[Por Rasheed Abou-Alsamh] No imaginário brasileiro, árabes são todos ricos, sultões, donos de imensas riquezas petrolíferas. Mas são também trapaceiros, gananciosos e capazes de até vender a própria mãe. Apesar de os primeiros muçulmanos terem chegado ao Brasil mais de 180 anos atrás, entre os escravos trazidos da África, e os pioneiros imigrantes árabes terem vindo há mais de cem anos, ainda há ideias distorcidas na mente de brasileiros do que é ser árabe ou muçulmano.
O imaginário brasileiro, árabes do Golfo são todos ricos, sultões, donos de imensas riquezas petrolíferas. Mas são também trapaceiros, gananciosos e capazes de até vender a própria mãe. Esse estereótipo deve vir de quando os primeiros imigrantes árabes chegaram aqui e trabalhavam como mascastes, vendendo mercadorias de porta em porta. Erroneamente eram chamados de “turcos” por causa dos passaportes otomanos que usavam para entrar no país. E como a maioria dos imigrantes árabes para o Brasil foi de cristãos, e não muçulmanos, sua assimilação à cultura local foi mais rápida e fácil. De fato, encontro muitos brasileiros de ascendência árabe, mas que não falam a língua, sequer foram ao Oriente Médio, tendo apenas a comida árabe, bem como o sobrenome, como ligação com seus antepassados.
O estereótipo do muçulmano talvez seja pior no imaginário brasileiro, depois de séculos de lavagem cerebral pela Igreja católica, remetendo aos tempos das cruzadas em que os reis “valentes” e cristãos da Europa iam para Jerusalém batalhar pela alma cristã contra os reis muçulmanos. Para alguns brasileiros, ser muçulmano parece ser pior de que ser satanista ou ateu, tal é a propaganda difamatória contra a religião e seus seguidores, e a falta de vontade dessas pessoas de se informar sobre a religião de mais de um bilhão dos habitantes deste planeta. Nesta visão distorcida, muçulmanos são retrógrados, machistas, violentos e terroristas.
As novelas brasileiras então entre os maiores culpados, por mostrarem árabes e muçulmanos como personagens de desenhos animados, de tão exagerados e carnavalescos no jeito como são construídos e interpretados. A novela “Alto astral”, que a Rede Globo acabou de apresentar, é um exemplo. No drama, a personagem Samantha Paranormal é convidada pelo rei Mohammed a conhecer o fictício reino do Golfo de Maktub (que quer dizer “escrito”, em árabe). Lá, ele tem um imenso harém, ao qual quer adicionar Samantha. Ela, apesar de se apaixonar pelo rei, foge do reino, volta ao Brasil e envia forças internacionais para invadir e libertar as mulheres do harém. No final da novela, o rei vem para o Brasil e, vestindo roupas que mais parecem de um um marajá indiano do que de um rei árabe, se casa com Samantha e constrói um palácio para eles no centro do Ibirapuera! Uma cena musical de Samantha dançando no palácio novo com o rei e seu amigo Pepito é tirada diretamente de um blockbuster de Bollywood, com turbantes e tudo. Nada a ver com o mundo árabe.
E é esse o problema com muitos autores brasileiros. Para eles o Oriente Médio do mundo árabe é o mesmo do subcontinente indiano, e da Turquia. São todos orientalismos que esses autores usam e abusam, misturando os três à vontade, e fazendo de tudo isso uma gororoba cultural que nos faz estremecer de tão horrível e errado.
Semana passada, um amigo sírio que mora em São Paulo me mostrou uma matéria publicada num site satírico brasileiro sobre um suposto bilionário saudita que queria se casar com sete brasileiras ao mesmo tempo, e ia pagar US$ 100 milhões para cada uma. Na lista de exigências do bilionário estava que as mulheres tinham que se aceitar umas às outras, não ser interesseiras, se casar por amor (por US$ 100 milhões, quem não ia ser interesseira?) e ter entre 18 e 45 anos. Uma foto muito mal montada no Photoshop, supostamente do sujeito, acompanhava o artigo. Apesar de ser uma óbvia piada de mau gosto, o artigo foi compartilhado 240 mil vezes no Facebook, e muitas mulheres brasileiras acreditaram na matéria. Se os brasileiros soubessem mais do Islã, iam saber que um muçulmano pode se casar com no máximo quatro mulheres ao mesmo tempo, e não sete, como na matéria. E, como meu pai me dizia, um muçulmano só pode fazer isso se tratar cada esposa exatamente do mesmo jeito, comprando as mesmas coisas para cada uma, e passando o mesmo tempo com cada uma. O conceito da poligamia no Islã tem origem no fato de muitas mulheres terem ficado viúvas como consequência de guerras na Península Arábica. Como decorrência, não havia homens em quantidade suficiente para se casar com cada uma delas.
Finalmente, quando o assessor da embaixada do Omã em Brasília Marcelo Bulhões dos Santos foi detido pela Polícia Federal no dia 24 de abril, por suspeita de falsificação de documentos, a mídia brasileira tratou-o com total desrespeito. Em vez de focar no fato de ele ser um advogado, destacaram a particularidade de ele ser muçulmano. Usou-se isso para especular que o assessor teria possíveis ligações com terroristas, versão que a PF desmentiu. Apesar disso, a “Veja” especulou que Bulhões estaria na mira da Justiça por suspeita de cumplicidade com terroristas e ter se convertido ao Islã. Isso sem citar qualquer fonte ou mostrar qualquer prova. No intuito de pintar o advogado de simpatizante de “terroristas”, “Veja” citou uma declaração dele na sua página do Facebook favorável ao grupo palestino Hamas. Todo mundo sabe que “Veja” é antipalestina; por conseguinte, tal crítica não é válida e certamente não é prova de que Bulhões esteja envolvido com grupos duvidosos.
Pior foram os sites na internet, que botaram a religião de Bulhões nas suas manchetes, como fez um deles: “Muçulmano investigado por terrorismo trabalhou com Dilma.” Antes de tudo ele é um ser humano, depois ele é um brasileiro. Não vejo como a religião faz alguma diferença no episódio de sua detenção. Isso é pura discriminação contra muçulmanos, uma generalização segundo a qual todos são terroristas por causa dos atos da al-Qaeda e do Estado Islâmico. Já imaginou se um jornal brasileiro publicasse uma manchete assim: “Judeu investigado por terrorismo”? Seria interpretada como uma grande calúnia contra judeus, e como racista.
Grupos de árabes e muçulmanos no Brasil têm que se organizar para lutar contra essas formas de discriminação e estereótipos que se reproduzem na sociedade brasileira. Cabe a nós fazer o público brasileiro nos respeitar e conhecer melhor nossa cultura, história e religião, milenares e tão ricas.
*Rasheed Abou-Alsamh é jornalista