam seus inimigos a eles mesmos. Duvidam da capacidade da população de sobreviver sem governo. Ainda mais, se tratando da capital do país. É o presidente e seus ministros que saem dizendo “não tereis aqui um governo para vos impor o que deveis e o que não deveis fazer (…), mas também sereis obrigados (…) a tomar chefes que vos governem, se é que não serão eles a irromper bestialmente do caos inevitável.” Esta é a aposta deles. 

No entanto, como a burguesia sempre faz, não vai ficar de braços cruzados esperando o caos. Um empurrãozinho é sempre bom. O problema é que a população não reagiu agressivamente à saída das autoridades. Até lhes mostraram a porta da saída, mas sem agressões ou empurrões. Então, não havia como atacá-la com tanques, cassetetes, gás lacrimogêneo. Pelo menos, por enquanto. 

Bombardear a cidade… com papéis

Bombardear a cidade, sim, disseram os governantes fujões. Mas com papéis. Papéis, imagens, sons, da grande mídia. Colocam em ação a tevê, o rádio, os jornais. Todos gritam contra a insensatez popular. Olha o que fizeram! Foram votar em branco e fomos todos abandonados pelo poder constituído. Bando de ignorantes mal agradecidos, subversivos! 

Por outro lado, tramam provocações. Explodem uma bomba numa estação de metrô para culpar possíveis organizações clandestinas. A bomba lhes cai no colo. A população se une ainda mais. Sabe que a provocação veio de fora. Dos que abandonaram a cidade. Mesmo quando toda a mídia insinua o contrário. 

Enfim, as autoridades auto-exiladas resolvem romper o silêncio sobre a cegueira que havia atacado a população da cidade quatro anos antes. Pois se trata da mesma cidade que foi palco do Ensaio sobre a Cegueira.  Até então, havia um pacto de silêncio sobre os terríveis acontecimentos. “Senhor presidente, diz o primeiro ministro, substituamos o silêncio pela palavra”. A palavra no caso é, de novo, o uso dos meios de comunicação. Usar imagens para mostrar que a cegueira de quatro anos atrás voltara. Agora, na forma de votos em branco. 

Mas nada parece funcionar. Ao contrário, espiões infiltrados relatam a tranqüilidade de uma cidade sem autoridades, sem polícia. Onde a jornada de trabalho só toma metade do dia. De novo, parece um novo ensaio da Comuna, do Quilombo, Canudos, Contestado. Da liberdade entre iguais. 

Ataque e defesa através da mídia

Os espiões mencionados acima foram enviados para investigar a denúncia de uma carta enviada ao presidente e seus ministros. A ca

rta era de um dos que foram salvos pela mulher que não cegou na trama do Ensaio sobre a Cegueira. Além de guiá-los em segurança, ela havia matado o chefe de um bando que exigia fazer sexo com as mulheres do grupo em troca do fornecimento de alimentos. 

A carta dera ao governo uma arma para provar que havia um complô pelo voto em branco. Algo que autorizasse uma feroz repressão. Atribuiriam à mulher que não cegou a liderança do movimento. E foi o que fizeram. De novo, utilizando os jornais e os meios de comunicação de massa, denunciaram o duplo crime da mulher. O do assassinato e o da subversão. 

O interessante é que a reação também vem através da mídia. Um dos espiões abandona a missão. Está convencido da inocência da mulher e da espontaneidade das iniciativas da população local. Convence um dos jornais locais a correr o risco de publicar uma versão diferente da oficial. 

A estratégia dá certo. O jornal é apreendido, mas a população se encarrega de reproduzir milhares de cópias do artigo e distribuir de mão em mão. A essa altura, quem ainda não leu o livro, talvez já espere por um final feliz. Mas se o desfecho é feliz ou não, é uma discussão que não faremos aqui para não estragar a surpresa de quem não leu. 

A tentação fácil da omissão eleitoral

Destaquemos a abordagem que Saramago faz de dois fenômenos recentes. A desilusão com os mecanismos eleitorais para mudar a vida e o poder da grande mídia. Em relação ao primeiro fenômeno, é simbólico o fato de que a população da cidade imaginária de Saramago não se manifestou contra o vazio da democracia burguesa através da pura e simples abstenção eleitoral. Ela o fez pelo voto branco. Como a dizer que o voto direto e universal é uma conquista. Mas está carecendo de conteúdo. De poder real.

É preciso preencher essa democracia que os poderosos inventaram para si com o recheio das lutas dos que não têm o poder, mas brigam palmo a palmo por mais democracia. Pois, foram estes que impuseram o voto direto e para todos. Como nos ensina a história, se dependesse da vontade dos de cima, até hoje somente votariam os que tivessem rendas elevadas, o sexo e a cor de pele considerados corretos. Resta fazer com que de democracia para a burguesia a transformemos em democracia para todos. É uma recusa à tentação fácil de negar ao direito de votar seu caráter de conquista. 

Por outro lado, a reação dos governantes mostra que não hesitam em lançar mão do desrespeito às regras democráticas e do uso da violência para se manter no poder. E já que a situação concreta na cidade inventada por Saramago não permite a repressão pura e simples, a violência vem na forma mais sutil do poder de uso e abuso da informação pelos grandes meios de comunicação. Uma combinação cada vez mais comum. Democracia oca e mídia poderosa juntam-se na manutenção da ordem. 

Ao mesmo tempo, o tom otimista do livro está no fato de que essa escura combinação tem brechas. É por elas que passa a luz da resistência popular. O fato de que a resistência popular tenha se dada de forma pacífica não é necessariamente a defesa do caminho ingênuo do pacifismo. As soluções violentas da classe dominante não tardam a aparecer, mostrando que, neste caso, o voto em branco representa um nível de consciência. Mas, esse nível de consciência tem que ser ultrapassado em algum momento. Quando isso não acontece, permanece apenas como um lampejo de resistência. Algo tão comum na história da luta pelo socialismo. Mas são desses lampejos que vivemos. São lucidezes.