(Stela Guedes Caputo entrevista Gisele Gomes Souza)

 

O nome verdadeiro é Gisele Gomes Souza. Giza, Gi, eram apelidos de família e “Neguinha”, o termo preconceituoso pelo qual era chamada desde pequena, principalmente na escola. Também assim era identificada quando vendia refrigerantes nas ruas para ajudar a família composta de pai, mãe e quatro filhos, a sobreviver. A família diminuiu de forma trágica. Há alguns anos, o irmão “Neném”, viciado em drogas e envolvido com o tráfico, foi morto pela polícia. Desde criança, Giza já fazia poesias “das coisas que sentia”, como ela diz. Mais tarde essas “coisas que sentia” viraram veementes críticas sociais. “Eu já era ideológica desde pequena e não sabia”.  Para superar a morte do irmão, ela mergulhou fundo na arte. Assim nasceu Nega Giza que, aos 26 anos, é a rapper mais famosa do Brasil. “Misturei o apelido de casa e o nome que ganhei na rua. O “neguinha” virou “nega”, inverto o preconceito e afirmo minha identidade”, diz ela. Nega Giza também é diretora da Central Única de Favelas (CUFA), uma entidade que organiza as reivindicações dos moradores e promove várias atividades sociais e culturais em diversas comunidades no Rio. “Não posso evitar, a luta política construiu meu nome, minha arte, tudo o que sou e ainda serei”, afirma.

Surgente – Gostaria que você falasse um pouco da sua infância.

Nega Giza – Nasci em Brás de Pina e vim para Anchieta aos 13 anos. Minha mãe trabalhava em supermercado, era doméstica e costureira. Quando nasci, meu pai ficou em casa só por dois anos e foi embora.  Fui criada pela minha mãe e meus irmãos, era a única menina.

Surgente – Com quantos anos você começou a trabalhar e o que você fazia?

Nega Giza – Comecei muito nova. Meus irmãos vendiam refrigerante na rua ou em festas para ajudar minha mãe.  Com 7anos eu ia junto para tomar conta do isopor. Mas isso não era o que eu queria.

Surgente – E o quê você queria?

Nega Giza – Queria fazer rádio comunitária.

Surgente – Desde pequena? Por que?

Nega Giza – Eu era uma menina que não interagia muito com as outras crianças, eu era muito na minha. Por isso, desde muito nova, a forma que encontrei para expressar o que eu imaginava, sentia e pensava era escrevendo.

Surgente – E já escrevia letra para música?

Nega Giza – Não, não era nada musical ainda. Eram poemas, mas por incrível que pareça, não eram poemas de amor. Eu gostava de ler jornal e colecionava o jornal “O Povo”. Minha brincadeira era contar os mortos da semana. Fazia minha estatística de crimes. Recortava outras notícias que também me interessavam.  Não era uma coisa séria, com consciência, era brincadeira. Quando fui visitar um tio meu, no Espírito Santo, vi que ele fazia coleção de um jornal tipo “O Povo”, só que mais amplo, com notícias internacionais até. Aí fiz um monte de resumos do jornal dele e claro, trouxe muitos desses para comparar com os resumos que eu fazia de “O Povo”. Meus primeiros poemas nasceram desses assuntos, eram inspirados pelas notícias dos jornais.

Surgente – A tendência não seria você querer trabalhar em jornal? Como a rádio entrou nessa história?

Nega Giza – Sempre que eu esperava o ônibus na praça, em Ricardo, eu ouvia a rádio Transanova, uma verdadeira rádio comunitária porque era de poste mesmo, uma caixinha de alto-falante que ficava na praça de Ricardo De Albuquerque e podia ser ouvida só nas ruas próximas à praça. O locutor tinha essa voz de locutor bem AM, bem antiga. Ele falava comerciais e notícias de utilidade pública. Eu prestava muita atenção e pensei que seu eu ficava tão atenta, outras pessoas também deveriam ficar. Em casa eu ouvia rádio e percebia o poder da rádio.  Além disso, eu entendia melhor e comentava com mais facilidade as notícias de rádio. Nos jornais e nas TVs, os textos são mais complicados, precisam ser traduzidos. A linguagem da rádio é mais simples. Eu lia os jornais com dicionário do lado. Com a rádio isso não era necessário. Então pensei mais uma vez que outras pessoas deveriam sentir a mesma coisa. Passei então a descomplicar as notícias dos jornais e comecei a comecei a reescrever os textos criando um texto diferente.

Surgente – E qual foi sua primeira experiência em rádio?

Nega Giza – Comecei aos 13 anos, nessa mesma Transanova Ricardo. Fui lá e pedi para o dono para eu fazer um programa de notícias.  Ele falou que minha voz era bonita, que e eu podia ser locutora só que eu precisava fazer uns testes. Então ele me deu um monte de anúncios para ler e um monte de papel com frases de utilidade pública tipo: “atenção pedestre, você que está aí na calçada, utilize a passarela!”, acho que essa foi a minha primeira locução. No dia seguinte eu voltei e, de novo, ele mandou eu ler comerciais. Foi quando eu pedi para ele deixar eu falar os textos que eu tinha escrito. Insisti tanto que ele deixou. Ele não ligava para nada do que eu escrevia, mas acabou deixando eu entrar na programação dele, tocar a música que eu quisesse e ler as notícias que eu reescrevia. Lá estava a minha voz na caixinha do poste divulgando as estatísticas de mortes, problemas sociais, as questões das comunidades, violência em bailes funks e notícias sobre os governos. Fiquei lá dois anos.

Surgente – A repercussão foi boa?

Nega Giza – Foi muito boa.  As pessoas da praça me paravam para dizer que entendiam as notícias e que eu lia. Diziam que eu tinha futuro como locutora e que eu seria como a Glória Maria. “Amanhã você vai estar na Globo”, as pessoas falavam.

Surgente – E você queria ser como a Glória Maria e trabalhar na Globo?

Nega Giza – Eu não pensava nisso, não pensava nem em questões técnicas, só queria ler as notícias que eu achava importante, de um jeito que desse para todo mundo entender, mas fui tentando melhorar nessa história de locução. Comecei a trabalhar em outras rádios que eram de poste, mas que se transformaram em comunitárias FM. Ganhava uma pequeníssima ajuda de custo, mas nada de salário.

Surgente –  Como foi seu encontro com o rap?

Nega Giza – Numa dessas rádios, a “Novo Horizonte”, havia um programa de rap nos fins-de-semana e me chamaram para trabalhar nele. Eu não conhecia rap nem a cultura hip-hop.  Quando ouvi as músicas percebi que elas falavam exatamente as coisas que eu escrevia. Tudo mudou dentro de mim, senti um alívio imenso e, ao mesmo tempo uma confusão enorme. Começou uma agonia e foi quando me achei. A minha história de vida estava ali e passei a procurar contatos e a me informar mais sobre o rap. Fui para eventos nas comunidades organizados pelo movimento negro. Através do rap tudo fez sentido e passei a entender minha história, os problemas sociais, minha condição de mulher  e negra. Entendi que a injustiça, a violência, a desigualdade que diariamente eu via nas ruas e recortava dos jornais não eram naturais, eram produzidas historicamente. Entendi finalmente o racismo. Vi também que havia uma música que podia expor tudo isso.

Surgente – O que fez sentido para você como mulher e negra?

Nega Giza – Cresci num ambiente familiar que não era exemplo para ninguém. Minha avó largou meu avô, fugiu com um homem para o Rio e minha mãe teve de cuidar de todos os irmãos sozinha. Ela era espancada pelo pai todos os dias e veio morar no Rio com minha avó. Com 18 anos ela casou para fugir do padrasto. Ficou casada com meu pai por 23 anos, teve seis filhos, não tinha formação, meu pai era viciado. Minha mãe reproduzia o ciclo infeliz a que estavam condenadas muitas mulheres da minha família.

Surgente – Você pensava em romper esse ciclo?

Nega Giza – Pensava muito. Tinha medo de casar, de ter filhos, de montar família.  Achava que ia acontecer a mesma coisa e que seria infeliz como a minha mãe.  Com o rap me posicionei e vi que não precisava ter mais medo. Com consciência e informação eu poderia romper esse ciclo.

Surgente – Mas você casou e seu marido não é artista nem militante. Como você concilia tudo?

Nega Giza – Casei e tenho uma filha de um ano e dois meses, chamada Mizraim Sabtá (significa rainha dos céus e está ligado à descendência de Noé). Meu marido não é artista nem militante, mas ele sabe que eu sou e que a prioridade é meu trabalho.  Sem ele não posso ser feliz e se eu não estiver feliz não posso ajudar minha filha para que também ela rompa o ciclo da opressão.

Surgente – Você já foi discriminada por ser negra?

Nega Giza – Desde pequena.  Na escola, minhas amigas diziam que eu não era negra porque eu tinha o cabelo macio e cacheado, diziam que eu era morena.  Eu olhava para minha pele e sabia que eu era negra. Tinha uma professora que eu gostava muito, a Sônia, professora de português. Ela também gostava muito de mim porque eu me destacava nas redações e gostava de ir lá para frente ler meus textos.  Eu sempre ganhava pontos, mas percebia que ela preferia que eu não fosse negra.  Nos fins de semana, ela chamava várias meninas para irem até sua casa lanchar e tomar banho de piscina e eu nunca era convidada. Isso gerava um constrangimento porque as meninas diziam que tinham ido lá. Eu ficava muito triste, mas não associava isso ao racismo. Hoje sei que era.

S – Quando você começou mesmo sua carreira de rapper?

Nega Giza – Eu montei uns grupos, comecei a escrever letras já rimando, mas não sabia quando gravaria.  Minha família sempre me deu muita força, meu irmão Neném principalmente. Eu gostava muito do MV Bill, adorava “Marquinhos Cabeção”, sua música de sucesso na época. O Bill vendia umas fitinhas dessa música e eu tocava muito ela na rádio. Meu irmão dizia que conhecia o Bill, que eram praticamente irmãos e que já havia falado de mim para ele, mas eu não acreditava.

S – Foi nessa época que seu irmão foi assassinado?

Nega Giza – Foi.  Ele era viciado e envolvido com o tráfico, mas nós não sabíamos. Foi preso e saiu da prisão mais viciado, revoltado e envolvido com o crime. Aí já não tinha mais controle nem como esconder.  O triste é que ele pedia muito para que nenhum de nós se envolvesse com essa vida. Pedia muito para eu continuar na minha luta. Quando ele morreu fiquei arrasada, perdida. Resolvi procurar o Bill e ele me disse mesmo que ele e o “Neném” eram como irmãos e que ele conhecia meu trabalho através do “Neném”. O Bill me acolheu e me recebeu como irmã. Não somos irmãos biológicos, mas somos irmãos de sonhos, de fé, de luta, de pensamento.

S – Graças a essa ajuda você conseguiu gravar, em 2002, seu CD “Nega Giza na humildade”?

Nega Giza – As pessoas diziam que eu era boa, mas eu encontrava todas as portas fechadas. O Bill me convidou para fazer parte da família dele e, claro, aceitei. Empolgadíssima comecei a cantar com ele.  Me envolvi com o trabalho dele que não era só musical, era ideológico. Viajava, rimava com ele várias músicas nos shows. Mas o Bill sabia que além daquele trabalho eu queria outras coisas e queria gravar um disco meu. Em 2002 gravamos pela Dumdum recorde, um selo meu e do Bill.

S – Nesse CD tem aquela música em que você fala de prostituição. Por que esse tema?

Nega Giza – Por acaso li um livro sobre o assunto. Na mesma época uma amiga de infância me disse que se prostituía para sustentar o filho de três. O problema não saiu mais da minha cabeça. Comecei a ler mais. Alguns autores condenavam a prostituição.  Outros exaltavam. Resolvi que para me posicionar eu não podia falar na terceira pessoa, eu tinha de falar como a própria prostituta. Comecei a me perguntar, sem julgar, por que algumas pessoas precisam vender seu corpo para viver.

S – E como ficou?

Nega Giza – Ficou assim: “Ontem vi um anúncio no jornal/ Vi na TV,no out-door e digital/ pediam mulheres com corpo escultural/para dar prazer a homens, mulheres e até casal/ mas na real o que eu quero é ser artista/dar autógrafo, entrevista e ser capa de revista/quero ser vista bem bonita na televisão/role de carro e não mais de camburão”. O refrão era: “Sou puta sim, vou vivendo do meu jeito/ prostituta atacante, vou driblando o preconceito”.

S – Como as mulheres reagem à sua música

Nega Giza – Muitas mulheres me procuram para dizer que passaram a ir mais nos shows porque estavam cansadas de ver só homens no palco se posicionando sobre assuntos que diziam respeito à elas mais especificamente. Os homens também aceitam.  Nos shows, vejo os caras cantando: “Sou puta sim!”.  Sobre essa música acho que elas entendem bem que eu exponho a questão para que todos pensem juntos sobre ela.

S – Os homens que cantam rap não foram te discriminaram?

Nega Giza – No começo sim, mas acho que eles também tinham ciúme e medo que eu representasse uma ameaça.

S – O disco vende muito? Já dá para ter alguma mudança financeira na sua vida?

Nega Giza – Depende. O disco é distribuído por um selo nosso que a gente mesmo distribui.  Isso tem um limite, mas nós somos donos, não estamos nas mãos de ninguém. Eu posso estar feliz mesmo sem o disco vender muito. Posso estar feliz porque hoje me expresso para muito mais pessoas, mas o disco vende bem sim e não só Rio de Janeiro, São Paulo, vende em vários estados.

S – Por que as rádios, incluindo as de MPB, não tocam rap?

Giza – Elas argumentam que algumas letras têm palavrão e que são longas. Mas sabemos que não tocam porque o rap é música de protesto, de compromisso.  Como é que eles vão tocar aquelas musiquinhas que falam que o Rio é maravilhoso e que a v

ida é bela o tempo inteiro e depois tocar nossas críticas. É mais fácil viver enganado.

S – Além de tudo o que você falou, poderia dizer alguma coisa para as mulheres nesse 8 de março?

Giza – O 8 de março é importante mas a luta não pode ser só de um dia.A luta é para a vida inteira. E nem todas precisam ser rappers para isso. Acho que a mulher deve se posicionar na sociedade, dentro de casa, em seu trabalho, qualquer que seja ele. A mulher é um ser especial. Se a mulher ficar dentro de casa alienada elas não vão conseguir se entender e não entenderão o mundo em que vivem. A mulher veio para fazer a revolução política. Acho que passo isso, de verdade, com meu trabalho.

Março de 2004