É carnaval, tempo de se contar estórias. Quase todas as culturas acreditam num céu. Mas não se chega lá de qualquer jeito. Há sempre um processo de purificação e uma travessia perigosa. Em várias tribos amazônicas se crê que os mortos renascem como borboletas, umas mais escuras e pesadas pois as pessoas têm mais coisas a pagar, outras mais claras e leves pois estão quase purificadas. Elas voam de flor em flor sugando néctar para se fortalecerem para a travessia.
Estando eu, certa feita, por aquelas paragens amazônicas um cacique me contou o seguinte mito que é uma estória verdadeira porque fala de uma verdade real: Uma jovem índia, esbelta e bela, de nome Coaciaba, acabara de perder o marido, valente guerreiro, morto por flecha inimiga. Com a filhinha Guanambi passeava triste pelas margens do rio, observando as borboletas, ciente de que em alguma delas estava seu querido marido. Mas a saudade era tanta que acabou morrendo. Guanambi, a filhinha, ficou totalmente sozinha. Inconsolável, chorava muito, especialmente, nas horas em que sua mãe costumava levá-la para passear. Todos os dias visitava o túmulo da mãe. Não queria mais viver. Pedia aos bons espíritos que viessem buscá-la e a levassem para onde estivesse sua mãe. De tanta tristeza, foi definhando até que morreu também. Todos na tribo ficaram muito penalizados.
Como queria ficar junto da mãe, os espíritos não deixaram que virasse borboleta mas que ficasse dentro de uma flor lilás, pertinho do túmulo da mãe. A mãe renascera numa bela e suave borboleta. Esvoaçava por ai, de flor em flor, acumulando néctar para a grande travessia rumo ao céu.
Certo dia ao entardecer, borboletando de flor em flor, acabou pousando sobre linda flor lilás. Ao sugar o néctar, ouviu um chorinho triste. Seu coração estremeceu. Reconheceu dentro da flor a vozinha da filha querida. Como poderia estar aprisionada ali dentro? Refez-se da emoção e sussurrou: “Filhinha querida, mamãe está aqui com você. Fique tranquila. Vou libertá-la para voarmos juntas ao céu.”
Mas como abrir as pétalas se ela era uma borboleta levíssima? Recolheu-se numa folha e suplicou entre lágrimas:”Espíritos benfazejos e queridos anciãos, eu vos imploro: por amor ao meu marido, valente guerreiro que morreu lutando pelos parentes, por compaixão de minha filhinha, transformem-me num passarinho veloz, dotado de um bico ponteagudo para romper a flor lilás e libertar minha querida filhinha Guanambi“.
Tanta foi a compaxão despertada, que o Espírito criador e os anciãos atenderam sem delongas a sua súplica. Transformaram-na num agilíssimo beija-flor que imediatamente pairou por sobre a flor lilás. Com voz carregada de enternecimento sussurrou:”Filhinha, sou eu, sua mãe. Não se assuste. Fui transformada num beija-flor para libertá-la”.
Com o bico ponteagudo, foi tirando com sumo cuidado, pétala por pétala, até liberar o coração da flor. Lá estava a filhinha sorridente, estendendo os bracinhos em direção da mãe. Abraçadas e levíssimas, voaram alto, cada vez mais alto até chegarem juntas ao céu.
Desde então, na tribo, sempre que morre uma criança órfã, seu corpinho é coberto de flores lilás, como se estivesse dentro de uma grande flor, na certeza de que a mãe, na forma de beija-flor, virá libertá-la e levá-la para o ceu.
Leonardo Boff é Teólogo.