Agnaldo Silva, autor de alguns dos maiores sucessos da TV no país, fala sobre a erotização das crianças e afirma: “A maneira como a heterossexualidade está sendo explorada no Brasil é muito perniciosa”. Por Fernanda Dannemann, da Revista CULT, abril de 2005
Depois da maratona de Senhora do Destino, exibida pela TV Globo e encerrada no último mês com recordes de audiência, Agnaldo Silva, 61, descansa de suas regulares 12 horas de trabalho diárias em Paris. Nesses dois meses de férias, no entanto, o novelista já vive o “desespero” de pensar e recolher elementos para uma nova trama, que só deverá ir ao ar nos próximos dois anos.
Jornalista por formação (ele foi um dos fundadores, nos anos 1970, do Lampião da Esquina, publicação voltada para o público homossexual – uma experiência que durou três anos e 37 números), Agnaldo Silva usa seu poder de observação nas histórias que escreve e conserva a visão crítica da sociedade para abordar temas polêmicos sem deixar de lado o ingrediente principal, o folhetim.
Antes da viagem de férias, em sua casa repleta de obras, na Barra da Tijuca, no Rio, ele recebeu a reportagem da CULT para uma conversa na qual falou – com o mesmo desembaraço com que escreve as histórias que povoam o imaginário de 45 milhões de brasileiros – sobre a TV, o Brasil, a sociedade e o estranho ofício do contador de histórias televisivas.
CULT – O que significa escrever para as classes populares num país com tantas desigualdades, mas numa emissora na qual a Baixada Fluminense se torna um lugar aprazível?
Agnaldo Silva – Significa não ser preconceituoso, falar sobre tudo, mas com linguagem popular. Veja, Shakespeare, que nos parece tão sofisticado, era popular! É dizer o profundo com simplicidade. É não achar que o povo é burro. Os intelectuais acham que o povo tem de ser orientado e ensinado. Eu acho que o povo não precisa disso.
CULT – Teledramaturgia é arte?
A. S. – Não. Arte é um produto individual, você faz, se manifesta. É um livro, uma peça, até um filme, embora eu tenha um pé atrás com o cinema. Novela não. Tanta gente mexeu ali… Ela é produto do trabalho de várias pessoas. Isso é arte?
CULT – As novelas conseguem cada vez mais audiência, e mesmo assim o gênero é acusado de esgotamento.
A. S. – Não é arrogância minha: Senhora do Destino mostrou que não. O que acontecia é que as novelas estavam burocráticas, apostava-se no óbvio. O povo acompanha pelo hábito, mas não se empolga. O que há é certa preguiça. No último dia de Senhora do Destino, recebi um e-mail de um jornalista do jornal Folha de S. Paulo me dizendo que toda a redação estava parada assistindo ao final. Acho que essa coisa de jornalista é um desdém programado, eles fingem que não vêem e não gostam porque não é de bom-tom gostar de novela. A classe A, formadora de opinião, acha que novela é uma coisa menor. Ela gosta de filme iraniano, que é insuportavelmente ruim, que está na moda, mas é um arremedo de cinema. Ah, cinema iraniano sim!
CULT – A discussão da abordagem da homossexualidade nas novelas tem gerado discursos opostos sobre ser isso saudável ou nocivo para as novas gerações. Como você se coloca nessa questão?
A. S. – É um absurdo esse negócio de mau exemplo para as crianças, porque mesmo que você tranque uma criança heterossexual num quarto por cem anos junto com um casal homossexual ela vai continuar com a preferência dela. O mau exemplo para as crianças, vemos muito mais em outras coisas. A maneira como a heterossexualidade está sendo explorada no Brasil atualmente é muito mais perniciosa. O desfile das escolas de samba, sim, é um mau exemplo para as crianças, porque as meninas vão querer botar silicone, ser “popozudas” e achar que desfilar com os peitos de fora durante 90 minutos, para o mundo inteiro ver, é legal à beça! Acredito que seja muito bom discutir esses temas, porque, de uma maneira ou de outra, eles são muito mais comuns do que a gente pensa. Todo mundo conhece meninas como aquelas, isso não é mais novidade para ninguém, a novidade está em tratar isso na novela sem preconceitos.
CULT – Mas, em geral, as mulheres homossexuais são retratadas com mais charme, são sempre belas atrizes, enquanto os gays masculinos são caricatos.
A. S. – É bobagem não abordar todos os aspectos da questão. Existem os homossexuais caricatos, e a verdade é que são muito mais comuns. Por que não falar deles? Houve uma entidade da Bahia que protestou contra isso numa novela minha. Respondi que a maioria dos homossexuais que conheço é efeminada. Não vamos falar disso por quê? E, para que não digam que todas as lésbicas das novelas são lindas, já resolvi que na minha próxima novela vai ter uma senhora de 60 anos, casada com um homem há 40, com netos, e que, de repente, descobre que sempre teve desejos homossexuais. O que é muito comum, aliás. E vou chamar a Eva Wilma para interpretar. Quero ver se alguém vai dizer que a Eva Wilma não é sensacional, entende?
CULT – Você acredita que o bombardeio de sexo na TV aberta pode, de alguma maneira, estimular a sexualidade precoce nas crianças? font>
A. S. – Não é só na TV aberta. No Brasil, houve um momento em que esse negócio de sexo exacerbou de tal maneira que as meninas de 12 anos agora são moças! Houve uma mudança hormonal qualquer nas meninas – não nos meninos, que continuam meninos até os 18 anos – e elas, aos dez anos, começam a virar mulheres. É uma coisa pavorosa, porque você vê crianças com um apelo sexual incrível! Está errado! Isso foi uma mudança cultural no Brasil dos anos 1980 para cá que ainda não foi devidamente estudada pelos antropólogos e sociólogos de plantão, que estão mais preocupados com a política do que com qualquer outra coisa e não percebem que isso também é política. É uma mudança sem volta. Você viaja e vê que fora do Brasil as meninas se vestem como meninas. No Brasil, elas se vestem – vou usar uma palavra forte – como piranhas. E os pais acham isso o máximo. Isso é pernicioso e tem que ver com a mídia, com a exploração da sexualidade brasileira, com essa conversa de que a mulher brasileira é sensual. A brasileira não é diferente de nenhuma outra mulher do mundo, mas a levaram a acreditar que ela é um vulcão de sensualidade, e agora a maioria se comporta como tal. Vi em várias ocasiões pais que incentivavam filhas de 7 anos a dançar na boquinha da garrafa! Essas coisas estão na TV, nas revistas, em todos os lugares! Aonde é que vamos parar? Foi por isso que botei aquela personagem adolescente grávida na novela, porque passei três vezes na frente de uma maternidade do Estado e vi que na fila das grávidas, onde havia umas 30 mulheres, pelo menos 20 eram adolescentes, e pelo menos duas não teriam mais que 11 anos. Todas lá, com o barrigão de fora, como se dissessem com orgulho “olha até onde me levou a minha sensualidade!”. É coisa que só acontece no Brasil.
CULT – Alcoolismo, corrupção política, gravidez na adolescência, preconceito… temas como esses têm sido freqüentes nas novelas. Elas deixaram de ser folhetins para se transformar em instrumentos de comentário social?
A. S. – Nessa novela, percebi a força do ‘produto’, dito com aspas mesmo. Eu precisava não só prender as pessoas por meio da trama, mas tinha de dizer alguma coisa. Claro que digo o que penso, né? Mas não deixa de ser folhetim. Não tenho a menor dúvida de que a novela só vai existir enquanto folhetim. O segredo está em colocar esses assuntos no folhetim. Até o merchandising tem de estar inserido na trama, senão não funciona. A linguagem é rígida, o autor não pode fugir dela. Se a questão social não estiver inserida na trama, as pessoas vão fugir da novela. O casal de meninas que queria adotar uma criança é uma trama de folhetim, embora não se trate de um casal convencional. Agora, se eu parar para falar que os homossexuais têm direito de adotar crianças e tal, o telespectador vai mudar de canal.
CULT – E você já pensa na próxima?
A. S. – Penso no desespero que é fazer novela, mas tenho de fazer outra… A novela das nove se tornou grandiosa demais e, a cada vez que escrevo uma, vejo que isso vai piorando. O Brasil inteiro fica ligado e – agora posso ser sincero, porque não estou mais escrevendo nenhuma – isso é uma coisa perniciosa. Acho que não deveria, é muita gente às voltas com a novela, são 45 milhões de pessoas! Como é que nós chegamos a esse ponto?
CULT – Como?
A. S. – As pessoas não têm alternativas! Nas cidades litorâneas, a alternativa é ir à praia e tomar cerveja! E nem há interesse de promover as alternativas que estão aí. Em Buenos Aires, me dei conta de que há uma livraria a cada cem metros! Não vá dizer que estou cuspindo no prato que comi; a verdade é essa. É uma coisa altamente perniciosa que tanta gente, durante a vida inteira, diariamente, se ocupe com uma coisa só, e que a Nazaré [vilã de Senhora do Destino, interpretada pela atriz Renata Sorrah] se torne mais importante que o presidente da República.
CULT – Você aceita mudar a história devido às reações do público ou a pressões da Globo?
A. S. – Ouço o povo sim. Acho que o brasileiro, que não é o mulato inzoneiro, é um povo que sai de casa cedo para trabalhar e quer se identificar com a novela. Aí é que está o sucesso da trama. Não abro mão de ir ao mercado e ao açougue e conversar com as pessoas, saber o que é que o público quer. E o que ele quer, a novela tem de dar. Quando escrever minha obra radical, aí vou fazer um romance ou uma peça e dizer o que eu quiser. Já a Globo é uma mãe, permite que eu faça coisas que, se eu fosse a Globo, não permitiria! Nunca fui pressionado. O que quer que eu faça, eles se fazem de mortos.
CULT – Por exemplo?
A. S. – A questão do personagem do Flávio Migliaccio, o aposentado, que ia direto cobrar da instituição. E o Dirceu, vivido pelo José Mayer, que disse que tinha vergonha na cara, não queria indenização por ter sido preso e exilado porque não ia querer que o povo pagasse pelas convicções políticas dele, que, aliás, não tinham preço. Veja, nosso presidente da República recebe pensão política. Adoro o Lula, mas acho um erro que ele não tenha renunciado a essa pensão. Perseguido ou não, ele chegou ao ponto mais alto que um homem pode chegar no país e chegou lá aos 52 anos! Ele não pode dizer que de alguma maneira foi tolhido. Não foi. Indenização por supostas perdas? Não tenho queixas da Globo, tenho das instituições. Saí dessa novela com ameaça de processo das enfermeiras, das madrastas, de uma ONG de mulheres estéreis, do INSS, da OAB, da Vilma [Martins], aquela mulher que seqüestrou o Pedrinho… tem umas oito ou nove instituições me ameaçando. A Vilma diz que não é a Nazaré, e sim a Maria do Carmo [personagem interpretada por Suzana Vieira]…
CULT – E sobre sua atuação no jornalismo?
< p>A. S. – Não sou novelista, estou novelista. Nunca pensei em escrever novelas, isso foi por acaso. Estava de saco cheio do jornalismo em 1978, na ditadura, depois de 18 anos de trabalho; vi que os jornais estavam cada vez mais burocráticos, alguma coisa entre o oficial e o não tão oficial assim, e eu encarava o jornalismo com impaciência. Um dia tive um problema de impaciência extrema em O Globo, invadi a sala do Evandro Carlos de Andrade [diretor de redação na época] e me demiti. Dois meses depois, a Globo me chamou para fazer parte da equipe de criação do seriado Plantão de Polícia. Foi assim que comecei na TV. Reconheço que o jornalismo da minha época não existe mais, hoje está altamente burocrático, você pega a sua pauta, sai, faz e volta. Na minha época, de seqüestro de embaixadores, era mais romântico. Certamente, hoje eu me aborreceria.
CULT – O que você acha da TV paga?
A. S. – No Brasil, temos a TV paga que é mesmo paga, e a TV paga que não é paga. Esta tem muito mais assinantes. A TV paga é muito mais assistida do que ela própria pensa. Aqui temos a cultura de que achado não é roubado; puxa-se um fio, faz-se um gato e tem-se a TV paga. Tenho um conhecido que mora próximo a uma favela em Jacarepaguá [Zona Oeste do Rio] e assinou a Net. Com o tempo, a imagem foi ficando ruim, até que ele já não conseguia mais ver nada. Descobriu que a favela inteira atrás da casa dele estava roubando a Net da casa dele. Com a TV paga, você sempre encontra uma coisa insólita. As pessoas se tornaram mais curiosas, exceto os telespectadores do SBT em São Paulo. Esses não saem dali nem no comercial. É uma coisa estranhíssima!
CULT – Por que não se consegue fazer uma boa novela fora da Globo?
A. S. – Porque a Globo tem uma fábrica onde cada um tem a sua tarefa, que aprendeu fazendo. Nas outras, os caras fazem uma novela, depois acabam tudo, ficam anos sem fazer e, quando vão fazer de novo, não sabem. O know-how se obtém fazendo. As emissoras têm de manter os profissionais e continuar fazendo, para se especializar!
CULT – O que mudou com a crise das empresas de telecomunicação nos últimos anos?
A. S. – Essa crise passou meio longe da Globo, né? O que eu senti foi que o processo de produção ficou cada vez mais sofisticado e caro! Gasta-se cada vez mais. Esta novela da Glória Perez [América] tem cinco cidades cenográficas! A resposta à crise talvez tenha sido essa, os produtos, pelo menos na Globo, se tornaram cada vez mais sofisticados. Provavelmente, o nosso Big Brother é o mais sofisticado do mundo. Nenhum é tão bem produzido quanto o nosso. Já vi em alguns países e achei uma coisa meio mambembe.
CULT – Você gosta dos reality shows?
A. S. – Odiava! Mas, o último, adorei, porque é claramente uma trama, uma novela, você tem os personagens: os bons, os maus, a manipulação…
CULT – No começo, falava-se que eles tirariam o lugar das novelas…
A. S. – A novela é muito poderosa. Sempre mobilizou as massas. No Brasil, ela se tornou mais poderosa ainda porque ocupou os horários nobres da TV e ficou insubstituível. O futuro da televisão brasileira está na novela, sobretudo porque ela é um produto que dá lucro.
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