(Fausto A. Barreira Filho)
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No ano passado, foram exibidos no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, dentro da Mostra Cine Metropolitano, dois documentários australianos sobre os aborígenes, população nativa da Austrália. Como os fatos envolvendo os aborígenes na Austrália e os índios no Brasil guardam algumas semelhanças (e muitas diferenças), creio ser interessante que o público brasileiro tome conhecimento deles, por isso, comentarei os filmes.
O primeiro filme, “88.9 Radio Redfern”, com direção e roteiro de Sharon Bell e Geoff Burton, é de 1988, quando os “Gubbas” (australianos brancos) celebraram os 200 anos de imigração e os “Kookies” (australianos aborígenes) promoveram um ano de protestos e pesar. A celebração dos brancos era na realidade uma provocação, pois fizeram aportar uma réplica da nau dos colonizadores no mesmo lugar onde houve um massacre de aborígenes duzentos anos antes. A 88.9 Radio Redfern foi a primeira estação comunitária aborígene e esteve no centro das manifestações de protestos da população aborígene naquele ano. Com muita música australiana contemporânea, humor e descontração, a rádio tornou-se o pólo difusor do sentimento de solidariedade e de orgulho da própria cultura entre os aborígenes. Foram realizadas passeatas com dezenas de milhares de pessoas, naquele ano, e todo esse movimento impulsionou de maneira definitiva a luta pelos direitos civis dessa população.
O processo de espoliação da população aborígene na Austrália foi muito violento. Além de serem expulsos de suas terra pelos colonos brancos assentados no princípio de “terra nullis”, ou seja, terras sem dono, tiveram suas mulheres usadas como escravas sexuais dos brancos e até as décadas de 50 e 60 não eram considerados cidadãos australianos, não tendo direito a voto e não sendo nem recenseados. Os filhos dos aborígenes eram enviados para reformatórios do Estado onde eram induzidos a repudiar suas origens e cultura. Eles foram chamados por um ex-juiz da Suprema Corte da Austrália de “gerações roubadas” e em torno deles discute-se as formas de indenização do Estado australiano.
Aqui entra o segundo filme que comentarei. Chama-se “Urban Clan”, é de 1998 e tem direção de Michelle Mahrer. O filme enfoca os três irmãos Page – Stephen, David e Russel –, seu desenvolvimento de aborígenes urbanos em artistas até chegarem ao internacionalmente conhecido Bandarra Dance Theatre, em 1991. A essência da história dos três irmãos reflete um sonho aborígene dos três espíritos: um contador de histórias, um cantor e um bailarino, que através de sua arte criam pontes entre a cultura urbana e a cultura aborígene ancestral. (Obs.: o parágrafo acima foi copiado da programação do Cine Metropolitano. Eu não conseguiria fazer melhor.)
O Bandarra Dance Theatre ocupa um prédio majestoso no centro de Sydney e foi contruído pelo governo australiano dentro do espírito de promover reparações aos aborígenes pelos crimes passados e de procurar uma reconciliação.
Na década de 90, como resultado da mobilização dos aborígenes e dos esforços dos governos australianos, algumas leis acerca do problema da terra foram aprovadas, sendo que, em 1993, o “Native Title Act”, que revogava o conceito legal de “terra nullis”, abriu definitivamente o caminho para um acordo. Todos se lembram das Olimpíadas de 2000, em Sydney, que foram abertas por uma atleta aborígene, como símbolo da reconciliação. Governos de direita na Austrália nos últimos tempos tentaram barrar esse processo, inclusive revogando algumas leis que beneficiavam os aborígenes, causando muitos protestos, mas parece que ele já se tornou irreversível.
Pois bem, contrastando com tudo isso, no Brasil, durante as comemorações dos 500 anos do Descobrimento, além de uma caravela afundada, vimos a demolição pela Polícia Militar do estado da Bahia do monumento erguido pelos índios em memória das vítimas do genocídio e, também, a violenta repressão à marcha dos povos indígenas, juntamente com o MST e muitos outros movimentos populares, em direção a Porto Seguro, onde se encontrava o presidente Fernando Henrique Cardoso.
Outro exemplo do estado de bárbarie em que se encontram nossas elites políticas vem da notícia do jornal virtual “OficinaInforma” de 11/06/02 acerca do Projeto de Lei 1.610/96, de autoria do vice-líder do governo no Senado, Romero Jucá (PSDB-RR), que regulamenta a exploração mineral em terras indígenas. De acordo com o jornal, o deputado Romero Jucá é um antigo defensor dos interesses empresariais em seu Estado e incentivador de invasões de terras indígenas por garimpeiros. O jornal ainda vincula a apresentação do projeto à demissão sumária por parte do ministro da Justiça, Miguel Reale Júnior, do presidente da FUNAI, Glênio da Costa Alvarez, que seria contrário ao projeto, já que este ameaçaria inclusive os direitos constitucionais dos povos indígenas. Esse projeto deverá ser reapresentado neste ano.
Portanto, vemos que o governo FHC, justificando o título deste artigo, foi um desastre em termos de política indigenista. Esse fato reflete o alto grau de insensibilidade não só do governo passado mas também das elites que o conformaram. Creio que só com grandes mobilizações dos povos indígenas e da sociedade civil brasileira esse quadro poderá ser revertido.