Por Venício A. de Lima, 10/5/2005, no Observatório da Imprensa
Passadas as intensas celebrações dos 40 anos da TV Globo, o que mais chama a atenção é o aparente sucesso com que o grupo empresarial das Organizações Globo vem conseguindo reconstruir a história do Brasil através de sua própria perspectiva. Algo como uma “nova história global do Brasil contemporâneo”. O carro-chefe dessa empreitada é o projeto Memória Globo, criado pelo grupo em 1999.
Falando na sessão do Senado Federal, realizada na terça-feira (3/5), que homenageou a Globo, o ex-presidente José Sarney afirmou: “A Rede Globo, durante esses 40 anos, foi a história do Brasil em cores e em fatos”. E esse foi, de certa forma, o sentido da fala de todos os outros senadores, independente de sua filiação partidária.
Para aqueles que conseguem escapar do pensamento dominante e manter uma certa perspectiva crítica em relação ao que se mostra na telinha e se escreve nas nossas mais influentes revistas e jornais, é difícil acreditar na falta de cerimônia, por exemplo, com que antigos colaboradores diretos do regime militar apresentam uma versão-síntese da nossa história política, da década de 1960 até hoje, como se o maior grupo de mídia do país nenhuma participação tivesse tido nos episódios descritos.
Pelo que se sabe, a tentativa de reconstruir a história na ótica da mídia não é um fenômeno apenas brasileiro. Argemiro Ferreira nos conta (Tribuna da Imprensa, 5/5/05) como o maior grupo de mídia do planeta – AOL Time/Warner – tenta tornar palatável ao grande público americano a figura da radical de direita Ann Coulter, recontando a sua trajetória de forma a torná-la alegre e inofensiva – apesar de, ainda em 2001, ela ter conclamado à invasão dos países árabes e ao assassinato dos líderes islâmicos.
O que está realmente em jogo é a relação dos contemporâneos com a sua própria memória. É algo assustador.
Normas pontuais
O tema vem à tona porque se há um setor cuja memória deveria ser relembrada entre nós é exatamente o setor de mídia. O pouco que sabemos sobre a história de nossos principais grupos de mídia, quase sempre, tem sido contado por eles mesmos e, na maioria das vezes, não se conta toda a história.
Agora que o governo criou o Grupo de Trabalho Interministerial que deverá “elaborar anteprojeto de lei de regulamentação dos artigos 221 e 222 da Constituição e da organização e exploração dos serviços de comunicação social eletrônica”, seria extremamente útil que tivéssemos a correta memória do setor.
Seria precioso, por exemplo, se todos soubéssemos os detalhes da elaboração e tramitação no Congresso Nacional do Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962 – o documento legal que ainda rege a radiodifusão no Brasil. São raras as publicações que tratam do tema, aliás praticamente ausente da nossa tradição acadêmica.
Pelo que se sabe, a votação do projeto do Código foi o primeiro grande momento de articulação dos interesses dos radiodifusores privados no país, mobilizados contra o que era considerado interferência do Estado. Foi naquela ocasião que se criou a Abert – Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão e, até hoje, o código é a única lei que teve todos os 52 vetos do presidente da República derrubados no parlamento brasileiro, numa demonstração de força inequívoca.
Seria, sobretudo, interessante conhecer as razões que, durante os últimos 43 anos, apesar de todas as fundamentais inovações tecnológicas e conseqüentes inadequações legais, tornaram infrutíferas as tentativas de se elaborar uma nova legislação geral substituindo o ultrapassado código de 1962, sem impedir, todavia, que normas pontuais fossem sendo criadas no interesse dos radiodifusores privados.
Elemento crítico
Aqui o que se sabe é a posição dos radiodifusores privados de não admitir qualquer forma de regulação que não seja a própria auto-regulação.
Esse princípio acaba de ser reiterado, ainda uma vez mais, no VI Encontro Brasileiro de Agências de Propaganda, realizado em Brasília, na terça-feira (3/5), diretamente ou sob o manto de eufemismos envolvendo princípios sagrados como a defesa das liberdades de expressão e de imprensa.
No momento em que, apesar de todas as sinalizações em contrário, se renova a esperança de que um projeto de Lei Geral de Comunicação Eletrônica de Massa possa ser elaborado e enviado à apreciação do Congresso Nacional, a questão da memória da mídia é de vital importância.
A correta memória de nossa história e das disputas no setor é elemento crítico na articulação dos interesses da sociedade civil historicamente ausentes na regulação da mídia. De outra forma, será ainda mais difícil avançar no sentido do pleno reconhecimento do direito à comunicação como um dos direitos fundamentais da cidadania.