Jornalista e pesquisador Bruno Paes Manso fala sobre o fenômeno das milícias no Rio de Janeiro

[Por Gabriela Gomes] O programa Quintas Resistentes do dia 23 de março recebeu Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (USP), autor de “A República das Milícias – dos esquadrões da morte à era Bolsonaro” e coautor de “A Guerra – ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil”.

Bruno inicia falando sobre a origem das milícias nos modelos vigentes atuais e cita como exemplo dois modelos: o de Rio das Pedras e a chamada Liga da Justiça, em Campo Grande e Santa Cruz. Segundo ele, esse modelo envolve grupos de policiais que dominam os territórios e passam a ganhar dinheiro com o controle de alguns serviços como transporte alternativo e cobrança pela segurança do local, por exemplo.

De acordo com o entrevistado, é preciso recordar a origem dos esquadrões da morte nos anos 50, já que isso nos leva à história da urbanização da cidade do Rio neste mesmo período. A partir dos anos 40, explica Bruno, as zonas rurais passaram a encher as cidades e isso criou um certo medo e um desconforto nas pessoas, visto que as novas cidades vinham surgindo muito rápido.

O primeiro esquadrão da morte surge em 1958, ainda durante o governo Juscelino Kubitschek. Depois surgem outros grupos muito violentos como “homens de ouro” e “grupos de extermínio”, por exemplo. Para lidar com esse problema, a força era usada sempre como solução das instituições. Um instrumento quase pedagógico: “sempre com essa ideia muito presente de que a violência em vez de um problema é uma solução para produzir ordem. (…) Isso sempre produz um efeito colateral perverso que é respostas violentas a essas ações violentas.”, afirma. Assim, como toda ação gera uma reação, os grupos e as pessoas passam a se organizar para se defender e lidar com a violência usando também a violência. O jornalista explica que existia uma prática extra legal da polícia agir e ganhar dinheiro e que eles vendiam esses serviços para os comerciantes e bicheiros da época e assim, vai se transmutando até chegar nos modelos das milícias dos anos 2000 e as que temos hoje.

Milicianismo x Bolsonarismo, tráfico x milícia

“Milicianismo” é forma de enxergar o mundo das milícias que é uma forma bem sucedida.”, explica o pesquisador. O milicianismo e o bolsonarismo surgem com força em 2018. Bruno conta que após a vitória de Bolsonaro, tentava entender essa visão de mundo e o que ela representava já que se tratava de um presidente que durante a carreira havia defendido milicianos e surge com esse discurso que a guerra, ordem e a violência são a solução. Muitas pessoas viam isso como uma forma de exercer poder e autoridade simbolizado na figura de um presidente que historicamente defendia esses grupos e que converge com uma série de discursos de raiva e ódio, ao mesmo tempo, cobrando soluções imediatas para os problemas das pessoas. Surge uma onda com o bolsonarismo que criticava o sistema e não acreditava mais na nova república. Uma ideologia que acreditava que “político era tudo ladrão”, criminalizando os esquerdistas, os que atingem a família, os que querem sexualizar as crianças, etc. Discursos que seduziram muita gente e um pensamento que ficou enraizado em uma parte da população. Bruno acredita ser uma visão muito parecida com a da milícia, um grupo que defende as comunidades da expansão do tráfico e vai produzir ordem, e que os direitos humanos atrapalham as ações para que essa ordem seja estabelecida, muito conectado e parecido entre esses dois paralelos e discursos.

O jornalista e pesquisador destacou os pontos em comum entre a milícia e o tráfico, mais especificamente no Rio de Janeiro. São grupos que exercem o controle tirânico armados dos territórios e dependem desse controle territorial e da opressão contra a população para ganhar dinheiro. No caso do tráfico, faturam esse dinheiro através da venda de drogas. Já as milícias exploram as comunidades economicamente de diversas formas: cobram segurança de moradores e comerciantes, vendem de imóveis, controlam os serviços de televisão e internet (o “gatonet”), a distribuição de água, etc. Com o passar do tempo, analisa Bruno, os dois grupos já controlavam territórios e viram que dava para ganhar dinheiro e passaram a extrair o máximo de receitas do local.

Para o pesquisador, a grande diferença está no fato de a milícia ter uma capacidade de infiltração no estado muito maior que o tráfico tem. E com essas alianças nas próprias instituições, eles passam a ter uma relação muito mais tranquila com as políticas e com os políticos. Assim, “os traficantes e as populações que vivem sob a tirania dos traficantes acabam tendo que enfrentar o problema das operações policiais que levam muita violência e muitas mortes nos bairros onde esses traficantes exercem o controle, né? Então, a sensação de tranquilidade nas áreas de milícias acaba sendo maior porque não tem essas operações policiais pela boa relação que eles têm com as autoridades.”, declara Bruno.

“A violência policial acaba sendo a semente das milícias”

A questão de a milícia ser formada por agentes de segurança do Estado revela uma fragilidade e um desvio do papel que exercem essas instituições. Bruno fala ainda da importância da atribuição do estado moderno e que cabe a esse estado o monopólio legítimo da força. A relevância de haver um estado com leis que valham para toda cidade e seus direitos sejam garantidos na favela ou no asfalto, de forma igual. Entretanto, quando o estado terceiriza esse monopólio para grupos armados, o estado passa a ser uma grande quadrilha com o objetivo de enriquecer.

Questionado sobre a questão da desmilitarização da polícia militar, Bruno acredita que isso ajudou no fortalecimento das milícias, pois o medo da população em relação ao tráfico de drogas sempre foi usado pela polícia como instrumento de controle social. Desde os anos 80, com o fortalecimento do tráfico, as disputas por mercado eram muito violentas com invasões de bairros e disputa por controle, além da chegada de fuzis no estado. Tudo isso era usado para a polícia ser colocada como algo indispensável, mesmo que sendo corrupta.

Ou seja, pela lógica, se a polícia deixasse de atuar, o estado ficaria na mão do tráfico, assim a polícia fazia o “teatro da guerra”, na qual dava mais visibilidade e a sensação de que havia trabalho para PM, mas na verdade essas operações que eram usadas para conseguir arregos e vender armas para grupos rivais ou até mesmos traficantes dos mesmos grupos. Para Bruno, “A partir do momento que a gente dá carta branca pra polícia matar porque a gente tá com medo e acha que exterminando ladrões o mundo vai ficar mais seguro, o problema vai ser resolvido, eles passam a usar essa violência pra ganhar dinheiro”. Ele explica que quando a violência é dada com absoluta permissão para matar, esse poder permite a riqueza e força, logo, a corrupção: “A violência policial acaba sendo a semente das milícias.”, afirma.

A construção narrativa de que as milícias estavam deixando seu bairro mais tranquilo foi usada justamente para justificar a entrada desses grupos nos territórios ocupados e para eles se fortalecerem. Além do medo decorrente da violência gerada pela disputa de mercado e do medo da droga, da desordem e desestruturação da família. O discurso em defesa da ordem é fortalecido como esses medos. Para concluir, após as eleições de 2022, Bruno diz ter ficado mais cético em relação ao combate às milícias depois do cenário que se desenhou da eleição do governador Cláudio Castro. Ainda assim, ele acredita que é algo pelo qual temos que lutar sempre.